30 de novembro de 2009

E Asafe quase caiu – Sl 73

"Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória"

Asafe era diretor de música nos dias de Davi e Salomão. Crente no Senhor, compôs 12 hinos que passaram a fazer parte dos Salmos. Da sua experiência com o Senhor, podia dizer "com efeito, Deus é bom" (v.1). Porém, durante uma fase de sua caminhada com o Senhor, enfrentou uma crise espiritual muito grande, a ponto de declarar "quase me resvalaram os pés; pouco faltou para que se desviassem os meus passos" (v.2). Como Asafe, você pode estar vivendo momentos de dúvidas e quem sabe até tenha pensado em se afastar dos caminhos do Senhor. Vendo o que levou esse levita à beira do precipício e como ele saiu de sua crise espiritual, você descobrirá que mesmo em meio a lutas, vale a pena servir ao Senhor.

Comecemos com os motivos que quase levaram Asafe à descrença.

I. ASAFE OLHOU PARA O HOMEM

O erro de Asafe foi deixar de olhar para o Senhor para analisar o que acontecia com as pessoas à sua volta. Ao fixar os olhos na experiência dos homens, tirou conclusões que o levaram para muito perto da apostasia.

1. Asafe invejou os descrentes, (v.3-12)

O próprio Asafe confessa que "invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos" (v.3). O que ele viu nos seus dias é a mesma coisa que você vê ao reparar no estilo de vida dos descrentes de hoje. Os descrentes viviam sem preocupações com doenças, "o seu corpo é sadio e nédio" (v.4). Além disso, "não são afligidos" (v.5). A conseqüência dessa vida despreocupada é "a soberba que os cinge como um colar, e a violência que os envolve como manto" (v.6). Chegam a blasfemar, "contra os céus desandam a boca, e a sua língua percorre a terra" (v.9). Asafe também notou que os descrentes geralmente são pessoas populares. Quanto mais ímpios forem, mais "o seu povo se volta para eles e os tem por fonte de que bebe a largos sorvos" (v.10). Ao invés de serem castigados, os descrentes, estão "sempre tranqüilos, aumentam suas riquezas" (v.12). Isso deixava Asafe arrasado.

Mas então, ele volta sua atenção para os crentes. E o que ele percebeu, não o fez sentir-se melhor.

2. Asafe lamentou a sorte dos crentes (v.13-14)

Olhando para si mesmo, ele concluiu tristemente que "inutilmente conservei puro o coração e lavei as mãos na inocência" (v.13). A sua avaliação era de que a santidade não compensava, pois apesar de manter-se fiel "de contínuo sou afligido e cada manhã, castigado" (v.14). Talvez você tenha chegado à mesma conclusão de Asafe, de que enquanto os descrentes prosperam no mundo, os crentes vivem uma vida de aflição. Quem sabe você concorda que quanto mais se consagra, mais dificuldades enfrenta.

Antes de prosseguir, gostaria de dizer que você e Asafe não estão sozinhos. Cada um em seu tempo, tanto Jó, Davi, Isaías, Jeremias, Habacuque, Paulo como muitos outros observaram que poucos ricos serviam a Deus e no entanto pareciam prosperar cada vez mais. Enquanto que os crentes eram, nas palavras de Paulo, a "escória do mundo". Cada uma dessas pessoas reagiram a seu modo diante disso. A reação de Asafe quase o levou para longe da fé. E a sua? Qual a sua reação diante da prosperidade dos descrentes e do seu sofrimento?

II. ASAFE TORNOU-SE AMARGURADO

A reação de Asafe, como dissemos, quase o levou para fora do arraial da fé. Ele se tornou um crente amargurado com o que via à sua volta e dentro de si.

1. Não conseguia compreender, (v.16)

Primeiro, ele não conseguia compreender como as pessoas descrentes viviam melhores que os crentes. Nas suas palavras, "em só refletir para compreender isso, achei mui pesada tarefa para mim" (v.16). Quanto mais pensava sobre o assunto, mais angustiado ficava. Como poderia um Deus justo deixar impune o perverso e diariamente submeter os crentes a uma disciplina rígida? Isso não entrava na cabeça de Asafe.

2. Não conseguia falar (v.15)

Como um líder na congregação, Asafe não podia compartilhar suas dúvidas com seus companheiros, pois poderia semear a dúvida em seus corações. Aquilo que esmagava o seu coração não podia ser divido com outros, que poderiam desviar-se. Asafe até pensava em se abrir com alguém, mas então pensava que isso seria trair a fé de seus irmãos. Dizia ele, "se eu pensara em falar tais palavras, já aí teria traído a geração de teus filhos" (v.15). É bom destacar que a atitude de Asafe foi louvável, pois visava poupar a fé de irmãos mais fracos. Porém, ao se calar, foi cada vez mais consumido pela dúvida.

3. Não conseguia aceitar (v.21-22)

Asafe não conseguia aceitar em seu coração essa situação. A amargura invadiu a sua alma. Mais tarde ele descreveria a sua situação nas seguintes palavras "quando o coração se me amargou e as entranhas se me comoveram, eu estava embrutecido e ignorante; era como um irracional à tua presença" (v.21-22). Você já veio alguma vez ao culto e de tão angustiado não conseguiu sentir a presença de Deus? Ao invés de prestar atenção ao que era ministrado, ficava remoendo sua situação? Então você entende como Asafe se sentia. Ele estava se tornando insensível às coisas de Deus.

Mas então aconteceu algo que o tirou da situação em que se encontrava. Preste atenção, pois é isso que precisa acontecer com você, para que todas as dúvidas se dissipem e você possa se regozijar na presença de Deus.

III. ASAFE ENTROU NA PRESENÇA DE DEUS

Até quando durou a crise espiritual de Asafe? Ele nos responde: "até que entrei no santuário de Deus" (v.17). Como ministro do louvor, é certo que ele estava sempre no templo. Porém, dessa vez, ele realmente se colocou diante de Deus. Ao invés de ficar olhando para o estilo de vida dos ímpios, olhou para o Senhor. Ao invés de procurar uma explicação racional para seu sofrimento dentro de si, voltou sua atenção para o seu Deus, e então as coisas se desanuviaram. Não é comparando a vida do descrente com a vida do crente que você encontrará as explicações que procura, mas colocando-se aos pés do Senhor, para aprender de Suas palavras.

1. Compreendeu o fim dos descrentes, (v.17-20; 27)

Após entrar no santuário, Asafe disse "atinei com o fim deles" (.v17), referindo-se aos descrentes. Até então, Asafe tinha reparado apenas na situação presente dos ímpios, mas agora o Senhor lhe mostrava o fim deles. Aparentemente seguros, na verdade os ímpios viviam sob um perigo mortal, pois "Tu certamente os pões em lugares escorregadios e os fazes cair na destruição" (v.18). Deus não os deixará impunes em sua iniquidade, mas "ficam de súbito assolados, totalmente aniquilados de terror!" (v.19). Embora a sua prosperidade pareça nunca acabar "como ao sonho, quando se acorda, assim, ó Senhor, ao despertares, desprezarás a imagem deles" (v.20). Deus não esqueceu nem relevou a maldade dos ímpios, mas os está reservando para o dia do juízo, quando então terão a retribuição de sua maldade. Asafe comprendeu então que a longanimidade do Senhor não deve ser confundida com injustiça, pois "os que se afastam de ti, eis que perecem; tu destróis todos os que são infiéis para contigo" (v.27)

2. Descobriu a segurança dos crentes, (v.23-26; 28)

Porém, a maior descoberta de Asafe não foi saber como os ímpios acabam, mas como os justos permanecem para sempre. Ele lembrou-se de algo que só o crente pode dizer: "todavia, estou sempre contigo, tu me seguras pela minha mão direita" (v.23). Em meio ao sofrimento, o crente não está sozinho nem desamparado. Na estrada íngrime da fé, só o crente pode dizer "Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória" (.24). Ao pensar nessas verdades, Asafe só podia exclamar "quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra" (v.25). Ah! meu irmão, Deus te basta! O Senhor te é suficiente! Se você tem Deus no céu e se deleita dele na terra, então nem a maior prosperidade dos ímpios nem o maior sofrimento irá te tirar a alegria da salvação! O segredo que Asafe descobriu é que "ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre" (v.26).

O que é melhor, possuir todas as riquezas do mundo ou viver na presença de Deus? Depois de encontrar-se com Deus no santuário, Asafe não teve mais dúvidas: "quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o meu refúgio, para proclamar todos os seus feitos" (v.28). Você trocaria uma vida na presença de Deus e uma eternidade na glória por prosperidade material na terra e uma eternidade no inferno? Tenho certeza que não, logo, não há motivo para você duvidar da bondade de Deus e menos ainda para invejar a sorte dos que seguem a maldade.

CONCLUSÃO

Agora eu preciso falar de uma coisa muito séria. O que Asafe fez foi muito grave, pois quase o mergulhou na descrença. Mas foi ainda mais grave porque colocou em dúvida a bondade e a justiça de Deus. Se você, como ele, pensa que Deus age de forma errada ao permitir que os ímpios prosperem enquanto os crentes são afligidos, também pecou contra o Pai. Por isso, precisa pedir perdão ao Senhor. Faça isso agora. E na mesma oração, confesse a Deus que Ele é teu socorro no céu e alegria na terra, e que tendo Ele em sua vida, nada lhe fará falta. Oremos a Deus.

Soli Deo Gloria

(Sermão pregado na Igreja O Brasil Para Cristo)

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

26 de novembro de 2009

Que é o calvinismo? [3]

3. O calvinismo é uma forma de ver Deus

As últimas três proposições poderiam tranqüilamente ser conjugadas em uma frase: “O calvinismo é uma forma de ver Deus, o homem, e o mundo”. Para efeitos de uma análise mais cautelosa, contudo, é razoável tratar os três itens separadamente.

O calvinismo é uma forma de ver Deus. Há uma perspectiva própria a respeito da Divindade entre aqueles que pensam a partir da visão reformada. Os atributos – as qualidades – que a Escritura confere ao Senhor, são profundamente considerados e percebidos em sua extensão e implicações.

O calvinista compreende que não é possível limitar o Criador diante das criaturas, por isso as Suas características sempre determinam o tom da relação entre ambos. Trocando em miúdos: o amor de Deus não depende dos seres amados, a graça Divina não depende dos agraciados, e assim por diante.

Muitas expressões dentro do ramo evangélico buscam reduzir a visão sobre Deus diante da necessidade de valorizar o homem. Há quem fale do amor do Pai pela humanidade com base na “beleza” do ser humano – ou pior: na “inocência”. Há quem decida analisar a justiça de Deus a partir das suas impressões sobre o que é correto.

Essas manifestações resultam em alguma perda no relacionamento com o Senhor. Quando a justiça de Deus é avaliada conforme as impressões humanas, por exemplo, é questionada a idéia de que Deus pode abençoar a alguns e não a outros.

Seguindo esta linha, o Criador tem Seu poder de atuação e Seu caráter “restringido”pelas criaturas. Para o calvinismo, porém, não cabe ao ser criado avaliar o Senhor. A ele, basta reconhecer quem Deus é com base na Escritura. Se a Bíblia afirma a justiça de Deus, e apresenta a verdade de que Ele abençoa a uns e não a outros, o reformado aceita esta apresentação como legítima, e vê nisto mais uma motivação para adorar ao Todo-Poderoso.

Qualidades como a Soberania, a Majestade, a Justiça e o Amor, são melhor compreendidas em um sistema que permita tais atributos “falarem por si". O calvinismo é esta perspectiva.

As implicações disto para a práxis reformada são incontáveis. Se existe uma percepção de um “Deus ilimitado”, então Ele tem a autoridade absoluta sobre o todo da vida humana. Se a soberania de Deus é considerada com verdadeira seriedade, sem restrições, então cabe ao calvinista viver em obediência e submissão ao Deus soberano. Se o controle absoluto do Pai sobre o universo é percebido em sua inteireza, então o reformado confiará na Providência, e reconhecerá que nada acontece fora dos planos Divinos.

Como conseqüência desta perspectiva, existe verdadeiro incentivo à evangelização, à santidade, e à adoração.

O calvinista exalta um Deus verdadeiramente digno de ser exaltado. Ele adora o Senhor de todas as coisas. Prostra-se diante daquele Ser reconhecido pela natureza inanimada (Sl.19).

Existe um Deus com “d” maiúsculo no calvinismo.

Quer ler mais sobre esta proposição?
CALVINO, João. A instituição da religião cristã, tomo 1, livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
SPROUL, R. C. A invisível mão de Deus: todas as coisas realmente cooperam para o bem? 2. ed. São Paulo: Bompastor, 2006.
HORTON, Michael S. Creio: redescobrindo o alicerce espiritual. São Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 25-50.
BOICE, James Montgomery. O evangelho da graça: a aventura de restaurar a vitalidade da igreja com as doutrinas bíblicas que abalaram o mundo. São Paulo: cultura cristã, 2003.p.143-162.
MACHEN, J. Grescham. Cristianismo e Liberalismo. São Paulo: Os Puritanos, 2001. p.61-74.
PACKER, J. I. Vocábulos de Deus. São José dos Campos: Fiel, 1994. p.39-50.
PIPER, John. Teologia da Alegria: a plenitude da satisfação em Deus. São Paulo: Shedd Publicações, 2001. p.20-39.


Allen Porto é blogueiro do A Bíblia, o Jornal e a Caneta, e escreve às quintas-feiras no 5 calvinistas.

25 de novembro de 2009

Bíblia e Predestinação [2] - O Objetivo da História e da Criação

No post anterior desta série, usamos os atributos de Deus como ponto de partida para o estudo da base bíblica da predestinação. Vimos que Deus é Todo-Poderoso, que Ele governa ativamente a criação e que o centro da Bíblia e da História é a glória d'Ele, e não a felicidade do homem.

Mas, se o objetivo supremo de Deus não é promover a felicidade ou realizar os desejos humanos, uma pergunta precisa ser respondida. Por que Deus criou o mundo? Quais os objetivos de Deus na História?

O objetivo supremo: a glória d'Ele
Sei que esse ponto já foi tratado anteriormente. Mas, exatamente por se tratar do tema central da Bíblia, ele precisa ser repetido várias e várias vezes.

Deus não criou o universo e o ser humano por precisar de nosso amor, afeto ou de alguma coisa para sobreviver. Isso é dito claramente no Salmo 50:
Se eu tivesse fome, não to diria, pois o mundo é meu e quanto nele se contém. Acaso, como eu carne de touros? Ou bebo sangue de cabritos? (Salmo 50:12-13)
Portanto, Deus sobrevive muito bem sem a criação. Contudo, a criação foi feita porque ela maximiza a glória de Deus. O simples fato da existência do Universo já aumenta a glória divina:
Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. (Salmo 19:1)
Fazendo uma analogia, uma mulher bonita é bela por si só. Mas, se ela usa um enfeite no cabelo ou faz uma maquiagem, essa beleza é realçada. Deus é glorioso por Si só. Mas a criação é como um adorno que aumenta ainda mais essa glória.

Cristo: o ápice da glória de Deus
Mas o auge da glória divina não é a criação do mundo, e sim a morte e ressurreição de Jesus Cristo, o verdadeiro ponto máximo da História e da glória divinas. Isso pode ser indicado, por exemplo, na resposta à seguinte pergunta: qual o momento mais importante do tempo?

A tendência popular é considerar a segunda vinda de Jesus. Se pudéssemos representar graficamente, a maioria de nós pensa que o melhor dos tempos era o da criação, seguido por um período de baixa até a crucificação e ressurreição de Cristo, entrando aí em uma curva ascendente até o Apocalipse, quando então voltamos ao melhor dos tempos.

Mas, segundo a Bíblia, o ponto focal do tempo é, exatamente, a primeira vinda de Jesus:
vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. (Gálatas 4:4-5)
Não é na criação, mas sim na morte e na ressurreição, no fato de Cristo salvar o mundo e se tornar o cabeça da Igreja que Jesus atinge toda a plenitude:
Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia, porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus. (Colossenses 1:15-20)
A plenitude não é completada apenas no fato de Cristo ser o Criador e Sustentador de todas as coisas. Ela só é atingida quando todas as coisas são reconciliadas em Cristo, e isso acontece quando a paz é feita na cruz. Esse é o grande mistério da vontade de Deus e o objetivo último da predestinação:
desvendando-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra; nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade, a fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que de antemão esperamos em Cristo... (Efésios 1:9-12)
Ao contrário do que imaginamos, o mistério da vontade de Deus foi desvendado. Segundo a Bíblia:

- A vontade de Deus é de acordo com o beneplácito (consentimento, aprovação) proposto em Cristo;
- Esse beneplácito (logo, essa vontade) é o de que, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas convirjam para Cristo. Essa dispensação começou na primeira vinda de Cristo e terminará na segunda;
- A predestinação é segundo o propósito de Deus, que faz tudo segundo o conselho de Sua vontade;
- O objetivo da predestinação é o de que sejamos para louvor da glória de Deus.

A conclusão lógica da análise é a seguinte: o mistério da vontade de Deus é o de que Ele quer que tudo convirja para Cristo. Esse é o centro da vontade de Deus, a razão pela qual tudo foi criado, o objetivo máximo da História, o alvo final dos decretos divinos.

Tudo o que existe e foi decretado, incluindo-se aí até mesmo o mal e os pecados, existe para maximizar a glória divina. E essa glória só é maximizada com a morte, ressurreição e glorificação de Cristo.

Por esta razão, a queda do homem e dos demônios, a entrada do pecado no mundo, tudo foi decretado por Deus para que esse objetivo fosse atingido. É por essa ótica que toda a História deve ser entendida.

A necessidade dos dois vasos
E agora é preciso recuperar duas idéias que já apresentei aqui. A mais recente é a de que a predestinação faz parte do projeto de Deus para atingir o objetivo máximo de fazer com que tudo convirja para Cristo. Isso pode ser visto na releitura de Efésios 1:3-14, com ênfase nos versículos 9 a 12. A outra, apresentada no primeiro post, é a de que Deus não restringe o uso de Seus atributos, mas que Ele os expressa a todos.

Há, portanto, duas necessidades lógicas aqui:

- A predestinação é necessária para a glorificação máxima de Deus;
- A exibição de todos os atributos é necessária para a glorificação máxima de Deus.

E Deus é amor, mas também é justiça. Nas palavras de Paulo, bondade e severidade:
Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a bondade de Deus, se nela permaneceres; doutra sorte, também tu serás cortado. (Romanos 11:21)
Alguns passos que precisamos dar:

1) Deus considerou que reconciliar todas as coisas traria mais glória a Ele do que criar algo que nunca precisasse de reconciliação;
2) Por isso, determinou que o alvo máximo da História, o mistério da vontade de Deus era o de que tudo convergiria para Cristo e que em Cristo todas as coisas seriam reconciliadas;
3) Todos os atributos de Deus devem ser exibidos, e Deus é bom e justo;
4) Se todos forem salvos, a bondade e o amor de Deus são mostrados, mas não a Sua justiça e ira;
5) Se todos forem condenados, a ira e justiça divinas são mostradas, mas não o Seu amor e bondade.

A solução: Cristo não poderia salvar a todos. Alguns homens seriam salvos e outros, condenados. Deus precisava criar dois tipos de homens: os eleitos para a salvação e os eleitos para a perdição. Os vasos de ira e os de misericórdia:
Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? (Romanos 9:22-24)
Repare que aqui Paulo dá as razões pelas quais uns são "vasos de misericórdia" e outros "vasos de ira":

1) Deus queria mostrar a Sua ira;
2) Deus queria mostrar o Seu poder;
3) Deus queria mostrar as riquezas de Sua glória em vasos de misericórdia.

Para atingir esses objetivos, é preciso que haja tanto salvos como condenados. Logo, não é possível afirmar que a predestinação é somente dos salvos, e que os eleitos são simplesmente preteridos ou deixados de lado.Veja também que cada vaso é preparado por Deus. Mais do que isso, esse preparo tem finalidades específicas: os de misericórdia são preparados de antemão para a glória e os de ira são preparados especialmente para a perdição. Em relação a este ultimo ponto, diz Salomão:
O SENHOR fez todas as coisas para determinados fins e até o perverso para o dia da calamidade. (Provérbios 16:4)
E Pedro concorda:
Para vós outros, portanto, os que credes, é a preciosidade; mas, para os descrentes,
A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular
e:
Pedra de tropeço e rocha de ofensa.
São estes os que tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também foram postos. (1 Pedro 2:7-8)
Desta maneira, o ensino bíblico claro é o de que há predestinação, tanto para a salvação como para a condenação.

Quando foi feita a predestinação?
Todos os passos dados neste post: a decisão de atingir a glória máxima, de que isso aconteceria com a glorificação de Cristo, a necessidade de fazer dois tipos de pessoa e de predestinar, todas essas decisões foram tomadas por Deus antes do início do tempo. De fato, Cristo foi morto antes da fundação do mundo:
mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo, conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos tempos, por amor de vós... (1 Pedro 1:19-20)

e adorá-lo-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo. (Apocalipse 13:8)
Da mesma forma, a predestinação também foi feita antes da criação:
assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado... (Efésios 1:4-6)
Assim, antes da fundação do mundo, os salvos já foram escolhidos e predestinados para serem adotados como filhos de Deus por meio de Jesus Cristo.

E a conseqüência é óbvia. Toda a História da Salvação, desde a queda de Adão até o meio pelo qual os homens seriam salvos, incluindo-se aí a condenação e a vida eternas e as pessoas que seriam salvas ou não, tudo já estava definido antes do mundo começar. O tempo apenas concretiza o que já foi planejado e predeterminado por Deus nos mínimos detalhes, para que Ele possa atingir os Seus objetivos e propósitos.

Essa determinação não é cronológica, é lógica. Cristo não morre por causa da Queda, a predestinação não é decretada por causa da Queda, como normalmente pensamos. Ao contrário, a Queda acontece porque a predestinação é necessária, e a predestinação acontece para que Cristo seja glorificado.

Essa posição é conhecida como supralapsarianismo. Por ela, a ordem lógica dos decretos de Deus é a seguinte:

1) Glorificar a Deus por meio da exaltação de Cristo (objetivo supremo);
2) Eleger alguns para receberem a graça e outros para serem reprovados (eleição);
3) Criar o mundo e os seres humanos;
4) O homem cairia e pecaria;
5) Cristo viria para sofrer no lugar de Seus eleitos;
6) Os salvos seriam chamados à salvação.

Na posição conhecida como infralapsarianismo, a ordem seria cronológica:

1) Glorificar a Deus por meio da exaltação de Cristo (objetivo supremo);
2) Criar o mundo e os seres humanos;
3) O homem cairia e pecaria;
4) Eleger alguns para receberem a graça e outros para serem reprovados (eleição);
5) Cristo viria para sofrer no lugar de Seus eleitos;
6) Os salvos seriam chamados à salvação.

Já dei acima toda a minha fundamentação bíblica para defender o supralapsarianismo. Gostaria de encerrar o post fazendo uma citação de um ótimo artigo sobre o assunto escrito por Rafael Gabas, a quem muito agradeço e a quem devo muito de minha argumentação:
Essa ordem, à primeira vista, pode parecer ilógica, pois coloca o decreto da queda vindo antes do decreto da criação. Contudo, partindo do primeiro ponto, fica fácil enxergar que os outros são conseqüências do propósito original de Deus, para exibir Seu amor libertador e Sua ira vindicativa em (e através de) Cristo, como o Salvador ressuscitado. Porém, não havia mundo para Ele se encarnar, e nenhum indivíduo que pudesse ser amado ou odiado, razão pela qual Deus imaginou a humanidade que formaria e selecionou alguns de seus membros para serem atingidos pela obra de Cristo, destinando o restante à destruição; isso deixa claro que a eleição e a reprovação foram incondicionais, sem observar nenhuma condição preenchida pelos homens, pois nenhuma pessoa possuía qualquer característica, boa ou má, nem Adão havia quebrado a aliança, nem o Universo havia sido criado; ao contrário: tudo isso foi projetado para cumprir a eleição e a reprovação. A Bíblia ensina que a criação e a queda foram decretadas para que Deus enviasse Seu Filho como Salvador do mundo, demonstrando Seu amor eterno (que não começou com a queda) sobre os eleitos, e demonstrar o poder de Sua ira sobre os reprovados. Após eleger Seus filhos e odiar os outros, Deus deveria torná-los, todos, em seres culpáveis, dignos da condenação eterna, a fim de que houvesse um estado de miséria do qual os eleitos fossem removidos, e os reprovados fossem castigados. (Rafael Gabas, em "A Ordem dos Decretos Divinos")
A História está dentro do controle divino e segue um padrão preestabelecido para satisfazer, da melhor maneira possível, a glória de Deus. E a predestinação faz parte deste plano.

A série continua, o próximo post está aqui. Mas, por enquanto encerro louvando ao Deus Supremo, Senhor da História, que tem todo o poder para cumprir Seus propósitos na terra! A Ele, pois, toda a glória, e honra, e louvor! Amém!

Helder Nozima é pastor presbiteriano, blogueiro do Reforma e Carisma e escreve às quartas-feiras no  5 Calvinistas.

24 de novembro de 2009

Sobre os supostos textos “arminianos” da Bíblia[2] – Análise de 2 Pedro 3.9

Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento (Almeida Revista e Atualizada).

[Introdução]

O texto supracitado é largamente usado pelos arminianos como uma prova irrefutável de que Cristo morreu por toda a humanidade. O raciocínio é mais ou menos o que segue: “Como é que Jesus veio morrer por alguns, se o próprio Deus deseja que todos se salvem”? É interessante o fato de que até mesmo um grande teólogo reformado como John Murray endosse exatamente o parecer arminiano. Veja o que ele diz sobre esse mesmo texto:

Deus não deseja que nenhum homem pereça. Seu desejo, antes, é que todos entrem para a vida eterna chegando ao arrependimento. A linguagem nessa parte do versículo é tão absoluta que é altamente anormal encarar Pedro como querendo dizer meramente que Deus não deseja que nenhum crente pereça… A linguagem das cláusulas, então, mais do que naturalmente refere-se à humanidade como um todo… Ela não tem em vista os homens como eleitos ou como réprobos[1].

Sinceramente, não sei porque cargas d’água um teólogo do calibre do John Murray, autor de obras tão consagradas no meio reformado, como o Comentário de Romanos e Redenção – Consumada e Aplicada, tenha errado tão crassamente como ele o fez aqui. Mas isso não me interessa. O que interessa, de fato, é analisar se tanto ele quanto os arminianos estão certos em suas interpretações.

[Análise]

Se o contexto da referida passagem for cuidadosamente observado, a interpretação arminiana não tem como se manter de pé. Para não sermos desnecessariamente longos em nossa exposição, vamos nos deter apenas do versículo 8 em diante, em busca de algumas provas contra a interpretação que os arminianos conferem ao Texto Sagrado.

A primeira prova contra a interpretação arminiana é que Pedro está se dirigindo aos crentes (os “amados”). Senão, vejamos:

    • 2Pe 2.8: “Há, todavia, amados, uma coisa que não deveis esquecer: que para o Senhor um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia”.

Haveria uma chance de escape para a interpretação arminiana se Pedro tivesse como objetivo, aqui, corrigir os falsos mestres, dirigindo-se especialmente aos tais. Mas não é isso que a carta como um todo revela. Pedro está escrevendo à igreja, preocupando-se em trazer à lembrança desta as “palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como do mandamento do Senhor e Salvador, ensinado pelos vossos apóstolos” (2Pe 3.2 – cf. 1.12-14). Seu objetivo é alertá-la contra o ensino dos falsos mestres, que negavam a promessa de Cristo quanto ao seu retorno triunfal (também conhecido como “parousia”). Compreender isto, que é aos crentes que Pedro se dirige, é fundamental para a interpretação da passagem em questão.

Isto posto, chegamos à nossa segunda prova de que a interpretação arminiana está equivocada. Pedro começa o versículo 9 dizendo que “alguns” julgavam que a parousia era uma farsa, haja vista que a promessa de Cristo quanto a ela estava “demorando” para ser cumprida. Pedro, então, explica aos crentes o porquê de Cristo ainda não ter voltado: “ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. Não há dificuldade alguma no texto. Ele é mais do que claro. As palavras que sublinhei só podem se referir aos crentes. Deus é longânimo somente para aqueles a quem Ele não fará perecer. E quem é o único povo que não perecerá? Resposta: a Igreja. Essa verdade é reforçada pelo uso que Pedro faz da palavra grega boulomenos (do verbo boulomai – lit. “ter vontade”, “intentar”) para o “querer” de Deus (“não querendo que nenhum pereça”). Geralmente, essa palavra é usada para designar uma “determinação incontestável” e deliberada da parte de Deus[2].

Mas, suponhamos que os arminianos estejam certos, e que o “todos” a quem Pedro se refere seja mesmo a humanidade inteira. A que conclusões chegaríamos?

  1. Se o retorno tão esperado de Cristo depende mesmo do arrependimento de toda a humanidade, então os falsos mestres contemporâneos de Pedro estão cobertos de razão, pois Jesus, nesse caso, jamais voltará;
  2. Se não é bem esse o caso, então os propósitos de Deus foram frustrados (contrariando Jó 42.2), visto que nem toda a humanidade se arrependerá;
  3. Se também não é esse o caso, então das duas uma: ou os hereges estão certos (o que faria de Jesus um mentiroso, de fato), ou Deus falhou na sua empreitada redentiva. ABRE PARÊNTESE. Este terceiro ponto era para soar redundante, mesmo. FECHA PARÊNTESE.

Como podemos perceber, as próprias premissas do pensamento arminiano para o caso que estamos tratando, se levadas às suas últimas implicações, excluem-se mutuamente. E as conclusões que delas podemos tirar são absurdas!

Somos levados, então, à terceira prova do erro arminiano. Se o versículo 9 ainda está obscuro no que diz respeito a que tipo de pessoa é alvo da longanimidade de Deus para fins salvíficos, então vejamos o que o próprio Pedro diz no versículo 15:

    • 2Pe 3.15: “E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada”.

Mais uma vez, haveria outra chance remota de escape para os arminianos se esse versículo não estivesse onde está. Mas ele está aí – resoluto, firme, inconteste! E ele está dizendo que nossa salvação só é possível porque Deus é longânimo. E para agravar ainda mais a situação (dos arminianos, é lógico), Pedro resolve fazer referências a Paulo. O texto paulino mais provável que Pedro tem em mente é o de Romanos 2.4. Vejamos o que diz:

    • Rm 2.4: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento”?

Vejam só! Paulo está dizendo que somos conduzidos ao arrependimento por causa da bondade de Deus. Isso é maravilhoso! E Pedro não está fazendo aqui uma citação despropositada, como se ele estivesse apenas querendo conferir autoridade ao seu parecer apelando para Paulo. Nada disso. Pedro está simplesmente corroborando uma verdade já anunciada anteriormente pelo apóstolo aos gentios, a saber, que somente chegarão ao arrependimento aqueles a quem Deus dispensar a sua longanimidade.

Pode ser que aqui os arminianos se levantem e vociferem: “se for assim, então há controvérsias”! Eles poderão alegar um outro possível texto paulino, na mesma carta, que também fala da longanimidade de Deus. Vejamos qual:

    • Rm 9.22: “Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição”.

Bem. Não consigo imaginar qual seria exatamente o argumento dos arminianos. Se eles apelarem para o fato de que Deus suporta com muita longanimidade “os vasos de ira”, ou seja, os incrédulos, então eles também terão que admitir que os tais foram “preparados para a perdição” (réprobos), enquanto que outros foram preparados para a glória (os eleitos – Rm 9.23). Sinceramente, se eu fosse arminiano, jamais apelaria para um texto desses. A não ser que eu estivesse disposto a admitir que realmente “o Senhor fez todas as coisas para determinados fins e até o perverso, para o dia da calamidade” (Pv 16.4). Mas isso seria demais para quem não aceita a absoluta e irrestrita Soberania de Deus. Tudo isso mostra que não há escapatória para quem deseja contestar a Verdade. Ela “encurrala”, mesmo.

[Conclusão]

Diante de tudo o que vimos, não me resta outra alternativa, senão a de concluir “doxologicamente” (valeu por esse insight, Roberto Vargas!):

“Obrigado, Senhor, pela tua imensa paciência dispensada a nós, pobres e miseráveis pecadores. Sem ela não nos restaria tempo para nos arrependermos de ter ofendido o teu Santo Nome. Dessa forma, podemos dizer, com absoluta certeza, que fomos salvos pela Tua longanimidade. Aleluia”!

Soli Deo Gloria!

Leonardo Galdino é blogueiro do Optica Reformata e escreve às terças-feiras no 5 Calvinistas.


[1] The Free Offer of the Gospel, Murray and Stonehouse ,no city, no publisher, no date, 26, 27. Citado no site Monergismo (clique aqui).

[2] Verbete “vontade”, do Novo Dicionário Internacional de Teologia do NT (Ed. Vida Nova, pág. 2677).

_________________

Se você está sem tempo para ler, ouça este artigo em áudio:

Para baixar o arquivo em mp3, clique no link abaixo:

Análise de 2 Pe 3.9.mp3

23 de novembro de 2009

A controvérsia sobre a graça

A controvérsia tem início com Pedro Pelágio, nascido na Irlanda em 354, que afirmava que somos capazes de obedecer. Sua posição foi uma reação a uma oração de Agostinho, que dizia "concedes o que ordenaste". Para ele, se Deus dá o que exige de nós, qual o mérito da obediência? Para Pelágio, a natureza humana é inalteravelmente boa e todos os homens são criados como Adão antes da queda, portanto nós somos capazes de evitar o mal e pode haver homens sem pecado. Como não herdamos a natureza pecaminosa, a graça pode até ajudar a fazer o bem, porém não é necessária para alcançar a bondade. Enfim, a graça não acrescenta nada à natureza humana, pelo contrário, é obtida por mérito.

Aurélio Agostinho, também nascido em 354 no Norte da África, opôs-se ferozmente às idéias de Pelágio, afirmando que somos incapazes de obedecer. Enquanto o monge irlandês negava as conseqüências da queda, Agostinho as enfatizava. Para ele, o homem fez mau uso de seu livre-arbítrio e destruiu a si mesmo e a sua descendência. Pela queda, o homem perdeu a liberdade, teve sua mente obscurecida, perdeu a graça que o assistia para o bem, adquiriu uma tendência para o pecado, tornou-se fisicamente mortal e passou a ter culpa hereditária. Dessa forma, o único jeito do homem ser recuperado desse estado de completa ruína é pela graça de Deus. Para Agostinho, essa graça era livre, visto que não é merecida nem conquistada, indispensável pois é a condição sine qua non da salvação, preveniente pois deve vir antes do pecador se recuperar, irresistível porque cumpre o propósito de Deus em dá-la e infalível porque a liberação da graça é sem falha.

Com a condenação dos ensinos de Pelágio no concílio Geral de Cartago, em 418, a controvérsia chegaria ao fim, não fosse os semi-pelagianos, liderados por João Cassiano, terem continuado a oposição a Agostinho, agora afirmando que somos capazes de cooperar. Cassiano insistia que embora a graça fosse necessária à salvação é o homem, e não Deus, que deve desejar o bem. Assim, a graça é dada a fim de que aquele que começou a desejar seja assistido e não para dar o poder de desejar. Para ele, o início das boas ações, bons pensamentos e fé, entendidos como preparação para a graça, é do homem. Portanto, a graça é necessária para a salvação final, mas não para dar a partida.

No alvorecer da Reforma, Martinho Lutero, nascido em 1483 na Alemanha, revive o agostianismo, afirmando que somos cativos do pecado. Seu livro "De servo arbitrio" é uma resposta a Erasmo de Roterdã, pensador católico romano que definiu o livre-arbítrio como "um poder da vontade humana pelo qual um homem pode se dedicar às coisas que o conduzem à salvação eterna, ou afastar-se das mesmas". Lutero nota que a definição de Erasmo não requer a graça para o homem se voltar para o bem ou para Deus. Em oposição a essa definição, afirma que o livre-arbítrio sem a graça de Deus não é livre de forma nenhuma, mas é prisioneiro permanente e escravo do mal, uma vez que não pode tornar-se em bem. Para Lutero, o livre-arbítrio do homem serve apenas para levá-lo à prática do mal e para a salvação sua dependência da graça é absoluta.

Talvez o nome mais relacionado à controvérsia sobre predestinação e livre-arbítrio seja o de João Calvino, nascido em 1509 na França. Sua ênfase sobre o tema pode ser resumida na expressão somos escravos voluntários. Para ele, quando a vontade humana está acorrentada ao pecado, ela não pode fazer sequer um movimento em direção à bondade, quanto menos persegui-la com firmeza. Calvino sempre procurou preservar a glória divina, por isso, no que concerne ao assunto, afirmou que o homem não pode apropriar-se de nada, por mais insignificante que seja, sem roubar de Deus a honra. Quanto ao homem, afirma que tendo sido corrompido pela queda peca não por propulsão violenta ou força externa, mas pelo movimento de sua própria paixão; e ainda, é tal a depravação de sua natureza que ele não pode mover-se e agir a não ser em direção ao mal. Calvino enfatiza a total dependência do homem da graça dizendo que é obra do Senhor renovar o coração, transformando-o de pedra em carne, dar a tanto a boa vontade como o resultado dela e colocar o temor ao Seu nome em nosso coração para que não retrocedamos.

Tiago Armínio, nascido em 1560 na Holanda, ensinava que somos livres para crer. Embora a controvérsia sobre arminianismo e calvinismo tenham colocado Armínio e Calvino em lados opostos, a verdade é que eles tem muito mais pontos em comum que divergentes. O ponto de afastamento é que Armínio considera que a graça pode ser resistida. Para ele, a graça é uma condição necessária para a salvação, mas não uma condição suficiente. Ou seja, sem a graça o homem é incapaz de aceitar a salvação, mas com a graça ele ainda é capaz de rejeitá-la.

Um ano após a morte de Armínio, seus seguidores, chamados Remonstrantes, apresentaram um protesto composto de cinco pontos, nos quais afirmavam que Deus elege ou reprova com base na fé ou incredulidade previstas, Cristo morreu por todos e cada um dos homens, embora só os crentes sejam salvos, o homem é tão depravado que a graça é necessária para a fé ou para a boa obra, mas essa graça é resistível e se o regenerado vai certamente perseverar requer maior investigação. Esses pontos foram respondidos no Sínodo de Dort, originando os chamados "Cinco Pontos do Calvinismo".

Em 1821, o advogado americano Charles Gladison Finney, nascido em 1792, converte-se ao cristianismo. Ele afirmava que não somos depravados por natureza. Para ele, se a natureza é pecaminosa, de tal forma que a ação é necessariamente pecaminosa, então o pecado em ação deve ser uma calamidade, e não pode ser crime, uma vez que a vontade do homem nada tem a ver com ele. Quanto a regeneração, ele a torna dependente da escolha humana, dizendo que nem Deus, nem qualquer outro ser, pode regenerá-lo se sua vontade não mudar de direção. Se ele não mudar a sua escolha, é impossível que ela possa ser mudada. Afinal, para Finney, a regeneração é mera mudança de escolha e de intenção. Ele negava que a regeneração envolvesse mudança na constituição da natureza humana. Em suma, o homem opera a sua própria regeneração.

Os cristãos modernos alinham-se a uma ou mais dessas ênfases. A igreja romana nunca deixou de afagar seu semi-pelagianismo latente. O arminianismo moderno é essencialmente remonstrante, de uma forma que até Armínio reprovaria. Os calvinistas atuais mantém as posições de Agostinho, Lutero e Calvino, conforme expressas nos Cânones de Dort. Infelizmente, Elvis pode ter morrido, mas Pelágio e Finney continuam vivos entre evangélicos.

PS.: Devo muito a R. C. Sproul na preparação desse resumo histórico.

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

19 de novembro de 2009

Que é o calvinismo? [2]

2. O calvinismo não é um sistema que se alegra com a destruição dos homens

A doutrina da predestinação é o “terror” de muitos crentes. É também objeto de muita controvérsia, e o ponto preferido de quem deseja caricaturar um calvinista.

Para muitos, o calvinismo é um sistema cruel: ele se alegra com a idéia de que alguns foram predestinados para o céu, enquanto outros estão reservados ao inferno. Não poucas vezes ouvi o “argumento emocional” - pessoas acusando os calvinistas de insensíveis. Há quem fale em tom melancólico a respeito das “criancinhas inocentes” que, por não se encaixarem no sistema exclusivista dos reformados, seriam lançadas no lago de fogo por toda a eternidade.

Muitos ainda pintam a figura de um Deus perverso, forçando uns a entrarem no céu contra a vontade deles, enquanto impede outros – bastante desejosos da salvação – de chegarem ao paraíso. Esta é, para eles, uma representação adequada do que ensina o calvinismo.

Novamente, não é necessário ser um grande estudioso para perceber que há algo errado em tais representações. Primeiramente, elas são caricaturas: trazem um elemento ora jocoso, ora raivoso, que impede a compreensão adequada do que se pretende refutar. A História está cheia de exemplos contrários a tais perspectivas.

Uma breve digressão: do ponto de vista doutrinário, a salvação das crianças está sujeita a alguma discussão – mesmo entre os reformados existem compreensões diferentes. Ainda assim, nenhuma dessas perspectivas considera as crianças inocentes diante de Deus – elas nasceram em pecado (Sl.51.5) e, se forem salvas, é pela graça de Deus, e não por uma inocência inerente a elas.

Voltando: os calvinistas seguem muito de perto o apóstolo Paulo. Ao começar a tratar da soberania de Deus na salvação, ele demonstra o amor pelos judeus perdidos, e fala que se entregaria, se isso tornasse possível a salvação deles (cf.Rm.9). Ainda assim, segue afirmando que Deus tem misericórdia de quem Ele quer.

Isso lembra o aluno de João Calvino – John Knox. Ele cria na verdade da predestinação, e orava suplicando a Deus: “Dê-me a Escócia ou eu morro!”. O próprio Calvino fundou uma academia para o treinamento de líderes e o anúncio do Evangelho, para que a salvação chegasse aos eleitos. O pai de missões modernas – William Carey – era um ferrenho calvinista, e encontrava nisso força para o evangelismo.

Como podem ser cruéis e se alegrarem com a destruição de muitos, se os calvinistas se esforçam na evangelização dos perdidos?

Muitos confundem submissão com agressividade. Explico: quando um reformado afirma que alguns foram predestinados para o céu e outros para o inferno, não está buscando ser agressivo. Apenas repete aquilo que crê ser a verdade da Escritura. A lógica de muitos que ouvem esse discurso é que, se o calvinista afirma isso, ele emocionalmente odeia os perdidos, e se alegra com a sua condenação. Não há nada que demonstre esse salto lógico.

Pelo contrário, o calvinismo, como demonstrado acima – e poderíamos passar vários posts dando exemplos – se preocupa com a evangelização e a salvação das pessoas. Mais ainda: nos países influenciados fortemente pelo calvinismo, não somente a destruição eterna foi combatida, mas as “destruições temporais”. Nesses lugares houve verdadeiro engajamento cultural para a transformação da realidade, a fim de que a graça de Deus fosse sentida em cada esfera.

A história dos primeiros missionários no Brasil, que eram calvinistas, desmente mais uma vez esta afirmação. Vieram para proclamar o evangelho, e terminaram mortos por sua fé. Quanto amor é necessário para entregar a vida pela causa do evangelho? Eu não diria que tais pessoas se alegram com a destruição...

Quer ler mais sobre esta proposição específica?
PACKER, J.I. Evangelização e a soberania de Deus. ?
SPROUL, R.C. Eleitos de Deus. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
SPURGEON, Charles H. Eleição. 4. ed. São José dos Campos: Fiel, 1996.
CRESPIN, Jean. A tragédia da Guanabara. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.
SELPH, Robert B. Os batistas e a doutrina da Eleição. 2. ed. São José dos Campos: Fiel, 1995.

18 de novembro de 2009

Bíblia e Predestinação [1] - O Deus Soberano

Confira a introdução da série clicando aqui.

Toda teologia e reflexão bíblica deveria ter Deus como o ponto de partida. No entanto, parece que não só a sociedade secular, mas também as igrejas ditas evangélicas se tornaram antropocêntricas e fazem do homem a medida de todas as coisas. As pregações, os artigos e os estudos se preocupam muito mais em compreender como Deus pode servir ao homem e em como ele pode conseguir favores e graças divinas do que em refletir sobre a natureza e os atributos do Criador. Desta maneira, muitos pastores e teólogos fazem da salvação e glorificação do homem o centro da Bíblia. A glória de Deus fica em segundo plano.

Essa mesma polarização se verifica nos embates entre a predestinação, defendida pelos calvinistas, e o livre-arbítrio, doutrina abraçada por não-calvinistas (o que inclui os arminianos e pessoas que dizem não ser nem calvinistas nem arminianos). Quase todos os cristãos concordam que Deus é Onipotente e, por isso, tem o poder de atuar diretamente na vontade de todos os seres humanos e determinar tudo o que acontece. Os reformados (outro nome dos calvinistas) creem que Deus não apenas tem esse poder, como, de fato, o usa. Já os não-reformados entendem que Deus limita o uso de seus poderes para resguardar a liberdade e a responsabilidade humanas. Para aqueles, Deus usa 100% de toda a potencialidade de Seus atributos. Para estes, em nome de um bem maior, a liberdade humana, o Senhor abre mão de usar todo o Seu poder.

Qual o lado correto? Creio que não precisamos fazer uma análise exegética de todos os versículos bíblicos que tratam dos atributos de Deus (isso renderia um volume de Teologia Sistemática de 700 páginas), mas sim vermos alguns textos-chave que resolvem a questão.

O Todo-Poderoso
A primeira pista está em um dos nomes usados por Deus na Bíblia: o "Todo-Poderoso". Esse é um dos nomes mais antigos de Deus, e está ligado à perfeição divina, como podemos ver em Gênesis:
Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o SENHOR e disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. (Gênesis 17:1)
Por que Abrão deveria ser perfeito? A resposta é que o Deus a quem Ele servia era Todo-Poderoso, o El Shadday. Ou, em outras palavras, Onipotente. A declaração divina a Abrão abre um diálogo onde Deus reafirma Suas promessas ao patriarca, de que ele seria o pai de muitas nações (Gn 17:4-6), que sua descendência viveria em aliança com Deus (Gn 17:7) e herdaria a terra de Canaã (Gn 17:8). O título "Todo-Poderoso" é a garantia dada por Deus de que Ele tinha o poder necessário para cumprir o que fora prometido.

Na verdade, a expressão "Todo-Poderoso" só faz sentido se, de fato, Deus não apenas tiver todo o poder, mas também se esse poder for, de fato, utilizado. Afinal, que utilidade há em ter a capacidade de fazer algo e ser impossibilitado de usar essa capacidade por alguma outra razão? Parece-me ilógico ou incoerente dizer que alguém é Todo-Poderoso e, ao mesmo tempo, dizer que ele não pode fazer determinada coisa, de modo que uma certa capacidade nunca seja utilizada.

Os não-reformados aqui me diriam que o amor é o limite. Em nome do atributo "amor", teoricamente superior aos outros, Deus limita o exercício de Seu poder (e de outros atributos, como a ira ou a justiça). Mas, pergunto: qual a base bíblica de tal afirmação? Onde pode ser lido, na Bíblia, que o Deus Todo-Poderoso limita a manifestação de Seus atributos por causa do amor?

Além do mais, não apenas na promessa divina a Abrão, mas em todas as promessas relativas ao futuro feitas por Deus, está implícita a intervenção divina na História. É o que veremos a seguir.

O Governador da Criação
O amplo domínio de Deus sobre a criação, incluindo-se aí os corações humanos, foi reconhecido por um rei pagão, cuja conversão é questionada por muitos evangélicos. Leiamos o que Nabucodonosor tem a dizer sobre o Senhor:
Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Daniel 4:35)
Algumas verdades simples do texto:

- Deus opera e age segundo a Sua vontade. Nada parece indicar que a vontade humana possa, de alguma forma, se sobrepor à divina.
- Deus opera com o exército do céu e os moradores da terra. Tanto anjos como homens estão à disposição de Deus, que pode nos usar para a realização de Suas obras como bem entender. Os seres inteligentes da criação estão sujeitos à discrição divina.
- Ninguém pode impedir as operações de Deus. Uma vez que Deus decida operar, seja por meio de um anjo ou de alguma nação, ninguém pode pará-Lo ou mesmo questionar a ação divina.

Isso pode ser visto, por exemplo, no controle exercido por Deus em cima dos reis:
Como ribeiros de águas assim é o coração do rei nas mãos do SENHOR, este, segundo o seu querer, o inclina. (Provérbios 21:1)
A mesma verdade, agora estendida a todos os homens, pode ser inferida da oração feita pelo profeta Jeremias:
Eu sei, ó SENHOR, que não cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos. (Jeremias 10:23)
Se não cabe ao homem, então é Deus quem determina o caminho dos seres humanos. Uma verdade que também foi confessada pelo rei Davi:
Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda. (Salmo 139:16)
De fato, Deus usa o Seu poder para governar e dirigir a Sua criação, incluindo-se aí os seres inteligentes e dotados de vontade, como é o caso de homens e anjos. Na verdade, a nossa dependência de Deus é maior do que imaginamos, pois até mesmo o mais empedernido ateu ou satanista só continua a existir porque o Senhor o sustenta:
Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas, (Hebreus 1:3)

O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem dá a vida, respiração, e tudo mais... (Atos 17:25)
Sem que Deus o sustente, e dê ao pecador a vida ou a respiração, o que ele poderia fazer? Nada. Logo, chegamos à mesma conclusão do apóstolo Paulo em Efésios 1:11:
nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade... (Efésios 1:11)
Tudo o que acontece foi predeterminado pelo Senhor. Nem o amor e nem a liberdade humana O impedem de, efetivamente, usar o Seu poder de controlar a vontade humana e cada aspecto de Sua criação. Afinal, segundo Jesus:
Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá sem o consentimento de vosso Pai. E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados. (Mateus 10:29-30)
A glória de Deus: o verdadeiro centro da Bíblia
Apesar de tantas evidências, a doutrina acima exposta encontra muita oposição e é dificílima de ser aceita. Isto porque estamos acostumados a encarar o mundo e a fé tendo o homem como centro e ponto de partida. De modo consciente ou inconsciente, a maioria das pessoas acredita que o objetivo supremo de Deus é promover a felicidade do ser humano. E nada poderia ser mais abominável do que pensar assim.

Por quê? Deus não ama o homem? Claro que ama! Mas Deus ama mais a Si mesmo. Nada do que existe foi feito para nós, antes tudo o que existe foi feito para Ele:
Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Romanos 11:36)
Isso significa que:

- A criação é de Deus e não do homem (dele);
- O desenvolvimento da História, da criação, é por meio de Deus e não do homem (por meio dele);
- A criação foi feita para Deus, e não para o homem (para ele).

Prezados, se o objetivo supremo de Deus fosse promover a felicidade humana, então o próprio Deus existiria para nos servir...e isso seria idolatria! Seria querer colocar o ser humano acima do próprio Senhor e Criador de tudo. O único homem que poderia reivindicar tal objetivo é Jesus, pelo fato dele mesmo ser Deus:
Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. (Colossenses 1:15-17)
Além do mais, Deus deixa claro que não dividirá a Sua glória com ninguém, o que inclui o ser humano. Se é assim, é razoável inferir que o Senhor não dividirá com a humanidade o objetivo da História:
Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois, não darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura. (Isaías 42:8)
Por todas as razões acima expostas, não devemos questionar a Deus, muito menos julgá-Lo por aquilo que Ele faz com a criação d'Ele. Da mesma forma que fazemos o que queremos com os nossos bens, Deus pode fazer o que bem entender com a Sua criação. Por isso, não devemos nos espantar quando a Bíblia reafirma esse direito divino:
Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra? (Romanos 9:20-21)
Ao contrário do que a má imaginação humana diria aqui, Deus não é nenhum tirano por agir assim. Ele está, simplesmente, sendo Deus. Se fosse menos, poderíamos nos referir a um semideus, mas não a um Deus verdadeiro, Senhor de Todas as Coisas e Onipotente. Tampouco, vemos aí um Deus mau, mas sim um Deus que manifesta todos os Seus atributos, exatamente como defendem os reformados:
E, passando o SENHOR por diante dele, clamou: SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniqüidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração! E, imediatamente, curvando-se Moisés, para terra, o adorou...(Êxodo 34:6-8)
Que, como Moisés, possamos reconhecer e adorar a um Deus que mostra, juntos, todos os seus atributos, tanto o amor como a justiça, segundo o Seu querer santo. Aleluia!

O próximo post da série você lê aqui.

Helder Nozima é pastor presbiteriano, blogueiro do Reforma e Carisma e escreve às quartas-feiras no 5 Calvinistas.

17 de novembro de 2009

Sobre os supostos textos “arminianos” da Bíblia[1] – Análise de 2 Pedro 2.1

“Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição” (Almeida Revista e Atualizada – ARA).

O primeiro texto supostamente “arminiano” que escolhi para início de conversa é o de 2 Pedro 2.1. O que faz este texto “parecer” arminiano é o uso que Pedro faz da palavra “resgatou” durante a sua descrição dos falsos profetas. Não é ilusão de ótica, meus caros. Realmente a Palavra está dizendo que pessoas renegaram a Deus após terem sido por Ele resgatadas. Será que este versículo compromete, de fato, a doutrina da perseverança dos santos, como querem os arminianos? Pedro não poderia ter escolhido uma palavra menos “comprometedora”? Por que ele fez isso? Nosso objetivo, aqui, é tentar responder a essas questões.

[Estudo da palavra “resgatou”]

A palavra que Pedro usou para “resgatou” é a palavra grega agorasanta (lit. “que comprou”), uma variação do verbo agorazō, que significa, literalmente, “comprar”. Esse verbo, bem como suas variantes, ocorre trinta vezes em todo o Novo Testamento, mas apenas em cinco dos casos ele se refere à “compra” de cristãos (vd. 1Co 6.20, 7.23; Ap 5.9, 14.3,4). No restante das ocorrências ele assume seu sentido comercial usual (e.g. Mt 13.44; Mc 6.36; Lc 14.18; Jo 4.8; 1Co 7.30; Ap 13.17). Alguém poderia objetar dizendo que a ocorrência no texto petrino que estamos considerando também se refere à “compra” de cristãos, o que aumentaria para seis o número de ocorrências da referida palavra com este sentido redentivo. Minha resposta a tal objeção é que Pedro, diferente dos outros autores das passagens citadas, não está se referindo ao rebanho que foi comprado pelo sangue de Jesus, a Igreja. Senão, vejamos:

    • 1Co 6.20: “Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo’’;
    • 1Co 7.23: “Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens”;
    • Ap 5.9: “e entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação”;
    • Ap 14.3,4: “3 Entoavam novo cântico diante do trono, diante dos quatro seres viventes e dos anciãos. E ninguém pôde aprender o cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil que foram comprados da terra. 4 São estes os que não se macularam com mulheres, porque são castos. São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. São os que foram redimidos [egorasthesan] dentre os homens, primícias para Deus e para o Cordeiro”.

No caso dos textos em 1 Coríntios, o que Paulo tem em vista é a nova situação dos crentes como escravos de Deus, já que foram comprados por alto preço por Ele. O argumento paulino (vd. contexto) é que os cristãos tem que viver à altura do nome que agora carregam. Já em Apocalipse, o que João tem em vista é a “compra” dos salvos, e tão somente destes, pelo sangue do Cordeiro (5.9). João ainda diz que somente os que foram “comprados da terra” é que podem entoar o novo cântico diante do trono (os 144 mil representam a totalidade dos eleitos). E ele finaliza dizendo que apenas “os que foram redimidos dentre os homens” é que foram capazes de manter sua fidelidade espiritual ao Deus que lhes comprou.

Definitivamente, parece não ter sido esta a sorte dos falsos mestres a quem Pedro se refere. Eles não viviam à altura do nome que arrogavam para si, visto que eram extremamente libertinos, avarentos, mentirosos, atrevidos, arrogantes, adúlteros e jactanciosos (vd. 2.2, 3, 10, 14 e 18). Sendo assim, eles jamais poderão cantar o “novo cântico” diante do trono (Ap 14.3), uma vez que não foram capazes de manter sua fidelidade doutrinária, espiritual e moral. Isso nos mostra que a incapacidade para tal deveu-se ao fato de os tais não estarem dentre aqueles homens que foram redimidos, a saber, os verdadeiros seguidores do Cordeiro (Ap 14.4). ABRE PARÊNTESE. Sei que os arminianos, aqui, vão discordar da Expiação Limitada. Nesse caso, paciência. FECHA PARÊNTESE. Sendo assim, então por que será que Pedro usou a palavra “resgatou”?

Bem. Mesmo com a correlação do texto petrino com os supracitados, esta pergunta ainda continua difícil de ser respondida. Porém, se atentarmos para o fato de que Pedro está fazendo um paralelo dos falsos mestres do NT com os falsos profetas do AT (ver Dt 13. Cf. 1Rs 22; Jr 23; Ez 13; Zc 13.4), poderemos extrair o sentido que ele quis emprestar à palavra em questão. É somente dessa forma que poderemos justificar o uso que ele faz do referido termo.

Jesus comparou o reino dos céus a uma rede que, “lançada no mar, recolhe peixes de toda espécie” (Mt 13.47). Essa verdade pode muito bem ser aplicada ao povo de Israel. Pensemos na saída do povo do Egito nesses termos, por um momento (ou seria “forçar demais” o texto?). Quando por ocasião do êxodo do Egito a “rede” foi lançada, não devemos pensar que apenas “peixes bons” foram fisgados, e sim que também havia “peixes ruins” no meio. Ou seja, nem todo mundo que saiu de lá era crente de fato! A própria história nos mostra que, não obstante o fato de serem hebreus, nem todos faziam parte, de fato, do povo da Aliança. É Paulo mesmo quem fala que “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (Rm 9.6). Do Egito saíram homens corajosos como Josué e Calebe, mas também ímpios revoltosos como Corá, que foi tragado vivo, com todos os seus, pela terra que Deus fez abrir debaixo dos seus pés (Nm 16). Quando o povo foi murmurar contra Moisés e Arão dizendo que estes haviam matado o “povo do Senhor” (Nm 16.41), o próprio Deus se encarregou de exterminar, mediante terrível praga, o restante da massa incrédula, totalizando “catorze mil e setecentos, fora os que morreram por causa de Corá” (Nm 14.49). Ora, Corá e os rebeldes foram “resgatados” do Egito também, mas eles eram “povo de Deus”?

Penso que aqui criamos uma ponte para a nossa compreensão do motivo pelo qual Pedro resolveu usar a palavra “resgatou”. Pedro não está falando de um resgate efetivo, e sim, de um resgate potencial. Ou seja, não é a “graça especial” (aquela que é derramada apenas sobre os eleitos) que ele tem em mente, e sim, a “graça comum” (aquela que Deus derrama sobre toda a humanidade)[1]. Para esclarecer melhor este ponto, voltemos por um instante à parábola de Jesus em Mateus 13.47-50. Como é que Jesus a conclui? Ele diz que os pescadores, ao chegarem à praia, assentam-se para escolher os peixes bons para o cesto, ao passo que os ruins são deitados fora. “Assim será na consumação do século: sairão os anjos, e separarão os maus dos justos, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (vs. 49,50). Isto significa que os incrédulos (os “peixes ruins”) poderão “pegar carona” no barco somente até à hora em que ele ainda está navegando. Mas ai deles quando o barco chegar à praia e os pescadores começarem a ver quem é quem!

[Mais dois argumentos]

Embora eu acredite que a parábola e o restante da explanação por si só já tenham sido suficientes para lançar luz sobre a questão em geral, particularmente sobre o uso que Pedro fez da palavra “resgatou”, gostaria de usar apenas mais dois fatos para reforçar minha argumentação.

1) A certeza que Pedro tem quanto ao juízo que Deus derramará sobre os falsos mestres indica que eles jamais estiveram nos planos salvíficos de Deus. Pedro diz que a condenação dos falsos mestres não é uma “ideia recente” na mente de Deus, e sim que “para eles o juízo lavrado há longo tempo não tarda, e sua destruição não dorme” (2.3). Pedro, na realidade, já havia declarado algo semelhante na sua primeira carta, ao dizer que os construtores da auto-justificação vieram à existência justamente para tropeçarem na “Pedra de tropeço”, que é Cristo (1Pe 2.8). ABRE PARÊNTESE. É por essas e outras que sou supralapsariano. FECHA PARÊNTESE. Pedro, então, usa alguns exemplos da história do Antigo Testamento para reiterar ainda mais o seu parecer sobre o destino desses ímpios. Ele faz citações da queda dos anjos (v. 4); do dilúvio (v. 5); e da destruição de Sodoma e Gomorra(v. 8). E aqui temos algo revelador. Se o salvo pode mesmo perder a salvação, como os arminianos afirmam, então o versículo 9 não deveria estar nesse contexto, pois ele diz que “o Senhor sabe livrar da provação os piedosos e reservar, sob castigo, os injustos para o Dia do Juízo”. O exemplo que Pedro usa para realçar tal verdade é o livramento que o Senhor deu ao justo Ló (v. 7,8). Posteriormente Pedro ainda fará uma referência a Balaão, o profeta que se extraviou do reto caminho, amando o “prêmio da injustiça” (v. 15,16). Para pessoas desse tipo, o apóstolo diz que o que Deus reserva é apenas juízo e trevas medonhas (cf. v. 4, 9 e 17).

2) Alguns adjetivos que Pedro usa indicam que esses tais que se diziam cristãos, na realidade, nunca o foram. Se os leitores observarem todo o contexto da passagem, logo perceberão que Pedro não fica fazendo rodeios nem se utiliza de eufemismos para dar aos hereges a classificação que lhes cabe. Sem melindres diplomáticos, Pedro os tacha diretamente de “falsos”. Ele não diz, por exemplo, que os tais eram “falsos profetas que foram verdadeiros um dia”. Essa verdade ganha realce empolgante no final do versículo 22, onde Pedro compara os falsos crentes com porcos: “com eles aconteceu o que diz certo adágio verdadeiro [...]: a porca voltou a revolver-se no lamaçal”. Mais uma vez, Pedro não diz, nem ao menos sugere, que eles já foram ovelhas um dia, mas que, agora, sofreram uma “mutação” e se transformaram em porcos. Não. Pedro, seguindo o seu raciocínio anterior de que tais pessoas são “como animais irracionais, que seguem a natureza” (v. 12), arremata falando que o porco, por alguns instantes de aparente bem-estar higiênico, voltou ao seu habitat natural - a lama! É justamente essa verdade que o apóstolo João endossa quando diz que os falsos mestres “saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos" (1 Jo 2.19).

[Conclusão]

Infelizmente, no momento não tenho como me antecipar a absolutamente todas as objeções que os arminianos porventura venham a levantar ao que foi acima explanado. Isso tornaria a exegese forçada e o trabalho cansativo. É por este motivo que o melhor a fazer é esperar até à próxima postagem da série. Até lá!

Soli Deo Gloria!

Leonardo Galdino.


[1] Aqui Pedro não está se referindo à “compra” realizada por Jesus na cruz, visto que o termo no original grego que ele utiliza para “Soberano Senhor” é a palavra despotes. Sugere-se que, aqui, ele esteja se referindo a Deus o Pai, uma vez que quando ele quer se referir ao senhorio de Jesus a palavra que ele geralmente usa é kyrios (cf. v. 20). Isso não significa que o “resgate” do Pai é menos efetivo do que o do Filho, e sim que o que Pedro tem em vista ao fazer uso da palavra “resgatou” é a graça comum de Deus sobre os homens.

16 de novembro de 2009

Breve comparação entre arminianismo e calvinismo

Antes de apresentar as diferenças, é necessário salientar que este é um debate intramuros de irmãos em Cristo. Não se levanta a questão para se saber quem é salvo e quem não é, tampouco para descobrir quem é o mais espiritual, pois em ambos os lados há pessoas verdadeiramente convertidas e de vida piedosa. Porém, não se pode dizer que o tema é irrelevante, haja vista que nossa vida diária, o culto que oferecemos ao Senhor e o serviço que prestamos em Sua Obra são influenciados pela maneira como entendemos essas questões. Os parágrafos seguintes apresentam as duas opções teológicas da forma mais imparcial possível.

O calvinismo entende que o homem é absolutamente incapaz de ir a Cristo, pois está morto espiritualmente e precisa antes de qualquer ação de sua parte ser vivificado em seu espírito e renovado em sua vontade. O arminianismo entende que o homem tem livre-arbítrio pelo qual pode crer e aceitar a Cristo, para depois ser regenerado.

O calvinismo crê que Deus escolheu de forma soberana e graciosa aqueles a quem iria salvar, sem que nada neles os habilitasse a isso, nem mesmo fé antevista. Os arminianos crêem que Deus escolheu aqueles que Ele pela Sua presciência viu que iriam responder com fé à oferta do evangelho.

Os calvinistas afirmam que Jesus Cristo morreu para tornar certa a salvação daqueles que Deus havia escolhido na eternidade. O arminianismo ensina que Jesus morreu para tornar possível a salvação de todos e cada um dos homens.

O calvinismo crê que os eleitos são chamados de forma eficaz, de modo que todos sejam salvos. O arminianismo crê que a graça pode ser resistida e de fato é por aqueles que não crêem.

Os calvinistas crêem que todos os que foram verdadeiramente regenerados irão perseverar certamente. Os arminianos acreditam que crentes nascidos de novo podem vir a cair da fé e perder a salvação.

Apresentadas estas diferenças, convém esclarecer alguns mal entendidos de parte a parte.

Não é certo dizer que os calvinistas acreditam que o homem é como um robô ou fantoche, pois eles acreditam que os homens são seres morais livres. E não é correto afirmar que os arminianos ensinam que o homem pode ser salvo apenas pela sua vontade, sem a assistência da graça.

Não é verdade que os calvinistas defendem uma eleição arbitrária, tipo um sorteio cósmico, pois fazem a eleição depender de um Deus que é soberano, sábio e bom. Também não é certo afirmar que os arminianos negam a doutrina da eleição, pois afirmam a eleição ou pela presciência ou de forma corporativa.

Não e correto afirmar que os calvinistas limitam o valor da morte de Cristo, pois eles afirmam que ela é suficiente para salvação de todos os homens. E não é verdade que os arminianos defendem o universalismo, pois a fé é ressaltada como necessária à salvação e nem todos crêem.

Não é verdade que os calvinistas crêem que Deus obriga as pessoas a amá-lo, pois o que Deus faz é mudar a disposição do coração do homem, para que o ame voluntariamente. Também não é verdade que os arminianos ensinam que a graça ajuda mas não é imprescindível à salvação.

Finalmente, não é verdade que os calvinistas defendem que os crentes serão salvos de qualquer jeito, mesmos que percam a fé. E é mentira que os arminianos afirmam que a salvação depende totalmente do crente.

Nestes pontos, o que é comum aos dois sistemas é que ambos admitem os efeitos da queda, variando o grau e a extensão desses efeitos, que ao final nem todos os homens são salvos, sendo que a fé a incredulidade caracterizarão os salvos e os perdidos, respectivamente, que a salvação do homem depende da obra de Cristo em seu favor na cruz, que a chamada pelo Espírito Santo é necessária e que todos dos que forem salvos terão perseverado. É em detalhes, pequenos mas fundamentais, que estão as diferenças que distinguem os dois sistemas.

Finalmente, não se pode afirmar que os dois sistemas estão certos. Nem que um deles está 100% certo e o outro 100% errado. Contudo, um deles conta com o testemunho mais abrangente, profundo e consistente das Escrituras. E, portanto, deve ser aceito como o que mais se aproxima da verdade revelada. O estudo cuidadoso e com disposição para abandonar pressupostos em nome da verdade bíblica revelerá qual deve receber nossa aprovação.

Soli Deo Gloria

14 de novembro de 2009

Sobre os supostos textos “arminianos” da Bíblia [0] – Questões Introdutórias

Antes de adentrar nas “questões introdutórias” propriamente ditas, gostaria de esclarecer algumas coisas sobre os motivos que me levaram (na realidade, que estão me levando) a escrever essa série. Tenho visto que nos últimos anos a internet, especialmente a blogosfera, tem se tornado o espaço preferido para as mais efusivas discussões (talvez porque dispense o “constrangimento” de uma acareação). “A arena está montada e só se digladia quem tem pulso!” – é mais ou menos este o discurso que paira implícito (e explícito, por vezes) em alguns ciberespaços. No entanto, percebo que pouco do que se diz tem sido realmente proveitoso ou produtivo. Na maioria das vezes esse pretenso “pulso” não tem se mostrado como firmeza na Verdade por Deus revelada, e sim, como firmeza no próprio “pulso” carnal – nas especulações vãs e irracionais da mente humana decaída, de modo que o foco na edificação mútua e no compartilhamento da “fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3) tem sido paulatinamente perdido. Contudo, isso não quer dizer que um “caloroso” debate seja ruim, e vou tentar explicar o porquê.

[Adentrando nas “questões introdutórias” – uma defesa da relevância da discussão]

Algum tempo atrás me envolvi num debate sobre a doutrina da perseverança dos santos, no blog de um famoso e influente pastor pentecostal (preciso citar quem foi?), que respondia com um “sim” à seguinte pergunta: “É possível perder a salvação, se ela nos foi concedida pela graça de Deus”? Na oportunidade, fiz alguns comentários (uns publicados, outros não, sei lá por que) pertinentes ao assunto, no intuito de apresentar as razões bíblicas pelas quais o parecer do referido pastor era inconsistente. O pastor em questão também apresentou mais alguns textos bíblicos para dar suporte ao seu ponto de vista, e o resultado foi que a discussão ficou “inacabada”, pois resolvi sair dela, o que foi interpretado por alguns seguidores do blogueiro anfitrião como um “pedido de arrego” de minha parte. Recentemente meus amigos blogueiros Clóvis e Helder Nozima (do Cinco Solas e do Reforma e Carisma, respectivamente) se envolveram num debate intenso com o Prof. Leandro Quadros, do programa de televisão e site adventista Na Mira da Verdade. Na ocasião, o pivô da discussão foi a doutrina da predestinação, na qual o referido professor mirou, mas errou (acho que por problemas de vista), embora tenha apresentado uma “enorme” lista de 48 textos (na realidade foram 56) que, segundo ele, “mostram ser possível o predestinado se perder”, o que “leva qualquer leitor a concluir que o calvinismo carece – e MUITO – de base bíblica”.

Diante de exemplos como os supracitados, paira no ar a seguinte pergunta: já que cada um usa a Bíblia para apoiar seu próprio ponto de vista, e como muitas das vezes o uso que elas fazem do texto sagrado parece ser coerente, quando é, então, que uma discussão sobre certos assuntos é relevante? Não seria essa uma “guerrinha de egos” somente para definir quem está com a razão?

Devo admitir que, de fato, na maioria dos casos as discussões tem se transformado mesmo em disputas puramente egocêntricas, onde a humildade é esquecida em prol do afã de se ganhar a disputa (inclusive este que vos escreve já agiu assim, por algumas vezes). Nesse caso, o debate, ainda que seja sobre um tema de extrema relevância, tornar-se-á não apenas inútil, mas, também, nocivo. Porém, creio que há uma “possibilidade de redenção” para a necessidade de se debater. Eu diria que isso se dá apenas quando ambas as partes se dispõem a se submeterem à Verdade. E aqui é bom que se diga que a Verdade é uma só. ABRE PARÊNTESE. Sei que essa minha declaração pode soar deveras soberba e exclusivista (além de “suspeita”), mas, sinceramente, não estou nem um pouco preocupado com isso, contanto que minhas assertivas estejam respaldadas pela Verdade contida na Palavra. FECHA PARÊNTESE.

[Chegando mais perto…]

Muitos são os textos que os arminianos (ainda que alguns deles não gostem de ser chamados assim, pois preferem ser chamados de “bíblicos”, ou “equilibrados”) usam para tentar legitimar suas doutrinas e pareceres sobre certos assuntos em que divergem da teologia reformada. Essa divergência geralmente dá-se em virtude da soteriologia calvinista, resumida em cinco pontos pelos seus próprios oponentes arminianos (para um breve resumo histórico, clique aqui). O famoso acróstico TULIP os resume: Total depravação, Uma eleição incondicional (Predestinação), Limitada expiação, Irresistível graça e Perseverança dos santos. Ainda que nós, reformados, saibamos perfeitamente que o calvinismo é muito mais do que soteriologia, devemos admitir que a doutrina da salvação é realmente o ponto nevrálgico dessa disputa.

Quanto a este último particular, há quem diga que uma leitura ipso facto da Bíblia favorece mesmo a algumas das interpretações que os arminianos advogam como verdadeiras. Talvez seja esse um dos principais motivos pelos quais o arminianismo seja mais palatável à maioria dos cristãos de hoje. Ora, se Paulo mesmo fala que Deus “deseja que todos os homens cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Tm 2.4), e que Jesus “a si mesmo se deu em resgate por todos” (1Tm 2.6), os arminianos não estão porventura corretos quando afirmam que a morte de Jesus foi para salvar a toda a humanidade, e não apenas aos eleitos? Não é de fato esta a primeira impressão que se tem quando se depara com um texto tão “claro” como esse?

Bem, a discussão relativa ao referido texto propriamente dito, bem como tudo o que envolve sua exegese, ficará para as próximas postagens (que não será necessariamente a próxima). Nesse momento basta dizer apenas que o grande problema da visão arminiana é, primariamente, um problema de referência. Sem medo de parecer arrogante ou coisa que o valha, afirmo, sem meias palavras, que o sistema arminiano (ou qualquer outro que procure limitar Deus em Seus atributos) é puramente humanista em seu âmago, visto que o homem, e não Deus, é sempre tomado como o ponto de partida nas discussões. E, ainda que vários textos da Bíblia sejam usados para apoiar seus argumentos, os mesmos mostrar-se-ão completamente falsos se o referencial certo (ou seja, o próprio Deus) não for devidamente considerado. Este ponto é de crucial importância para qualquer tipo de abordagem que se queira fazer envolvendo as verdades eternas.

[Um testemunho]

A esta altura considero ser oportuno comentar algo. Penso que boa parte dos reformados, na qual me incluo, já se sentiu profundamente inquieta diante de textos como os supracitados quando iniciaram sua jornada pelas Antigas Doutrinas da Graça (das quais o calvinismo é apenas um “apelido”, digamos). Como nem sempre assimilamos tudo de uma vez só, creio que muitos de nós já questionamos até mesmo a validade da perspectiva que resolvemos abraçar. Eu, particularmente, não abracei todos os cinco pontos logo de imediato, mas a posteriori (a “conta-gotas”, digamos). Resisti por um tempo à doutrina da predestinação, que é tida (erroneamente) como o coração do calvinismo. Mas depois de muito meditar na Palavra percebi que, se Deus não predestinasse, ninguém poderia ser chamado eficazmente pelo Espírito, nem justificado dos seus pecados, o que significa que ninguém jamais seria glorificado naquele glorioso Dia (cf. o silogismo paulino em Rm 8.30). Mas não foi o medo de ser tachado como um “calvinista manco” (de quatro pés, ou melhor, pontos) ou coisa do tipo que me fez acatar a doutrina da predestinação. Eu o fiz simplesmente por perceber uma unidade intrínseca entre cada ponto, bem como a interdependência deles entre si. E foi pensando nessas questões que me decidi a escrever sobre o que fazer com aqueles textos supostamente “arminianos” da Bíblia.

[Considerações finais]

Em princípio, meu objetivo é analisar apenas os textos que os arminianos usam como “provas irrefutáveis da falácia calvinista”, mas não prometo que será sempre assim. Paralelo aos textos que os arminianos pervertem, pode ser que eu coloque outros textos, apelando para o princípio hermenêutico de que a Bíblia se auto-interpreta. Na medida do possível também pretendo expor algumas das falácias hermenêuticas e exegéticas mais comuns em nosso meio (acadêmico, clerical ou leigo), mas somente o farei quando for pertinente. Espero em Deus que essa série possa se tornar útil para todos aqueles que, como eu, desejam “manejar bem” a Palavra da Verdade (2Tm 2.15), e que, nisso tudo, somente Deus seja glorificado.

Soli Deo Gloria!

Leonardo Galdino.