23 de janeiro de 2012

Pastoras pelo casamento

Em minha denominação (O Brasil Para Cristo) há um movimento em favor da aprovação da ordenação de mulheres ao ministério pastoral. Por ser minoria, o movimento não tem logrado êxito em aprovar na Assembleia Nacional a sua petição, que aliás sofre grande rejeição por parte da maioria dos ministros. Em vista disso, tem sido adotada uma estratégia no mínimo sorrateira para tornar o termo pastora mais palatável no arraial brasilparacristiano: atribuir o título de pastora às esposas de pastores. De uma hora para outra, centenas de mulheres viraram pastoras e são assim distinguidas nas congregações e em congressos, simplesmente por terem se casado com pastores.

As razões apresentadas geralmente são três. São esposas de pastoras, logo, compartilham do ministério de seus maridos. Elas exercem funções que são próprias ao ministério pastoral, logo, são pastoras. E, finalmente, participam das agruras ministeriais de seus maridos, então é justo que sejam honradas tal qual eles são com o título de pastor.

Em relação ao primeiro argumento, é bom que se diga que a chamada para o ministério é pessoal ou melhor dizendo, individual. Pedro era casado, mas quando foi chamado para o apostolado, o chamado dizia respeito a ele somente. Mesmo que sua esposa a acompanhasse em suas viagens ministeriais, não era apóstola nem era chamada assim pela igreja. Paulo ao referir-se ao fato de Pedro e outros oficiais se fazerem acompanhar de suas esposas, não as chama de pastoras. “Porventura não temos o direito de levar conosco uma crente como esposa, como também os outros apóstolos, e os irmãos do Senhor, e Cefas?” (1Co 9:5). O fato de serem esposas de apóstolos não as distinguia como apóstolas. Elas são “uma crente esposa”, ou mais literalmente, “uma irmã esposa”. O casamento que faz homem e mulher uma só carne, não os torna um só ministério.

A mulher casada com um pastor não exerce por isso a função pastoral. Embora possa exercer na igreja algumas atividades que seu marido pastor também exerce, ela não faz na condição de pastor. É justo e ordenado que ela ensine as mulheres mais jovens, pois Paulo ordena “que instruam as mulheres moças a amarem seus maridos e seus filhos” (Tt 2:4). Podem e devem seguir o exemplo de Eunice que ensinou seu filho ao qual Paulo disse “desde a infância sabes as sagradas letras que te podem instruir para a salvação pela fé que é em Cristo Jesus” (2Tm 3:15). Porém, o mesmo Paulo vedou a elas o ensino autoritativo na congregação, atribuição do pastor: “não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem” (1Tm 2:12). Outros homens na congregação desenvolvem ministérios que se assemelham em aspectos ao ministério pastoral, mas nem por isso são ou devam ser chamado de pastores.

Alega-se, ainda, que ser esposa de pastor exige sacrifícios extras e que por isso é justo que ela seja honrada com o nome de pastora. Porém, alguma coisas devem ser ditas em relação a isso. A primeira, é que o termo pastor (e seus equivalentes presbíteros e bispos) não se refere a títulos honoríficos nas Escrituras, mas a função que essas pessoas exercem. Apóstolo, pastores, bispos, presbíteros etc. nunca aparecem antecedendo o nome da pessoa, como em títulos, mas sempre depois deles, como as funções. Em segundo lugar, se sofrimento e sacrifício rendesse título, o mais apropriado seria o de mártir, e não de pastor. Em terceiro lugar, não é apenas a esposa do pastor, mas toda a família afetada pelo ministério. Os filhos também o são, mas nem por isso devem ser chamados de pastorzinhos na igreja. Na lista de qualificações para o pastorado consta “que saiba governar bem a sua casa, tendo seus filhos em sujeição com todo o respeito” (1Tm 3:4), ou seja, esposa e filhos afetam e são afetados pelo ministério do marido e pai, mas não a ponto de reinvidicarem serem honrados ou distinguidos na igreja com títulos.

Disso tudo se desprende que é incabível esposa de pastor serem chamadas de pastora. A intenção disso é distinguir entre irmãos na igreja, o que é sempre danoso ao Corpo. Temos funções diversas, pois o Espírito nos usa com uma diversidade de dons, ministérios e operações, conforme Ele quer. Mas jamais devemos nos basear nisso para distinguirmos entre irmãos, pois isso, no dizer de Paulo, é pura carnalidade. Nenhum tratamento é mais honroso e deve ser mais almejado do que ser chamado de irmão e irmã.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

16 de janeiro de 2012

O controverso coração de Faraó

“Pois disse a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder, e para que seja anunciado o meu nome por toda a terra. Logo ele tem misericórdia de quem quer, e a quem quer endurece” (Rm 9:17-18).

Muitos crentes não gostam da ideia de Deus endurecer o coração de alguém. Aliás, nem mesmo apreciam o fato de que Deus use de misericórdia com quem Ele quiser, ao invés de com todo mundo. Em que pese o desagrado de muitos, a Bíblia não apenas afirma que Deus tem misericórdia de quem Ele quer, mas também que endurece a quem deseja endurecer. Um exemplo deste último caso é Faraó.

É líquido e certo o fato do coração de Faraó ter sido o endurecido. Reiteradas vezes a Bíblia diz “endureceu-se o coração de Faraó, e não os ouviu” (Gn 7:3, 22; 8:19; 9:35). Endurecer significa fortalecer, prevalecer, firmar, tornar resoluto, persistente. Numa palavra bíblica: tornar obstinado: “o coração de Faraó estava obstinado, e não deixou ir o povo” (Ex 9:7). A questão é: quem endureceu o coração do rei?

Se nos deixarmos levar por nossos compromissos teológicos previamente assumidos, corremos os risco de selecionar e considerar relevante apenas as passagens que dizem que o próprio Faraó endureceu seu coração, ou então somente aquelas que afirmam que Deus endureceu o coração do rei do Egito. Ainda que um despimento completo de preconceito seja virtualmente impossível, convém que examinemos todas as passagens que falam do endurecimento do coração de Faraó, antes de afirmarmos uma posição.

A primeira referência direta (vide Ex 3:19 para uma indireta) ao endurecimento do coração de Faraó está em Êxodo 4:21: “Eu endurecerei o seu coração, e ele não deixará ir o povo”. Essa declaração divina se repete mais duas vezes (Ex 14:4, 17). Além disso as escrituras dizem “Jeová endureceu o coração de Faraó, e este não ouviu; como Jeová havia dito a Moisés” (Ex 9:12). Novamente, a declaração se repete algumas vezes (Ex 10:20; 11:10; 14:8). Não há como negar que Deus endureceu o coração de Faraó. E para os que dizem que Moisés estava se expressando condicionado ao modo de pensamento hebraico, Deus mesmo diz “Eu endureci o seu coração e o coração dos seus servos, para que eu manifeste estes meus prodígios no meio deles” (Ex 10:1).

Mas há também aquelas passagens que afirmam que Faraó endureceu o seu próprio coração e que não devem ser ignoradas. A primeira delas está em Êxodo 8:15: “Mas vendo Faraó que havia descanso, endureceu o seu coração, e não os ouviu; como Jeová havia dito”. Um pouco adiante diz “endureceu Faraó ainda esta vez o seu coração” (Ex 8:32) e finalmente “tendo Faraó visto que a chuva e a saraiva e os trovões haviam cessado, tornou a pecar e endureceu o seu coração” (Ex 9:34). Essas passagens bíblicas tomadas em seu conjunto devem nos levar à conclusão que tanto Deus endureceu o coração de Faraó, como ele próprio endurece-se a si mesmo. Porém, alguma coisa mais poderia ser dita a esse respeito.

Primeiro, a decisão de Deus de endurecer o coração de Faraó antecede o endurecimento por parte de Faraó. Deus tomou a iniciativa de endurecer o coração dele (Ex 4:21). Tanto é assim que quando a Bíblia refere-se ao endurecimento por parte de Faraó, acresce “como Jeová havia dito”. Segundo, o número de referências ao endurecimento produzido por Deus é significativamente maior. Estatísticamente falando, Deus endurece mais vezes que Faraó. Em terceiro lugar, no endurecimento de Faraó Deus age e ele reage. Deus não fez maravilhas no Egito para amolecer o coração duro de Faraó, fez sim para manifestar a Sua glória através do endurecimento gradual do coração do rei. Deus tinha um propósito, e o endurecimento do coração do rei servia a esse propósito. Finalmente, a escritura coloca a decisão de quem será endurecido e quem receberá misericórdia nas mãos de Deus. Conforme Paulo declara, depende da vontade de Deus e não da vontade do homem receber misericórdia ou ser endurecido.

Concluímos dizendo que Deus é soberano e exerce Seu domínio no coração do homem, seja dispondo para o bem, seja endurecendo para a Sua glória. Há várias passagens que colocam isso acima de qualquer dúvida sensata. E que não obstante isso ser assim, o homem ainda é responsável pelo próprio endurecimento do coração. Não entender como isso se dá não invalida o que a Bíblia diz a esse respeito e tampouco é desculpa para rejeitar ou tentar amenizar o que a Escritura afirma categoricamente.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

9 de janeiro de 2012

O Espírito de Deus tem ciúmes?

Ou cuidais vós que em vão diz a Escritura: O Espírito que em nós habita tem ciúmes? Tg 4:5 (ACF2007)

Esta é uma passagem que apresenta considerável dificuldades de compreensão, se examinada mais atentamente e à luz de seu contexto. A questão que se levanta é se espírito se refere ao Espírito Santo, ao espírito humano ou a um espírito maligno. O que dá espaço à polêmica é a conotação negativa do termo ciúme, agravada pelo fato da passagem citada por Tiago não ser encontrada no Antigo Testamento na forma em que é expressa.

A dificuldade é evidenciada pela variedade de formas com que “προς φθονον επιποθει το πνευμα ο κατωκησεν εν ημιν” (literalmente “com ciúme anseia o espírito que fez habitar em nós”), é traduzido. A Almeida Revista Corrigida diz “o Espírito que em nós habita tem ciúmes”, a Tradução Brasileira “com zelos anela por nós o Espírito que ele fez habitar em nós”, a Almeida Revista traduz “o Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme”, a Almeida Revista e Atualizada “é com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós” e a NVI traz “o Espírito que ele fez habitar em nós tem fortes ciúmes”. A Bíblia de Jerusalém apresenta “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?” e a Almeida Revista e Corrigida Anotada traz a seguinte alternativa: “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”.

Traduções em linguagens mais modernas também apresentam várias possibilidades. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje diz “o espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”, a Bíblia Viva traduz “o Espírito Santo, que Deus pôs em nós, vigia sobre nós com terno ciúme” e a Versão Fácil de Ler “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”. Como se vê, pela simples comparação de traduções e versões fica difícil chegar a um consenso. É difícil até mesmo concluir se se trata de uma afirmação (“o espírito tem ciúmes”) ou uma pergunta (“o espírito tem ciúmes?”).

A palavra ciúme

Qual é o significado real do termo traduzido como ciúme? Ele deve ser tomado num sentido bom ou mau? No grego secular o termo phtoneo significa inveja “que faz com que alguém tenha ressentimento contra outra pessoa por ter algo que ele mesmo deseja, sem porém, possuí-lo” (DITNT). Embora pareça ser sinônimo de zelos, ciúme, os escritores clássicos distinguem um do outro. Enquanto zelos é “o desejo de ter aquilo que outro homem possui, sem necessariamente ter ressentimento contra aquele que o possui”, pthonos “se ocupa mais em privar o outro da coisa desejada do que em obtê-la”.

No Novo Testamento, a forma verbal ocorre apenas uma vez, enquanto que o substantivo aparece nove vezes. Em Gl 5:26 “invejando-nos uns aos outros” contrasta com “viver no Espírito” (Gl 5:25). Nas epístolas aparece em várias listas de qualidades más. Em Gl 5:21 é uma “obra da carne”, em Rm 1:29 é uma característica daqueles a quem Deus entregou a um “sentimento perverso”, e em Tt 3:3 dos inconversos. Em 1Pe 2:1 é algo que os crentes devem deixar para trás, 1Tm 6:4 diz que nasce de questões e contendas de palavras motivadas pela soberba. Os evangelhos (Mt 27:18; Mc 15:10) nos informam usando esse termo que foi por inveja que os líderes religiosos entregaram Jesus a Pôncio Pilatos. Em Fl 1:15 o termo é contrastado com “boa vontade”.

O que se pode concluir do uso bíblico de phthonos é que refere-se a um “sentimento de desgosto produzido por testemunhar ou ouvir falar da vantagem ou prosperidade de alguém” (Vine). E devido a esse sentido sempre negativo, jamais é utilizado em referência a Deus ou ao Espírito Santo, e se em Tg 4:5 o sujeito é Deus ou o Espírito Santo, trata-se de uma excepcionalidade e tanto.

O texto citado por Tiago

É impossível identificar com certeza qual passagem Tiago tinha em mente. Alguns acreditam que que ele não se referia a nenhuma passagem específica, mas fazia um resumo do ensino do Antigo Testamento. Porém a fórmula de introdução que usa, “a escritura diz” parece requerer uma citação direta. Vejamos algumas das possíveis passagens, sem pretender esgotar as alternativas.

Algumas passagens dizem que Deus é zeloso. Êxodo 20:5 diz que “eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso” e noutra parte “o nome do SENHOR é Zeloso; é um Deus zeloso” (Ex 34:14). Esse zelo divino é primeiramente voltado para a Sua glória, mas também por aqueles que lhe pertencem: “Zelei por Sião com grande zelo, e com grande indignação zelei por ela” (Zc 8:2). Esse zelo faz de Deus um fogo consumidor “o SENHOR teu Deus é um fogo que consome, um Deus zeloso” (Dt 4:24). Porém uma informação deve ser dada aqui. O termo hebraico usado nessas passagens, e em outras correlatas, quando citadas no Novo Testamento ou traduzidas na Septuaginta, é sempre zelos e nunca phthonos.

Uma passagem contraposta a essas é Gn 4:7: “Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar”. O que dizem que essa é a passagem que Tiago tinha em mente advogam que ciúme não tem a ver com o zelo divino, e sim com desejos pecaminosos dos homens. Nesse caso, espírito é usado em contraposição ao Espírito Santo. “Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam” (Gl 5:17). Outras passagens poderiam ser sugeridas (Gn 6:3; Is 63:8–16; Ez 36:17; Zc 1:14; 8:2-3), mas infelizmente não ajudam a elucidar a questão.

O sujeito da oração

Tendo levantado as questões anteriores, podemos nos voltar para a discussão da identidade do espírito. Faremos isso considerando quem é o sujeito na oração. As possibilidades são Deus, o Espírito Santo, o espírito do homem e o espírito maligno.

Até onde pude constar a única tradução que se aproxima (a conclusão é questão de interpretação) de um espírito maligno aqui é o Novo Testamento Judaico: “Ou vocês supõem que a Escritura fala em vão ao dizer que há um espírito em nós que deseja intensamente?”. Yiechiel Lichstenstein, citado no Comentário Judaico do Novo Testamento, diz “Em minha opinião, o espírito aqui se refere não a Deus, mas a Satanás”. Ele busca apoio no verso 7, que diz “resisti ao Diabo e ele fugirá de vós” e recorre a Gn 4:7 afirmando que “o espírito maligno é o impulso maligno em nós”, apoiando essa interpretação de Gênesis no Tamulde (Bava Batra 16a): “Ele é Satanás, o impulso maligno”.

Algumas traduções colocam Deus como sujeito e o Espírito (Santo ou humano) como o objeto do ciúme. Um exemplo é a Bíblia de Jerusalém: “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?”, seguida pela Fácil de Ler: “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”. Uma vez aceita essa tradução, resta saber a identidade do Espírito. Algumas versões trazem a expressão “que ele fez habitar em nós” (vamos passar ao largo da discussão sobre os manuscritos usados nas traduções). É uma expressão comum para se referir ao Espírito Santo e inédita em referência ao espírito humano. Nesse caso, é mais provável que espírito seja uma referência ao Espírito Santo.

Parece-me que a maioria das traduções colocam o Espírito Santo como sujeito. A Almeida Revista e Atualizada representam bem esse grupo de traduções e versões: “É com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós”. Porém, nem todas afirmam positivamente que o Espírito tem ciúmes, mas colocam a questão na forma interrogativa, que alguns entendem ser uma pergunta retórica, que pede um não como resposta, como sugere a nota da Almeida Revista e Corrigida Anotada: “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”.

Finalmente, há a possibilidade de que espírito se refira ao espírito humano. A NTLH parece indicar isso: “O espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”. Apesar de grafar Espírito, com maiúscula, a Almeida Revista e Atualizada, também pode ser entendida assim. “O Espírito que em nós habita tem ciúmes”. E se “que fez habitar em nós” for admitido como possível para o espírito humano, outras traduções podem ser consideradas como apresentando o espírito humano como aquele que tem ciúmes.

Minha posição

Pela complexidade da passagem, qualquer posição deve ser considerada provisória e sujeita a revisão. Portanto, não pretendo ser dogmático. Mas considerando que ciúme/inveja é tomado sempre num mau sentido na Bíblia e jamais utilizado tendo Deus ou o Espírito Santo como sujeitos, acho muito improvável que a divindade seja representada como tendo ciúmes (lembrando que zelo é uma tradução sui generis aqui). Além disso, o verso seguinte estabelece um contraste, dizendo “Antes, dá maior graça” (Tg 4:6). Portanto, creio que como em todo o Novo Testamento, aqui também ciúme tenha uma conotação má, incompatível com o caráter de Deus. Assim, vejo duas possibilidades: ou a sentença é interrogativa e retórica (“o Espírito tem ciúme? Não”) ou o espírito referido é o humano, tomado de paixões carnais. Das duas, fico com a primeira, mas considero a segunda também consistente com o contexto e com o restante da Bíblia.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

2 de janeiro de 2012

Crescei na graça e no conhecimento em 2012

“Crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno” 2Pe 3:18
O crescimento é um fenômeno esperado em todos os seres vivos. No pre-natal uma das coisas que o médico controla é o crescimento do bebe. Quando a criança nasce, o obstetra a pesa e mede o recém-nascido. E a cada consulta o pediatra, novamente, repete medições e pesagens. O que todos esperam como resultado é que com o passar do tempo, a criança vá crescendo. Na vida espiritual, o crescimento também é esperado.

Nós nascemos como filhos de Deus “pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade" (Tg 1:18). Devemos, pois, desejar “ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação” (1Pe 2:2). Mas o crescimento a partir daí é esperado. “Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais, como a crianças em Cristo” (1Co 3:1). Na medida que avançamos no tempo, devemos avançar no desenvolvimento da nossa fé, para não ouvirmos o Espírito nos repreender dizendo “Quando devíeis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes como necessitados de leite e não de alimento sólido” (Hb 5:12). O nosso alvo é crescer “até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4:13).

Aqui, o crescimento não é apenas esperado, mas ordenado. “Crescei!”, diz Pedro. O verbo está no presente e é um imperativo, uma ordem. Devemos crescer. É verdade que o crescimento espiritual é “crescimento que procede de Deus” (Cl 2:19), mesmo assim nos é ordenado “desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor” (Fp 2:12). Deus nos ordena o que Ele mesmo nos dá, então podemos confiar que o crescimento espiritual não apenas é esperado e ordenado, mas também possível!

O apóstolo nos diz para crescermos na graça. Mas o que vem a ser graça? Receio que de tão usada, graça é uma palavra cujo sentido escape a muitos. Uma definição de graça diz que é o “um dom gratuito e sobrenatural dado por Deus para conceder à humanidade todos os bens necessários à sua existência e à sua salvação”. Uma maneira de compreender a graça é contrastá-la com a justiça. A justiça é dar a cada um o que lhe é devido. É justo que um trabalhador receba o salário devido. É justo que um criminoso seja punido proporcionalmente ao seu crime. Mas a graça não é justiça, na verdade, ela muitas vezes aparenta ser injusta. Trabalhadores que trabalham apenas um hora num dia recebem igual pagamento que os que trabalharam o dia inteiro. Ovelhas fiéis são deixadas no deserto enquanto o pastor vai em busca de uma desgarrada. Um filho esbanjador ganha roupas novas, jóias e uma festa, enquanto que o irmão obediente ainda está no trabalho, e só ouve a música ao completar o dia no campo. A graça, portanto, nada tem a ver com merecimento. Pelo contrário, só há graça onde há demérito.

Sendo assim, crescer na graça não tem a ver com ser mais digno, mais apto, mais preparado, mais ativo, mais isto ou mais aquilo. Crescer na graça é reconhecer a própria indignidade, é descobrir-se completamente inapto e despreparado, enfim, é desesperar-se de si mesmo. “Então, ele me disse: a minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo” (2Co 12:9). Crescer na graça, é crescer como rabo de cavalo, para baixo, pois Deus “dá maior graça; pelo que diz: Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg 4:6). Sendo assim, nosso lema deve ser “convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:30).

Somos instados a crescer no conhecimento. “O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento” (Os 4:6) era um fato nos dias de Oséias, e é uma verdade nos dias de hoje. “Não provém o vosso erro de não conhecerdes as Escrituras, nem o poder de Deus?” (Mc 12:24) descreve o motivo de tantos se desencaminharem hoje. De Jesus é dito que “crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele” (Lc 2:40). De nós deve ser dito “estais possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos admoestardes uns aos outros” (Rm 14:14).

Ter conhecimento não apenas a acumular dados e informações. Dados e informações podem ser coletados e com os recursos disponíveis hoje, temos acesso a tanta informação que somos incapazes de dar conta dela. Conhecimento é informação processada, e no caso do conhecimento revelado na Escritura, é informação trabalhada em nosso coração pelo Espírito Santo. É necessária iluminação, “desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei” (Sl 119:18). É necessário meditação, “antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite” (Sl 1:2).

Tendo considerado a necessidade de crescer na graça e no conhecimento, precisamos descobrir o caminho para isso, embora alguma coisa já tenha sido adiantada. Indicarei então que Jesus é a fonte da graça e do conhecimento, pois “o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade” (Jo 1:14). Não obteremos mais graça nos aperfeiçando ou procurando em nós mesmos, “porque... a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1:17). De igual modo, para obtermos o conhecimento que precisamos, temos que ir a Jesus “em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2:3). O segredo do crescimento na graça e no conhecimento é uma intimidade maior com Jesus Cristo e Sua Palavra.

À guisa de conclusão, uma palavra a respeito do objetivo maior do crescimento na graça e no conhecimento. Embora sejamos imediatamente beneficiados por esse crescimento, o propósito final é a glória de Deus. Pedro termina sua exortação com as palavras “a Ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno” (2Pe 3:18). Quando diminuímos para que Ele cresça, Ele é louvado. Quando aprendemos mais dEle, conhecendo-o melhor, melhor o glorificamos. Por isso, cresçamos na graça e no conhecimento, para glória dEle.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.