Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que faleis todos a mesma coisa e que não haja entre vós divisões; antes, sejais inteiramente unidos, na mesma disposição mental e no mesmo parecer.
Pois a vosso respeito, meus irmãos, fui informado, pelos da casa de Cloe, de que há contendas entre vós. Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: Eu sou de Paulo, e eu, de Apolo, e eu, de Cefas, e eu, de Cristo.
Acaso, Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vós ou fostes, porventura, batizados em nome de Paulo?
Dou graças a Deus porque a nenhum de vós batizei, exceto Crispo e Gaio; para que ninguém diga que fostes batizados em meu nome. Batizei também a casa de Estéfanas; além destes, não me lembro se batizei algum outro.
Porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho; não com sabedoria de palavra, para que se não anule a cruz de Cristo. Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus.
Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos instruídos. Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do mundo?
Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. (1 Coríntios 1:10-24)
Nenhuma palavra define melhor a pós-modernidade do que o relativismo. Em um mundo sem absolutos morais ou estéticos (o que é belo, afinal?), não é de estranhar que os conceitos tenham se tornado incômodos. Usar nomes para definir posições políticas, econômicas e até mesmo teológicas tornou-se algo abominável, inclusive para cristãos. Rotular ou ser rotulado tornou-se um pecado mortal, a moda é tentar conciliar diferentes correntes, ainda que contraditórias. Quanto mais indefinido, melhor.
Dentro das igrejas protestantes, o repúdio aos rótulos chega a tal ponto que, para muitos, definir-se como calvinista, luterano ou arminiano é um pecado. Seria o mesmo erro cometido pela igreja de Corinto quando um dizia que era de Paulo, outro de Apolo e um terceiro de Cefas (Pedro). O certo é apenas se identificar como cristão. Certo?
Errado. Creio que esse tipo de pensamento é simplista demais. Sim, há horas em que a identificação com o calvinismo ou qualquer corrente teológica se torna algo pecaminoso e doentio. Mas, da maneira apropriada, o rótulo pode sim ser útil. Tudo depende do coração.
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A moda é ter várias identidades, tantas, que ninguém possa ser rotulado. Quadro de Andy Warhol. |
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Quando é pecado
Os rótulos se transformam em um grande problema acontece quando eles nos levam a dividir o Corpo de Cristo. Quando o apóstolo Paulo critica os grupos de Corinto, a sua maior preocupação é manter a unidade da Igreja. Os coríntios estavam tão preocupados em afirmar seus pontos de vista e afinidades que estavam se esquecendo que eram parte de um povo.
Em Corinto, aparentemente, os grupos elegiam um teólogo-modelo e o colocavam acima dos demais, desprezando o trabalho e a teologia de outros apóstolos ou pregadores. Havia diferentes "disposições mentais" e "pareceres". As disputas iam muito além de simples debates: havia ciúmes e brigas, um verdadeiro sentimento de inimizade, causado pela carnalidade de alguns coríntios:
Porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais e andais segundo o homem? Quando, pois, alguém diz: Eu sou de Paulo, e outro: Eu, de Apolo, não é evidente que andais segundo os homens? (1 Coríntios 3:3-4)
A postura desses coríntios era bem semelhante à das seitas: apenas o "meu grupo" é correto, e os demais estão errados. Mesmo quando alguns diziam ser "de Cristo", a atitude era criticada por Paulo. Nesse último caso, apenas os ensinos vindos de Jesus nos Evangelhos eram seguidos, havendo uma desconsideração com o ensino que o próprio Cristo dava por meio dos apóstolos. Era apenas mais um grupo no meio dos outros.
Quando ser calvinista (ou reformado) significa dividir o Corpo de Cristo, não reconhecer o valor de outros irmãos e se isolar em uma atitude de superioridade, o rótulo é sim prejudicial. Isso acontece com calvinistas que começam a questionar a salvação de quem diverge em pontos secundários da fé (como, por exemplo,
arminianos ou
pentecostais) ou que chegam ao ponto de recusar qualquer tipo de diálogo ou ação conjunta. Na hora em que os apelos à teólogos reformados se tornam tão ou mais importantes do que os versículos bíblicos, no instante em que argumentos de quem não é calvinista são recusados por motivos
ad hominem, ou quando há um interesse maior em conhecer os pensamentos de Calvino e seus seguidores do que em Cristo Jesus e Seus apóstolos, com certeza estamos diante de comportamentos pecaminosos.
Claro que esse tipo de atitude não é uma exclusividade do calvinismo. Infelizmente atitudes semelhantes podem ser encontradas em outros ramos do protestantismo e do cristianismo também. Embora seja óbvio que há teólogos que entenderam melhor a Bíblia do que outros, devemos ser capazes de compreender e apreciar a contribuição de santos que não pensam como nós. Afinal, o cristianismo é maior que o calvinismo e não pode ser resumido nos pensamentos de um único teólogo, ainda que ele seja o apóstolo Paulo:
Quem é Apolo? E quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um. Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento. Ora, o que planta e o que rega são um; e cada um receberá o seu galardão, segundo o seu próprio trabalho. (1 Coríntios 3:5-8)
Quando não é pecado
Entretanto, ao contrário do que imaginamos, os rótulos são sim usados na Bíblia, inclusive por Jesus Cristo. Nem Ele e nem os apóstolos viam qualquer problema em usar nomes para identificar grupos que professavam determinado tipo de pensamento. Em resumo, não há qualquer pecado em rotular com um nome um grupo de pessoas que pensam ou agem de determinada maneira.
Um bom exemplo é ver a forma como os primeiros cristãos reagiram quando eram rotulados pelos demais. Em momento algum do livro de Atos vemos qualquer rejeição da Igreja aos rótulos:
tendo-o encontrado, levou-o para Antioquia. E, por todo um ano, se reuniram naquela igreja e ensinaram numerosa multidão. Em Antioquia, foram os discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos. (Atos 11:26)
Paulo chega a se valer de um deles em sua defesa perante Félix:
Porém confesso-te que, segundo o Caminho, a que chamam seita, assim eu sirvo ao Deus de nossos pais, acreditando em todas as coisas que estejam de acordo com a lei e nos escritos dos profetas,...(Atos 24:14)
Os rótulos aparecem até para identificar segmentos distintos do povo de Deus:
Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração dos helenistas (judeus de fala grega) contra os hebreus (judeus de fala hebraica), porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária. (Atos 6:1)
E, claro, eles foram usados tanto por Jesus como pelos apóstolos para condenar grupos heréticos (notem que eles generalizavam sem constrangimentos):
E Jesus lhes disse: Vede e acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus. (Mateus 16:6)
Posto que miríades de pessoas se aglomeraram, a ponto de uns aos outros se atropelarem, passou Jesus a dizer, antes de tudo, aos seus discípulos: Acautelai-vos do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. (Lucas 12:1)
Porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e enganadores, especialmente os da circuncisão. (Tito 1:10)
Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar -se, temendo os da circuncisão. (Gálatas 2:12)
Não devemos querer ser mais realistas que o Rei dos Reis. Se Jesus e Paulo usaram rótulos, inclusive para criticar, quem somos nós para dizer que eles são pecaminosos? Os pós-modernos querem ser mais santos que o Santíssimo. E, claro, incorrem em erro.
O equilíbrio da interpretação
E aqui nós podemos ver a importância de se analisar toda a evidência bíblica antes de emitirmos certos julgamentos. Isoladas, as críticas de Paulo aos grupos de Corinto parecem uma condenação clara a quem se identifica como calvinista, arminiano ou luterano, mas que também serviria a quem se define como católico, batista ou pentecostal. Quando o contexto é analisado com mais calma e consideramos atitudes de Paulo e de Jesus, vemos que o pecado surge quando a rotulação é fruto da natureza pecaminosa humana e de um espírito faccioso (que provoca facções, divisões), comprometendo a unidade da Igreja.
Por esta razão, não me constranjo em fazer parte de um blog que se autointitula 5 Calvinistas. Também não sou como outros que receam chamar suas posiçõs teológicas pelo nome. Não tenho vergonha em dizer que sou cristão, reformado, presbiteriano, pedobatista, carismático e amilenista. E não entendo os pudores de quem tem cheiro de lobo, cara de lobo, pêlo de lobo, latido de lobo e nega ser lobo. Aliás, só consigo entender isso como má-fé ou como uma rendição ao pós-modernismo, que alguma vezes influencia os cristãos mais do que o próprio Jesus.
Claro que há excessos, e ainda hoje há calvinistas, arminianos, pentecostais e outros que caem no mesmo erro dos coríntios. Mas um erro se corrige com um acerto, e não com outro erro, ainda que seja o do politicamente correto.
Graça e paz do Senhor,
Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro