27 de setembro de 2010

Resenha do livro “Cristianismo sem Cristo”, de Michael Horton

Originalmente publicado no Optica Reformata.

Horton, Michael. Cristianismo sem Cristo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 208 pp. Tradução de Neuza Batista.

cristianismo sem cristo

Quem está familiarizado com os escritos do Dr. Michael Horton sabe que não é à toa que ele é tido como um dos maiores e mais competentes pensadores reformados da atualidade. A solidez doutrinária de seus escritos e sua aguda percepção em analisar as coisas que acontecem no mundo dito cristão a partir de uma ótica reformada (e confessional), aliadas à sua imensa capacidade argumentativa (que nem sempre é tão sistemática e lógica quanto gostaríamos, é verdade) e de exímio pesquisador que é, são fatores que tem justificado seu prestígio mesmo entre alguns cristãos de perspectiva não-reformada (e não-confessional).

Agora, ele nos brinda com um de seus livros mais polêmicos, cujo título não só é intencionalmente provocativo, mas essencialmente reflexivo: Cristianismo sem Cristo – que, nas palavras do bispo metodista William Willimon (prefaciador da obra), também pode ser encarado como uma “polêmica induzida de Cristo” (p. 10). Se essa afirmação soa pretensiosa e arrogante demais, só mesmo lendo a obra para descobrir.

Algo marcante nos escritos de Horton é que ele é sempre muito seletivo nas citações de obras e estatísticas que usa em suas pesquisas, objetividade que o distingue de muitos escritores prolixos e cansativos, apesar de ser ele mesmo um pouco repetitivo às vezes. Por exemplo, ele pode muito bem começar falando de um assunto, bruscamente interrompê-lo, e voltar a repeti-lo em outro capítulo que, em princípio, deveria tratar sobre outra coisa. Por este motivo é que esta breve resenha é mais sistemática (análise por assunto) do que linear (análise de cada capítulo separadamente).

Apesar do “auê” que o título da obra pode causar nos leitores mais apaixonados, Horton se apressa em dizer que, a despeito de sua superficialidade, desatenção e humanismo, a igreja contemporânea ainda não chegou ao que ele chama de “cristianismo sem Cristo”, mas está a caminho (p. 10). Esse esclarecimento é importante especialmente porque aqueles de perfil mais polemista correm o risco de ser mais radicais do que o autor da obra na qual tanto se deleitam (assim como tem gente que quer ser mais calvinista que Calvino). Entretanto, não estão equivocados aqueles que entenderem que Horton está apenas sendo eufêmico, adiando a bomba que está prestes a estourar no desenrolar de sua argumentação.

Mas, o que vem a ser, finalmente, esse tal “cristianismo sem Cristo”? O autor o definiria como sendo “uma história sobre nós [nossos feitos] em vez de uma história sobre o Deus Trino que nos transporta para o drama em andamento [os feitos de Deus]” (p. 91). Cristianismo sem Cristo é quando “Deus e Jesus ainda são importantes, porém mais como parte do elenco de apoio do nosso próprio show” (p. 17). Nesse sentido, o cristianismo sem Cristo é deísta, visto que não é mais Deus quem governa as coisas, e sim o homem; é moralista, visto que o imperativo “faça mais, esforce-se mais” (p. 10) – ou, a famosa máxima de Benjamin Franklin de que “Deus ajuda a quem se ajuda” – está no âmago da religiosidade que norteia a maior parte das igrejas contemporâneas; e é terapêutico, visto que “não há pecado nem culpa a ser perdoados por Deus, mas apenas os pesos e sentimentos de culpa por não corresponder às expectativas de si mesmo ou de outros seres humanos” (p. 37). Finalmente, Horton diz que a “chave” para essa sua crítica “é que, uma vez que você faz sua paz de espírito em vez de paz com Deus, que é o principal problema a ser resolvido, todo o evangelho é radicalmente definido”, e que “a autorrealização, a autossatisfação e a autoajuda são todas distorções contemporâneas de uma heresia antiga, que Paulo identificou como obras de justiça” (p. 34). Nesse sentido, entendo que a obra de Horton é, antes de tudo, uma forte argumentação e clamor em prol da doutrina bíblica da justificação pela fé somente, que os reformadores entenderam ser o coração do evangelho.

Para efeito de síntese, Horton faz um quadro comparativo muito interessante entre o cristianismo sem Cristo (que ele chama de “lei leve”) e o verdadeiro evangelho (p. 158):

Lei Leve

O evangelho

Deus como treinador de vida

Deus como Juiz e Justificador

Bom conselho (fazendo)

Boas-novas (feito)

Cristo como exemplo

Cristo como Salvador

A Bíblia como manual de instrução

A Bíblia como mistério de Cristo sendo revelado

Sacramentos como meio de compromisso

Sacramentos como meios de graça

A igreja como recurso de autoajuda (foco no nosso serviço/ministério)

A igreja como embaixada da graça (foco no serviço/ministério de Deus)

Nós subimos até Deus

Deus desce até nós
Nós enviamos a nós mesmos Deus nos envia

O diagnóstico que Horton dá para essas distorções divide-se em basicamente dois braços. O primeiro é baseado num estudo realizado pelo sociólogo Christian Smith, que definiu a religiosidade norte-americana como sendo um “deísmo moralista e terapêutico” (p. 34), conceito este que Horton vai usar em praticamente todo o livro. Não se trata de apenas uma frase de efeito, mas Horton se preocupa em mostrar estudos e estatísticas que comprovam a sua veracidade, como ele mesmo avisa na página 18. O segundo braço do diagnóstico é teológico: Pelagianismo – é o “termo teológico para esta moléstia”, diz ele (p. 37). “Afinal de contas, é a nossa teologia mais natural”, ironiza.

Mas apesar de traçar paralelos entre o cristianismo sem Cristo e certas distorções teológicas que marcaram a história da Igreja (como o gnosticismo, o semi-pelagianismo e o liberalismo teológico, por exemplo), Horton chega a admitir que “o ‘cristianismo sem Cristo’ é invasivo, atravessa o espectro liberal-conservador e todas as linhas denominacionais” (p. 22), motivo pelo qual “nenhuma denominação está livre desse cativeiro, incluindo a minha, e ninguém, incluindo eu mesmo” (p. 23). Ironicamente, essa nova religiosidade não é tão profunda quanto se pretende, mas é exatamente vazia (niilista?). “Muito do que estou chamando de ‘cristianismo sem Cristo’”, diz Horton, “não é profundo o suficiente para constituir heresia”, comparando a mensagem do cristianismo sem Cristo com aquele tipo de música de fundo que ouvimos tocar nos estabelecimentos comerciais: “trivial, sentimental, aceitada e irrelevante” (p. 17). E mais: “O Deus da religião norte-americana contemporânea é trivial demais para valer o nosso tempo” (p. 91). Mas é exatamente isso que torna esse novo tipo de religiosidade mais perigoso do que seus antecedentes gnósticos, pelagianos e liberais.

O liberalismo começou por subestimar a doutrina em favor do moralismo e da experiência interior, perdendo Cristo por hierarquia. No entanto, é mais tolice que heresia que está nos matando. Deus não é negado, mas banalizado – usado para nossos programas de vida, e não recebido, adorado e usufruído [p. 20 – ênfase minha].

Englobando as Pessoas da Trindade nesse sacrílego processo de trivialização, Horton observa que no cristianismo sem Cristo “Deus é usado como um recurso pessoal, em lugar de ser conhecido, adorado e confiado; Jesus Cristo é um treinador com um plano de jogo bom para nossa vitória, em vez de um Salvador que já alcançou a vitória para nós; […] e o Espírito Santo é uma tomada elétrica que podemos ligar para obter o poder necessário para sermos tudo o que podemos ser” (p. 17 – negrito meu). Aliás, Horton esbanja nos adjetivos que o cristianismo sem Cristo tem conferido a Jesus. Ele observa que “Jesus tem sido vestido como um […] treinador de vida, guerreiro de cultura, revolucionário político, filósofo, copiloto, companheiro de sofrimento e parceiro na realização de nossos sonhos pessoais e sociais” (p. 21); ou como um “mascote na guerra das culturas” (p. 166); ou ainda, em um simples “ponto de encontro para jogos de futebol e inauguração de shopping centers” (p. 64). Porém, o resultado disso tudo, diz Horton, em vez de um relacionamento verdadeiro com o Filho de Deus, “é um apego vago e sentimental por alguém que é mais um amigo invisível do que o Salvador dos ímpios, encarnado, morto e ressuscitado, que subiu e é Rei” (p. 64). O cristianismo sem Cristo definitivamente não contempla o Jesus das Escrituras – Histórico, Redentor, Deus!

Tudo isso, naturalmente, leva a uma banalização não somente de Cristo, mas também dos meios de graça por Ele instituídos. O Batismo e a Ceia, por exemplo, são transformados em “meios de compromisso” – um “veículo da experiência pessoal” (p. 142), uma vez que o indivíduo é levado a pensar que tanto a salvação como a manutenção desta dependem única e exclusivamente dele mesmo.

Para muitos de nós, criados em contexto evangélico-conservador onde a pregação era principalmente uma exortação para fazer mais, o Batismo foi nosso ato de compromisso em vez de ser o ato de compromisso de Deus, a Ceia do Senhor era um meio de nossa lembrança em vez de um meio da graça de Deus e muitos hinos eram expressões da nossa piedade mais que um relato das misericórdias maravilhosas de Deus na história da redenção [p. 154].

Mas Horton faz questão de nos lembrar que “o Batismo não é nosso ato de compromisso, com base em nossa decisão, é o ato de compromisso de Deus, baseado em sua decisão. […] A Ceia do Senhor não é nossa lembrança e reconsagração, mas se centra na promessa de Deus de nos dar seu Filho como nosso alimento e bebida – certificando e ratificando nossa inclusão no pacto da graça” (p. 180).

Todos esses “apelos para a ação sem o anúncio da ação de Deus”, segundo Horton, está gradualmente “desevangelizando” a igreja (p. 155). Ela se imiscuiu tanto na agenda secular que, em sua tentativa de tornar o evangelho relevante, perdeu-se pelo caminho, transformando as boas-novas da salvação em meros estímulos morais de autoajuda. E é justamente aqui que Horton vai fazer críticas ferrenhas ao tipo de pregação e pregadores que o cristianismo sem Cristo (ou, quase sem Cristo, na melhor da hipóteses) tem produzido, justamente pelo fato de que esta pregação, como vimos, exorta o espectador a sempre “fazer mais”. Charles Finney, Joel Osteen, Robert Schuller, Rick Warren, Joyce Meyer e o emergente Brian McLaren, dentre outros, não escapam da flecha certeira de Horton. Para ele, as pregações dos tais não diferem muito do que podemos encontrar nos ditos do Dr. Phill ou da Oprah Winfrey (p. 15 – trazendo para o nosso contexto, algo parecido com Super Nani, Max Gehringer e Ana Maria Braga). Por este motivo, não é mesmo a toa que, “na autoajuda secular, as vendas dos gurus chegam perto dos concorrentes evangélicos” (p. 58). Esse tipo de pregação, para Horton, também tira Cristo do cristianismo.

Quando a mensagem básica da igreja é menos sobre quem é Cristo e o que ele fez de uma vez por todas para nós e mais sobre quem somos e o que temos que fazer para tornar a vida dele (e a nossa) relevante para a cultura, a religião que é feita “relevante” não é mais o cristianismo [p. 118].

É nesse ínterim que Horton também vai criticar a tendência desse tipo de religião em moralizar e alegorizar as histórias bíblicas, como se a sabedoria da Escritura se nivelasse àquelas encontradas nas fábulas de Esopo (p. 121). De fato, é muito comum vermos isso acontecer nos dias de hoje. A pregação é tudo, menos exegética. O que sobra disso só pode ser mesmo alegorias e princípios morais. Daí temos que, assim como Davi, precisamos vencer os “gigantes” em nossas vidas; que temos que nos “atrever” a ser um Daniel; que devemos “sonhar” como José; etc. É por isso que nesse tipo de pregação geralmente Deus nunca está de mau-humor para com os pecadores, mas sempre pronto a recebê-los, não importa como estejam vivendo. Horton relembra de uma ocasião em que entrevistou o Dr. Robert Schuller em um programa de rádio, quando lhe perguntou como ele interpretaria a exortação que Paulo faz a Timóteo em 2 Tm 3.1-5. E, antes mesmo de terminar de articular sua pergunta, Schuller respondeu apressado às palavras apostólicas, dizendo: “Eu espero que você não pregue isso. Vai magoar um monte de gente bonita” (p. 28). Para Horton, coisas desse tipo não passam de “autoajuda pelagiana e autodeificação gnóstica” (p. 59), onde Deus novamente é nosso coadjuvante no esquema do já denunciado “deísmo moralista terapêutico”.

Em um paradigma terapêutico, não só o membro da igreja, mas o próprio Deus é colocado no sofá enquanto nós interpretamos, com empatia, os sentimentos dele. Deus nunca está com raiva ou é crítico em relação às pessoas; na verdade, ele é mais angustiado que nós, visto que sabe o quanto nossas ações podem nos prejudicar. […] Podemos até nos sentir inclinados a sentir pena desta divindade [p. 48].

Mesmo que esses assuntos estejam largamente presentes na agenda do pessoal do movimento de igreja emergente (a quem Horton faz fortes críticas nos capítulos 4 e 6, especialmente) e dos adeptos do teísmo aberto, para Horton isso nada mais é do que um eco do antigo liberalismo e do conceito de kantiano de religião moralista em oposição à religião de doutrina (p. 93). Somos ensinados de que não devemos apenas pregar o evangelho, mas sobretudo ser o evangelho. É aquela velha máxima atribuída a S. Francisco de Assis: “evangelize sempre; se necessário, use palavras” – como se nossas vidas pudessem pregar “melhor do que o evangelho” (p. 127). É muita empáfia! Esse novo legalismo, para Horton (na realidade, um legalismo revisitado), é o “murmúrio otimista e alegre tocando como música de fundo”, que nem nos ameaça com o inferno nem nos conforta com o céu (p. 102). Mais uma vez, Horton nos lembra de que este é o nosso “pelagianismo nativo” (p. 93), uma vez que nosso destino está em nossas próprias mãos.

Ainda tratando dessa questão da busca desenfreada por relevância, Horton argumenta que não precisamos da Bíblia para saber que nossos filhos precisam de padrões regulares de sono; que o segredo para um bom casamento é o diálogo; e que se não administramos bem nossos cartões de crédito eles nos dominam (p. 85). “Qualquer pessoa pode perder peso, parar de fumar, melhorar um casamento e se tornar mais agradável sem Jesus”, garante ele (p. 86). É certo que estimular as pessoas para que estas busquem uma melhor “qualidade de vida” (somente para usar um linguajar que está na moda) não é um mal em si mesmo, mas “mesmo quando coisas boas, santas e apropriadas se confundem com o evangelho, é apenas uma questão de tempo antes de chegarmos ao cristianismo sem Cristo(p. 91).

Temos visto que, de fato, a “religião moralista de autossalvação é nossa configuração padrão como criaturas caídas” (p. 36). Precisamos urgentemente nos desvencilhar dela. “Chega de nós” (p. 115)! Como clamou William Willimon no prefácio, “vamos colocar Cristo de volta no Cristianismo” (p. 10). Mas a pergunta é: como? Horton arrisca algumas propostas para que sejamos libertos desse cativeiro. Vamos tentar resumi-las:

  1. Precisamos fazer uma urgente distinção entre a lei e o evangelho (p. 103). Do contrário, o que teremos é somente mais e mais ativismo religioso em vez de fé viva e verdadeiramente eficaz. “Nosso padrão é a lei, e não o evangelho, coisas para fazer (imperativos), no lugar de indicativos (coisas para acreditar)” (p. 108). “Confundir a lei e o evangelho é a tendência natural do coração caído. Todas as religiões – incluindo o cristianismo sem Cristo, que não é cristianismo de jeito nenhum – pressupõem alguma forma de redenção por esforço próprio [..] Deixe a lei ser lei e o evangelho ser evangelho” (p. 102);
  2. Precisamos pregar corretamente a lei (p. 106), porque “até que nossa pregação da lei tenha exposto nossos corações e a santidade de Deus a esse nível profundo, nossos ouvintes jamais irão para Cristo em busca de segurança, mesmo que venham até nós para conselho” (p. 107);
  3. Precisamos nos preocupar com as necessidades realmente primárias (p. 115). “Os gentios amam a sabedoria, então lhes mostre um Jesus que é mais inteligente em resolver enigmas da vida diária e a igreja vai ter uma multidão de adeptos”. Contudo, “a igreja”, diz Horton, “existe para mudar o assunto de nós e de nossos atos para Deus e seus atos de salvação, e de nossas missões de salvar o mundo para a missão de Cristo, que já realizou a redenção” (p. 115). O que precisamos é de um novo paradigma: “de nossa agenda para a agenda de Deus” (p. 168);
  4. Precisamos recuperar os conceitos do cristianismo bíblico, resgatando-os da trivialização pós-moderna (p. 116). “Cristianismo sem Cristo não significa religião ou espiritualidade desprovida das palavras Jesus, Cristo, Senhor ou até mesmo Salvador. Significa que a forma como esses nomes e títulos são empregados os deslocará de seu local específico no desdobramento histórico da trama da rebelião humana e do resgate divino, e de práticas como o Batismo e a Ceia. Jesus como treinador de vida, terapeuta, amigo, outro significativo, fundador da civilização ocidental, messias político, exemplo de vida radical e outras inúmeras imagens podem nos distrair do escândalo e da loucura de ‘Cristo e este crucificado’” (p. 117); e, por último,
  5. Precisamos que nossa missão se oriente pelo evangelho, não pela “justiça decorrente das obras” (p. 165). No afã de ganhar o mundo inteiro, muitas vezes temos perdido nossas marcas – identidade reformada; e por vezes amamos tanto as marcas que temos negligenciado a missão – evangelização. Precisamos manter acesas as duas coisas, porque “sem as marcas a missão é cega; sem a missão, as marcas estão mortas” (p. 166).

Como as resenhas geralmente fazem com que corramos o risco de reduzir o conteúdo da obra aos nossos próprios termos, iremos parar por aqui. Mas cabem mais algumas observações pontuais ao livro como um todo. Agora me refiro à questão estética – enfim, todo o processo editorial. Elogios e críticas também são oportunos nesse aspecto. Primeiramente quero parabenizar a Editora Cultura Cristã – além do fato de pôr nas mãos do público de fala portuguesa uma obra de tamanha envergadura teológica como esta que temos aqui, é claro – pelo trabalho dos revisores em explicar certas expressões e conceitos próprios da cultura e linguajar norte-americanos (pp. 17, 19, 21, 29, 33, 60, 64, 86, 93, 95, 136, 140, 169, 181, 192 e 201), coisas estas que, na maioria das vezes, muitos tradutores e revisores não explicam. Em alguns casos, compreender tais conceitos torna-se essencial à compreensão do que o autor quer transmitir. Isso denota uma preocupação e respeito dos editores pelo leitor que é leigo em outras culturas.

Em relação aos pontos que poderiam ter sido melhores podemos citar a falta de um índice onomástico e de assuntos, o que em muito facilitaria a pesquisa e pouparia o leitor (inclusive quem resenha!) de exaustivas anotações marginais (embora saibamos que o processo para tal é um pouco demorado, tendo em vista a “urgência” da publicação). Quanto aos erros de digitação, gramática e afins, foram tão leves que chegam a ser insignificantes (pp. 15, 137, 138, 139, 143, 176, 179, 182 e 187). E poderia também ter aquela tradicional folha em branco na última página (na qual consta o tipo de papel, a imprensa, etc.), pois sua falta deixa aquela impressão de que o livro ainda não chegou ao seu fim, especialmente no caso do livro em questão, que Horton conclui com uma citação sem acrescentar aquelas costumeiras observações, doxologias ou apelos. Mas nenhuma dessas faltas, evidentemente, é capaz de tirar o brilho da obra desse estimado pensador, que certamente perdurará como um dos textos apologéticos mais importantes desta década. Quem ainda não leu, é bom se apressar, antes que os três mil exemplares se esgotem!

Soli Deo Gloria!

24 de setembro de 2010

Porque eu não quero uma teocracia cristã

A uniformidade de pensamento é um desejo buscado, consciente ou inconscientemente, por todos nós. Por mais "tolerantes" que sejamos, sempre há um segmento ideológico que é visto como "inimigo" e pelo qual não nutrimos simpatia. Como não é possível forçar todos a pensarem de modo agradável a nós, o pluralismo acaba se impondo não como o ideal de todos, mas antes como a melhor alternativa possível, superior à guerra e à violência. Melhor conviver com o diferente do que tentar exterminá-lo.

Contudo, a tentativa de impor um pensamento único sempre seduz parcelas significativas da sociedade. A História está cheia de exemplos, desde o nazismo alemão até o comunismo soviético, incluindo-se aí o fundamentalismo islâmico e até mesmo experiências puritanas de criar colônias nos Estados Unidos onde haveria uma única religião. O totalitarismo é uma tentação que não respeita nenhum tipo de fronteira.

Ao meu ver, é esse tipo de tentação que leva cristãos de vários matizes a defenderem uma teocracia cristã. Na verdade, já há proposta para criar o Partido Republicano Teocrata Cristão (PRTC). O objetivo expresso é o de promover a "adequação de todas as leis da nação às leis bíblicas", inclusive com apoio de muitos blogs calvinistas. Esse tipo de movimento é uma reação à aprovação e discussão de leis que ferem os princípios da Bíblia.

Contudo, esse fato exige uma discussão. Afinal, a teocracia cristã é o caminho que a própria Bíblia ensina para fazer valer o reino de Deus?

A necessidade da liberdade religiosa
Creio que a primeira coisa que deve ser analisada é a questão da liberdade religiosa. O sonho oculto de muitos segmentos, desde o mais tradicional dos reformados até o mais esotérico neopentecostal, é o de ver todos seguirem uma mesma fé, tendo a Bíblia formalmente reconhecida como estando acima de qualquer outra lei. Na verdade, muitos evangélicos não querem esperar pelo dia em que Jesus Cristo virá implantar seu Reino...querem vê-lo aqui, de modo visível, já! A separação entre Igreja e Estado não é mais vista como uma conquista que foi essencial para garantir a sobrevivência dos evangélicos em sociedades católicas. Agora, o sonho de muitos é ver as igrejas evangélicas comandando o Estado e impondo a sua agenda e pensamento a todos.

Contudo, Jesus Cristo nunca exigiu a conversão de todos os seus ouvintes aos seus ensinamentos. É interessante notar que Jesus não protesta porque ninguém proíbe os fariseus de ensinar ou porque o ensino pagão era tolerado pelo Estado romano. A arma usada por Jesus em seu ministério era a pregação da Palavra. Era por meio da persuasão, da oratória e dos debates que o Senhor esperava ganhar o coração dos ouvintes. Cristo nunca questionou porque o Estado romano não dava apoio ao seu sistema de fé.

O mesmo pode ser dito dos apóstolos. Eles são sempre retratados como sendo perseguidos por judeus ou pagãos, mas nunca como perseguidores daqueles que anunciam outra fé. Isso é evidenciado em Atos 19, quando os pagãos de Éfeso se revoltam contra a pregação de Paulo:
Pois um ourives, chamado Demétrio, que fazia, de prata, nichos de Diana e que dava muito lucro aos artífices, convocando-os juntamente com outros da mesma profissão, disse-lhes: Senhores, sabeis que deste ofício vem a nossa prosperidade e estais vendo e ouvindo que não só em Éfeso, mas em quase toda a Ásia, este Paulo tem persuadido e desencaminhado muita gente, afirmando não serem deuses os que são feitos por mãos humanas. Não somente há o perigo de a nossa profissão cair em descrédito, como também o de o próprio templo da grande deusa, Diana, ser estimado em nada, e ser mesmo destruída a majestade daquela que toda a Ásia e o mundo adoram. Ouvindo isto, encheram-se de furor e clamavam: Grande é a Diana dos efésios! Foi a cidade tomada de confusão, e todos, à uma, arremeteram para o teatro, arrebatando os macedônios Gaio e Aristarco, companheiros de Paulo. (Atos 19:24-29)
O tumulto é encerrado pelo escrivão de Éfeso, que apazigua a multidão afirmando o seguinte:
porque estes homens que aqui trouxestes não são sacrílegos, nem blasfemam contra a nossa deusa. (Atos 19:37)
É muito interessante notar isso no Novo Testamento. O desejo dos cristãos é o de terem liberdade para pregar a Palavra sem correrem o risco de serem presos. São os outros...os judeus e os pagãos quem buscam usar o Estado para prender os cristãos e impedir a disseminação da fé cristã. Os discípulos não cometiam sacrilégios nem blasfemavam contra Diana, embora deixassem claro que ela não era uma deusa de fato. Isso mostra uma busca pela liberdade religiosa, e não pela uniformidade religiosa.



Igreja e Estado são esferas distintas
Por que nem Jesus e nem os apóstolos reivindicam o apoio do Estado para a pregação evangélica? Uma das razões é dada pelo próprio Cristo: dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Convém aqui reler essa história:
Naquela mesma hora, os escribas e os principais sacerdotes procuravam lançar-lhe as mãos, pois perceberam que, em referência a eles, dissera esta parábola; mas temiam o povo. Observando-o, subornaram emissários que se fingiam de justos para verem se o apanhavam em alguma palavra, a fim de entregá-lo à jurisdição e à autoridade do governador. Então, o consultaram, dizendo: Mestre, sabemos que falas e ensinas retamente e não te deixas levar de respeitos humanos, porém ensinas o caminho de Deus segundo a verdade; é lícito pagar tributo a César ou não? Mas Jesus, percebendo-lhes o ardil, respondeu: Mostrai-me um denário. De quem é a efígie e a inscrição? Prontamente disseram: De César. Então, lhes recomendou Jesus: Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Não puderam apanhá-lo em palavra alguma diante do povo; e, admirados da sua resposta, calaram-se. (Lucas 20:19-26)
O ardil era esse: se Jesus dissesse que o imposto deveria ser pago, então Ele se colocava ao lado dos romanos e desagradava aos judeus. Se dissesse que não deveria ser pago, então os judeus se agradariam, mas Jesus poderia ser acusado diante dos romanos. O Mestre evita a resposta, ensinando que o povo deve dar a César o que é de César (respeito às leis, pagamento de impostos) e a Deus o que é de Deus (fé, adoração, devoção, o controle da vida).


Embora a separação entre o Estado e a Igreja seja um conceito posterior, creio que ele pode ser reconhecido aqui. Jesus não ensina que o Estado não deve obediência alguma a Deus. Afinal, o reino dos céus engloba todas as coisas, inclusive sim os governos. Mas isso não significa que tudo deva ser misturado. Há sim distinções.

Por exemplo, não cabe a Igreja decidir qual o melhor sistema de arrecadação tributária ou se um país deve ou não ter relações diplomáticas com outro. Os cristãos podem opinar sobre isso, mas a decisão pertence ao Estado, o qual, por sua vez, não deve decidir se a doutrina da predestinação é ou não correta. César é César, Deus é Deus.


Sei que aqui eu perdi o apoio de quase todos os calvinistas...afinal, a Confissão de Fé de Westminster, documento ícone da fé reformada, foi feita em um concílio convocado pelo Estado inglês. Contudo, não há base no Novo Testamento para que o Estado se envolva neste tipo de decisão. Esta não é uma questão de Governo, e sim de fé.

A natureza do Reino de Deus
Talvez muitos pensem que as ideias acima expostas ferem o ensino bíblico sobre o reino de Deus. Ele não é o Senhor de todas as coisas? A recusa dos homens em obedecê-Lo não é um pecado? Sim e sim, digo eu. Mas daí a querermos forçar o Estado a adotar leis bíblicas vai uma grande diferença.

Por quê? Ora, por causa da natureza presente do reino de Deus? Observe o que diz Jesus no momento em que ele é preso, como narrado em Mateus 26:51-54.
E eis que um dos que estavam com Jesus, estendendo a mão, sacou da espada e, golpeando o servo do sumo sacerdote, cortou-lhe a orelha. Então, Jesus lhe disse: Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão. Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim deve suceder?
Repare que a espada não foi usada de modo arbitrário pelo apóstolo Pedro. Jesus estava para ser preso, uma turba com espadas e porretes ameaçava os apóstolos. Pedro quis apenas defender o seu Mestre. Mas Jesus reprovou essa atitude. Quem lança mão da espada (violência) perecerá por causa dela. Se o Cristo quisesse, poderia rogar ao Pai para ter a defesa de anjos. Porém, a espada angelical não era o caminho de defesa do reino.

Essa mesma ideia é repetida por Jesus quando ele é confrontado por Pilatos em João 18:33-37.
Tornou Pilatos a entrar no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus? Respondeu Jesus: Vem de ti mesmo esta pergunta ou to disseram outros a meu respeito? Replicou Pilatos: Porventura, sou judeu? A tua própria gente e os principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Que fizeste? Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. Então, lhe disse Pilatos: Logo, tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
A violência e a coerção não irão promover o reino de Deus, que só se manifestará de modo plenamente visível neste mundo quando Cristo voltar. Por isso Jesus diz que seu reino não é terreno: não há exércitos ou ministros para defendê-lo. O objetivo de Jesus era o de dar testemunho da verdade. A testemunha busca convencer, mas quem pode impor a sentença é o Juiz. E a vinda de Cristo como Juiz está no futuro.
Por isso, difamando-vos, estranham que não concorrais com eles ao mesmo excesso de devassidão, os quais hão de prestar contas àquele que é competente para julgar vivos e mortos; pois, para este fim, foi o evangelho pregado também a mortos, para que, mesmo julgados na carne segundo os homens, vivam no espírito segundo Deus. (1 Pedro 4:4-6)
Chegará sim o dia em que a verdade será manifesta e todos serão julgados, o dia em que todo aquele que rejeitou a Cristo sofrerá a pena por sua rebeldia. Mas, até lá...o dever da igreja não é o de antecipar a execução do juízo, mas sim o de testemunhar a favor da verdade. Testemunhar não é forçar ninguém a acreditar ou seguir, é tentar, da melhor forma possível, convencer os demais a crerem em nosso testemunho.

O mundo é incapaz de seguir a Deus
Mas, de todos os argumentos, o melhor para combater a ideia de uma teocracia cristã é o primeiro ponto do calvinismo: a depravação total. Por esta doutrina, o homem é simplesmente incapaz de, voluntariamente, seguir a Deus. Se o ser humano não for alcançado pela graça de Cristo, servir a Deus é algo impossível a ele, mesmo que o Estado tente obrigá-lo:
Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas o que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito. Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz. Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus.” (Romanos 8:5-8)
Ora, se os que estão seguindo o pendor (inclinação) da carne não podem estar sujeitos à lei de Deus e não são capazes de agradar a Deus, no que adiantaria criar uma teocracia cristã? Ela seria inútil! Não é isso que tornará o Brasil um país melhor. E isso se torna óbvio quando lemos o que a Bíblia diz sobre a lei de Deus:
Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa de sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou coisa alguma), e, por outro lado, se introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus. (Hebreus 7:18-19)

Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem. (Hebreus 10:1)
A lei de Deus não tem o poder de aperfeiçoar as pessoas e, por extensão, a sociedade. O Brasil só será transformado por meio da salvação dos brasileiros, da criação de novos homens que nascem segundo Cristo Jesus e, voluntariamente, seguem a lei de Deus. Só que isso não é uma obra do homem, mas sim de Deus. Um novo ser humano é algo que só Cristo pode fazer:
E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas. (2 Coríntios 5:17)
Qual a solução?
Então, os cristãos devem cruzar os braços e deixar o Estado aprovar leis que ferem a Bíblia? Não! De modo algum. Devemos lutar, nas ruas, no Congresso, na Internet, onde for preciso para influenciar o mundo a seguir o Evangelho.

Para influenciar, não para impor.

Creio que este é o modelo bíblico de conduta política para os cristãos. Homens como José, Daniel e Mordecai não tentaram convencer o Egito, a Babilônia e a Pérsia a adorarem ao Deus de Israel. Eles influenciaram impérios a se adequarem às leis de Deus por meio de seus comportamentos e atuações políticas. No caso de Daniel e seus amigos, além de Mordecai, vemos que foram decisivos para impedir que os judeus fossem forçados a idolatria ou que fossem massacrados pelos caprichos da nobreza. Foram instrumentos de Deus em impérios que, guardadas as proporções, eram sociedades plurais.

Ao meu ver, o caminho continua sendo esse. O chamado de Deus para a Igreja é viver em um mundo plural e tentar influenciá-lo de todos os modos, mas sem impor a sua vontade. O objetivo dos cristãos é convencer a sociedade a obedecer a Deus...e não o de obrigá-la a fazer isso.


Os cristãos precisam entender que este mundo não é perfeito. Nossas decisões políticas, econômicas e sociais devem levar em conta as imperfeições do estado atual da criação: por isso é que existem policiais, soldados, leis penais e democracia. Seria ótimo viver em um planeta onde todos seguem a Deus! Mas isso não vai acontecer até Jesus voltar. Então, não adianta forçar o caminho nessa direção.

Precisamos aceitar o mundo como Deus quis que Ele fosse. E, para isso, é necessário aprender a conviver com os diferentes. Não há caminho melhor do que um onde exista liberdade de religião, de pensamento e de expressão. Não há caminho melhor do que o enfrentamento democrático e pacífico. Se, pela democracia, o Brasil escolher servir a Deus, ótimo! Mas, mesmo assim...as liberdades precisariam ser garantidas.

Que possamos refletir no ensino bíblico de Romanos 14:12.
Assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus.
Que assim seja. Amém! Soli Deo Gloria!

22 de setembro de 2010

O exemplo de Neymar

Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. (Romanos 13:1)
A maior prova de que lemas, slogans e similares não significam nada é a bandeira do Brasil. "Ordem e progresso" traz a ideia de que é preciso ordem (hierarquia, respeito às leis e às autoridades, obediência) para se alcançar o progresso. Mas, no país do jeitinho, todos estão...o tempo todo...buscando formas de alcançar o progresso (sucesso, prosperidade material) burlando a ordem.


No Brasil, se o talento e o sucesso podem garantir uns milhões de dólares a mais, valores éticos como o respeito à autoridade podem ser jogados no lixo. Afinal, ganhar um jogo ou valorizar o produto são mais importantes do que formar o caráter de um jovem atleta que se diz cristão.

Essa é a grande lição dada pela diretoria do Santos e pelo "grande" atacante Neymar. Durante o jogo entre Santos e Atlético Goianiense, Neymar xingou publicamente o seu técnico apenas porque o treinador determinara que outro jogador deveria bater um pênalti. Ficou acertado que o atacante seria afastado por tempo indeterminado, mas a diretoria do Santos demitiu o técnico Dorival Júnior porque ele se recusou a escalar o atleta no jogo contra o Corínthians. A razão da demissão? Grana e pressões pela queda do técnico.

Mas, que diz a Bíblia? Devemos imitar o exemplo de Neymar?

A hierarquia é um valor bíblico
Em primeiro lugar, precisamos entender que a hierarquia não é algo mau que fere a nossa liberdade. As autoridades são constituídas por Deus e devem ser obedecidas. Não importa se estamos falando de presidentes da República, juízes, pais ou técnicos de futebol. O cristão deve se sujeitar. Essa é a regra.

E as qualificações de quem manda não mudam a regra. Paulo disse que as autoridades romanas deveriam ser obedecidas, embora elas fossem ímpias e não reconhecessem a Deus. Pedro disse que as esposas cristãs deveriam ser submissas aos seus maridos incrédulos:
Mulheres, sede vós, igualmente, submissas a vosso próprio marido, para que, se ele ainda não obedece à palavra, seja ganho, sem palavra alguma, por meio do procedimento de sua esposa, ao observar o vosso honesto comportamento cheio de temor. (1 Pedro 3:1-2)
Na verdade, toda ordem de obediência às autoridades pode ser entendida como uma conseqüência lógica de um dos Dez Mandamentos, o de honrar pais e mães:
Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá. (Êxodo 20:12)
A Bíblia não diz que os pais só devem ser honrados se eles forem competentes, cristãos, legais...eles devem ser honrados...e ponto! O mesmo princípio é extensível a outras autoridades: do guarda de trânsito até a mais alta autoridade do país.

O exemplo de outro jovem talento
E ninguém melhor do que Jesus para ilustrar essa verdade. Em Lucas 2:41-52 lemos que o adolescente Jesus "aprontou uma" para os seus pais. Quando a festa da Páscoa terminou, Jesus resolveu ficar no templo discutindo com os doutores da Lei e não avisou os seus pais. José e Maria ficaram preocupados, mas Jesus respondeu que deveria cuidar dos negócios de seu Pai (Lucas 2:49).


Antes de dizermos que Jesus foi um Neymar, vejamos que:

1) Ele é Deus;
2) Ele é perfeito;
3) Ele não comete pecado.

Logo, em tese, Jesus poderia ficar lá, fazer o que quisesse...e não obedecer a José e Maria. Afinal, em última análise, José e Maria são servos de Cristo. Mas, que diz a Bíblia?
E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes submisso. Sua mãe, porém, guardava todas estas coisas no coração. (Lucas 2:51)
Se Jesus é o exemplo supremo, aqueles que se dizem seus irmãos deveriam imitá-Lo. As leis (que são ordens de autoridades legislativas constituídas por Deus), os pais, os professores, os chefes...todos deveriam ser respeitados e obedecidos na maior parte do tempo.

Neymar não é o único
Mas hoje contestar, questionar e ofender as autoridades é a moda. Alunos fazem piada dos professores, adolescentes se comportam como animais em acampamentos evangélicos, filhos não dão mais satisfação aos pais. No fundo, todos eles se acham melhores, mais inteligentes, espertos ou legais do que as autoridades.

Contudo, este não é um problema dos mais jovens. No Brasil de hoje, o presidente da República se sente à vontade para afrontar a liberdade de imprensa, um princípio fundamental da Constituição, a ponto de provocar uma reação dos jornais brasileiros e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Nesta semana um governador é preso pela Polícia Federal por desvio de verbas, solto e é recebido com festa no Amapá. Hoje surgiu mais uma denúncia de tráfico de influência, de uma empresa que teria sido favorecida em uma licitação por ter como funcionário o filho de um ministro. Parece que todos, inclusive as autoridades, querem burlar a ordem em benefício próprio.

Na verdade, a desobediência, a falta de domínio próprio, a ingratidão (não foi Dorival quem deu uma chance a Neymar?) e a irreverência são marcas do homem dos últimos dias. E é exatamente por causa destas coisas que essa época pode ser chamada de difícil:
Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes. (2 Timóteo 3:1-5)
O mundo pode até valorizar os irreverentes e desobedientes como heróis e pessoas de "personalidade". Mas os verdadeiros cristãos devem fugir deste padrão. E, quando caírem neste tipo de erro, devem se arrepender e mudar de atitude.

Como mudar?
E a receita está em Tito 3:1-7. Leiamos primeiro do versículo 1 ao versículo 3:
Lembra-lhes que se sujeitem aos que governam, às autoridades; sejam obedientes, estejam prontos para toda boa obra, não difamem a ninguém; nem sejam altercadores, mas cordatos, dando provas de toda cortesia, para com todos os homens. Pois nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes, desgarrados, escravos de toda sorte de paixões e prazeres, vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-nos uns aos outros. (Tito 3:1-3)
A Igreja precisa ensinar a todos, desde as crianças até os mais idosos, que nós devemos nos sujeitar às autoridades. A desobediência deve ser vista como um pecado que os verdadeiros cristãos abandonam. Afinal, como diz a Bíblia, outrora...em outra era...nós éramos desobedientes.

Mas falta ler os versículos 4 a 7:
Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com todos, não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. (Tito 3:4-7)
Os desobedientes devem buscar na graça de Jesus Cristo o lavar regenerador do Espírito Santo. Devem crucificar com Cristo a desobediência e suplicar ao Pai que o Espírito os lave deste pecado. Só assim será possível vencer a rebeldia do coração humano.

A exceção
A única exceção seria a de recebermos uma ordem que contrarie uma lei maior, a de Deus. Por exemplo, quando o Sinédrio quis proibir os apóstolos de pregar o Evangelho, eles tiveram que desobedecer. A razão está nos lábios de Pedro e João:
Chamando-os, ordenaram-lhes que absolutamente não falassem, nem ensinassem em o nome de Jesus. Mas Pedro e João lhes responderam: Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; pois nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos. (Atos 4:18-20)
As autoridades também devem ser questionadas quando peca, ainda que seja em sua esfera íntima. Foi o que fez João Batista, ao confrontar a conduta sexual de Herodes:
Porque o mesmo Herodes, por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe (porquanto Herodes se casara com ela), mandara prender a João e atá-lo no cárcere. Pois João lhe dizia: Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão. E Herodias o odiava, querendo matá-lo, e não podia. Porque Herodes temia a João, sabendo que era homem justo e santo, e o tinha em segurança. E, quando o ouvia, ficava perplexo, escutando-o de boa mente. (Marcos 6:17-20)
Convenhamos...o caso do cristão Neymar não se encaixa em nenhum dos casos. Na maioria das vezes, o pecado é ignorar a regra, e não as exceções. Mas...

Mas quando as autoridades do país quebram leis às quais eles estão sujeitos ou pecam, aí sim a Igreja deveria fazer alguma coisa. E a indiferença de muitos cristãos diante da conduta das autoridades no Brasil é também pecado.

Que o Brasil deixe de ser o país onde nos rebelamos quando estamos errados e somos cordeirinhos mansos quando deveríamos abrir a boca. Que o Senhor tenha misericórdia de nós!

17 de setembro de 2010

“Por que me preocupar se o abortado não sou eu”? Um clamor pela não-presidência do PT

Era só mais um dia como outro qualquer na capital paulista. Érica, uma jovem de apenas dezessete anos, estava grávida de dois meses. Como muitas garotas na sua idade, ela não sabia quem era o pai da criança, visto que havia se envolvido com muitos parceiros naquela noite. Não, ela não é garota de programa, mas de uma família abastada da classe média paulistana. Havia saído com os amigos para uma balada, onde tudo aconteceu – sexo, drogas, rock n’ roll e mais algumas coisinhas. Somente sua mãe sabia que ela estava grávida, mas não por Érica ter contado, e sim por pura desconfiança – dos constantes enjoos, dos remédios escondidos na gaveta, do semblante sempre misterioso e… pelo instinto materno também, é lógico. Até que Érica abriu o jogo com sua mãe, mas somente com ela, porque se o pai soubesse provavelmente a colocaria para fora de casa. E agora? O que fazer?

Mesmo se soubesse quem era o pai da criança, Érica bem sabia que nenhum dos garotos com quem se relacionou naquela noite estaria disposto a assumir a responsabilidade. “Toma que o filho é teu” – ia parecer piada! A alternativa? Bem. Logo ali perto de sua casa funcionava uma clínica clandestina especializada em resolver “questões familiares” dessa natureza. A ideia partiu de uma colega de Érica, que rapidamente convenceu ela e sua mãe de que aquela era a alternativa mais viável naquele momento tão delicado. “Esgotados” todos os recursos, resolveram ir lá – sem muito constrangimento moral, pois, afinal de contas, mais um pouquinho de tempo e a barriguinha ia começar a despontar, e aí o “constrangimento” ia ser de verdade: pela expulsão de casa, pelo desamparo, pelo falatório popular, etc. Enfim, o procedimento médico (médico?) não demorou muito. Por sucção o feto foi extraído e logo em seguida jogado no lixo. E Érica foi embora com um “enorme” peso tirado das costas – e da barriga.

Apesar de o relato acima ser fictício, qualquer semelhança com a realidade não terá sido mera coincidência. E não terá sido mesmo: acontece todos os dias nas capitais paulista, mineira, fluminense, pernambucana, baiana, catarinense, amazonense, etc. A estória foi contada bem grosso modo; um pouco exagerada e caricaturizada, é verdade, mas o que é a vida para os abortistas? Mais especificamente, o que é a vida para os petistas que idealizaram o Projeto Nacional de Desenvolvimento Humano 3 (PNDH-3), que aprova, dentre outras aberrações, a descriminalização do aborto, sob a alegação da “autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos” (Diretriz 9; Objetivo Estratégico III, letra g)? “Autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”… E quem decide sobre a vida, quem é? Verifica-se que para esse pessoal (inclusive para a nossa Érica, se a carapuça assim servir) o feto é somente um “corpo estranho” (literalmente) que a mulher pode retirar da sua barriga a hora que quiser, assim como se tira um espinho ou um caco de vidro do pé.

O mais irônico de tudo é que nosso Excelentíssimo Senhor Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um dito “defensor” dos direitos humanos e dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, no texto de apresentação ao PNDH-3, diz que

Todos esses avanços são robustos e animadores, mas não podem esconder os problemas ainda presentes. […] Refiro-me à violência que ainda mostra índices alarmantes nas grandes cidades; à prostituição infantil; grupos de extermínio; persistência do trabalho escravo e do trabalho infantil [p. 13].

De fato, descriminalizar o aborto deve ser mesmo “robusto e animador” para alguém que não sabe o real significado das palavras vida, direitos humanos e liberdade, conceitos que ele tanto diz cultuar. Será que ele enxergaria os idealizadores desse projeto maligno, bem como as inúmeras clínicas abortistas (que deixarão de ser clandestinas, se Dilma for eleita!) como esse tal “grupo de extermínio” que ele condenou acima? É óbvio que não! Por que? Porque ele mesmo diz que

Não haverá paz no Brasil e no mundo enquanto persistirem injustiças, exclusões, preconceitos e opressão de qualquer tipo. A equidade e o respeito à diversidade são elementos basilares para que se alcance uma convivência social solidária e para que os Direitos Humanos não sejam letra morta da lei. Este PNDH-3 será um roteiro consistente e seguro para seguir consolidando a marcha histórica que resgata nosso País de seu passado escravista, subalterno, elitista e excludente, no rumo da construção de uma sociedade crescentemente assentada nos grandes ideais humanos da liberdade, da igualdade e da fraternidade [p. 13].

Um testemunho: eu tinha dito para mim mesmo que política não era, definitivamente, a minha “praia”, mas essas coisas instigaram meu interesse. Eu até nem mesmo sabia exatamente porque o PT era maligno (a não ser pelo fato de eu detestar a esquerda comunista histórica), mas agora me convenço de que a ideologia que o estrutura é mesmo anticristã (em primeira instância) e desumana (em última). Infelizmente, o povo parece não perceber isso. Como diria Paulo, o “deus deste século” tem cegado seus entendimentos (2 Co 4.4). Quando se promete internet grátis, mais escolas e mais hospitais, as pessoas parecem não enxergar mais a necessidade de Cristo, Aquele que redime o homem desse cativeiro moral, espiritual e, por que não, ideológico. E o pior de tudo é que a cegueira é tão grande que até mesmo projetos explicitamente desumanos como esses são recebidos com entusiasmo e expectativa, inclusive por alguns cristãos que já se decidiram pelo PT, a quem lhes dou os meus sinceros pêsames escatológicos, se não se arrependerem de seus maus caminhos.

Não estou escrevendo para convencer os cristãos que estão prestes a votar no PT para a presidência da República a não fazê-lo (uma vez que nem mesmo a Bíblia eles ouvem!), mas para que pelo menos reflitam sobre os desdobramentos que hão de resultar disso. E esse meu clamor se estende até mesmo àqueles que não se julgam como cristãos, mas que pelo menos ainda prezam por valores como vida, família, igualdade e liberdade. Será que em algum lugar desse mundo alguém já se colocou no lugar do abortado? Melhor: alguém gostaria de ser alijado precocemente da placenta de sua mãe somente para não ser um estorvo (ainda mais agora, que a cadeirinha é obrigatória no banco traseiro), um estraga-prazeres, um aperta-orçamento? Mas parece que muitos não dão a mínima para isso. E é exatamente por isso que as “éricas” espalhadas por aí seguem jogando vidas interrompidas na lata do lixo, aos cuidados do primeiro gato que aparecer. Afinal de contas, por que me preocupar se o abortado não sou eu?

Que Deus tenha misericórdia de nós!

Soli Deo Gloria!

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O PNDH-3 pode ser aqui: http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf

A Bíblia pode ser lida aqui: http://www.bibliaonline.com.br/

1 de setembro de 2010

A Bíblia e as liberdades fundamentais ou Porque não voto no PT

Tendo, pois, Festo assumido o governo da província, três dias depois, subiu de Cesaréia para Jerusalém; e, logo, os principais sacerdotes e os maiorais dos judeus lhe apresentaram queixa contra Paulo e lhe solicitavam, pedindo como favor, em detrimento de Paulo, que o mandasse vir a Jerusalém, armando eles cilada para o matarem na estrada.

Festo, porém, respondeu achar-se Paulo detido em Cesaréia; e que ele mesmo, muito em breve, partiria para lá. Portanto, disse ele, os que dentre vós estiverem habilitados que desçam comigo; e, havendo contra este homem qualquer crime, acusem-no.

E, não se demorando entre eles mais de oito ou dez dias, desceu para Cesaréia; e, no dia seguinte, assentando-se no tribunal, ordenou que Paulo fosse trazido. Comparecendo este, rodearam-no os judeus que haviam descido de Jerusalém, trazendo muitas e graves acusações contra ele, as quais, entretanto, não podiam provar.

Paulo, porém, defendendo-se, proferiu as seguintes palavras: Nenhum pecado cometi contra a lei dos judeus, nem contra o templo, nem contra César.

Então, Festo, querendo assegurar o apoio dos judeus, respondeu a Paulo: Queres tu subir a Jerusalém e ser ali julgado por mim a respeito destas coisas?

Disse-lhe Paulo: Estou perante o tribunal de César, onde convém seja eu julgado; nenhum agravo pratiquei contra os judeus, como tu muito bem sabes. Caso, pois, tenha eu praticado algum mal ou crime digno de morte, estou pronto para morrer; se, pelo contrário, não são verdadeiras as coisas de que me acusam, ninguém, para lhes ser agradável, pode entregar-me a eles. Apelo para César.

Então, Festo, tendo falado com o conselho, respondeu: Para César apelaste, para César irás. (Atos 25:1-12)
Uma das maiores mentiras já contadas aos evangélicos é a de que todos os sistemas políticos são compatíveis com a Bíblia. Dizem os pregadores que não importa se estamos em uma democracia ou em uma ditadura, no socialismo ou no capitalismo...o Evangelho conviveria bem em qualquer forma ou regime de Governo. Bastaria que os cristãos sejam submissos ao Estado, porque a mensagem evangélica nada teria a dizer sobre política.

Contudo, o reino de Deus não é apenas a proclamação da libertação dos pecados. O objetivo de Deus é fazer com que todas as coisas sejam transformadas por Cristo e estejam subordinadas a Ele, o que certamente inclui os governos:
desvendando-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu, como as da terra...(Efésios 1:9-10)
A Bíblia não é um livro que fala apenas de salvação de pecados. Ela também trata de política, de economia, de sociedade...e os cristãos precisam aprender o que ela ensina sobre isso. E uma das pistas está no final do livro de Atos dos Apóstolos.

A lei protegendo o apóstolo
Por que será que Lucas gasta 6 capítulos de Atos narrando todos os fatos relativos à prisão de Paulo? A Bíblia não discorre apenas sobre os milagres ou discursos acontecidos nesta época, mas detalha as prisões, as emboscadas, os recursos judiciais, as audiências...ela mostra que os cristãos precisam de um Estado onde seja possível recorrer às arbitrariedades de um grupo organizado de pessoas.

Ou, dito de outra maneira, a Bíblia mostra que os cristãos devem contar com um Estado onde os cidadãos tenham o direito de se defenderem de ataques e de terem um julgamento justo.

Vejamos o contexto próximo de Atos 25. Paulo estava respondendo a uma falsa acusação dos judeus de ter profanado o templo. Sem um processo formal, Paulo foi espancado (Atos 21:29-32) e tentaram assassiná-lo duas vezes (Atos 21:31 e 23:12-35). Para escapar da morte e do abuso de autoridade de um comandante militar, Paulo apelou para seus direitos de cidadão romano (Atos 22:25-27) e contou com a lei para escapar de açoites (Atos 22:29). A proteção do Estado também foi necessária para garantir a integridade física do apóstolo (Atos 23:31-33).

Claro que nem tudo correu como o planejado. Mais de uma vez as autoridades romanas reconheceram que Paulo não cometeu nenhum delito contra Roma (Atos 23:28-29; 25:24-27; 26:30-32). Mesmo assim, a pressão dos judeus fez com que as autoridades romanas deixassem Paulo preso, como podemos ver no texto que abre este post.

No entanto, mesmo assim, sempre havia uma forma legal de recorrer dos abusos e garantir direitos. Foi o que Paulo fez quando viu que Festo queria agradar os judeus e que sua vida corria perigo. Ao reconhecer um juiz suspeito, Paulo recorreu ao tribunal superior. Apelou para César.

O ponto de vista bíblico sobre o Direito
Talvez muitos cristãos pensem que Paulo só agiu assim, apelando para a Lei, porque ele tinha esta opção. Imaginam que, na ausência de um Estado garantidor de direitos fundamentais, Paulo talvez apenas fugisse.

Contudo, não é isso o que o texto nos indica. Quando Festo tenta ferir o direito de Paulo, ele diz claramente ao governador o seu pensamento jurídico (e teológico):
Disse-lhe Paulo: Estou perante o tribunal de César, onde convém seja eu julgado; nenhum agravo pratiquei contra os judeus, como tu muito bem sabes. Caso, pois, tenha eu praticado algum mal ou crime digno de morte, estou pronto para morrer; se, pelo contrário, não são verdadeiras as coisas de que me acusam, ninguém, para lhes ser agradável, pode entregar-me a eles. Apelo para César. (Atos 25:10-11)
Nesta fala fica claro que:

- Paulo reconhecia a legitimidade do Estado para julgar o caso;
- Paulo aceitaria até a pena de morte caso tivesse cometido um crime grave;
- Nenhum juiz tem o direito de torcer o seu julgamento;
- Ele iria lutar até o último recurso para garantir o seu direito.

Essa postura combina com o ensino que é dado pelo apóstolo em Romanos 13. O Estado deve premiar quem faz o bem e castigar quem faz o mal:
Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. (Romanos 13:3-4)
Paulo nunca buscou que o Estado romano chancelasse o cristianismo, assim como nunca procurou afrontar Roma. Não pediu a César que construísse templos ou praças da Bíblia nem articulou golpes de Estado. Mas, de modo bastante ativo, procurou sim, de todas as formas, garantir que o Estado cumprisse o seu dever bíblico.

E hoje?
Hoje a questão permanece atual. Em vários países, a Igreja não tem liberdade para pregar o Evangelho ou o Estado não garante a proteção aos cristãos. A situação é tão grave que há uma missão voltada especificamente para esta questão: a Portas Abertas. E, normalmente, essa perseguição acontece em Estados onde a democracia ainda não é consolidada.

E, onde os direitos fundamentais do cidadão estão ameaçados, a Igreja deve acordar. É nosso papel lutar ativamente para que o Estado seja usado para proteger os cidadãos da coação de grupos ou mesmo de agentes públicos. Mas, quando o Estado suas estruturas são usadas por grupos políticos para pressionar ou ameaçar a quem quer que seja, o dever da Igreja é protestar.

Nesta semana foi revelado que a Receita Federal do Brasil, ferindo a Constituição, quebrou o sigilo de Verônica Serra, filha do candidato a presidente da República, José Serra. Já é comprovado que um documento foi falsificado para a obtenção dos dados. O sigilo fiscal de outros quatro integrantes do PSDB também foi quebrado. O mesmo aconteceu com outras 130 pessoas. E já aconteceu antes com um caseiro. Tudo isso acontece e o Governo manobra para evitar dar explicações ao Congresso Nacional sobre o ocorrido. 

Junte a isso a tentativa de aprovar um programa de direitos humanos onde se dificulta que um cidadão se defenda de invasões à sua propriedade e com ameaças à plena liberdade de imprensa. Some-se a amizade com países onde a imprensa está sendo intimidada, como a Argentina e a Venezuela ou onde pessoas são condenadas à morte sem um julgamento justo, como o Irã. Isso sem falar na comparação feita pelo presidente Lula entre militantes da defesa das liberdades em Cuba e os bandidos do Brasil.

Diante de tudo isso, fica a pergunta. O Evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo é compatível com a forma como o Governo brasileiro encara a questão das liberdades? A Igreja deve ficar apática diante de tudo isso ou deve erguer-se em protesto?

A passividade da igreja evangélica brasileira diante de um Estado que fere os direitos dos cidadãos e faz companhia a países de tendências antidemocráticas é um pecado! Por várias razões:
1) Porque a Bíblia prega, para este mundo, um Estado onde essas liberdades (culto, pensamento, imprensa, opinião) e direitos (julgamento justo, devido processo legal) sejam respeitados;

2) Porque o aparelho do Estado está sendo usado para intimidar cidadãos, quando deveria ser usado para protegê-los de intimidações;

3) Porque a garantia destes direitos é fundamental para a proteção do próprio cristianismo em terras brasileiras;

4) Porque a aproximação do Brasil com as ditaduras acaba reforçando-as, e assim, contribui para uma perseguição maior da Igreja;

5) Porque o fato disso estar acontecendo com não-crentes não significa que eles não tenham o mesmo direito que nós diante de Deus.
Os servos de Deus devem parar de acreditar em mentiras. A Bíblia não é compatível com as ditaduras, nem com governos onde os cidadãos não possam se defender do Estado e onde ele é usado para intimidar quem deveria ser protegido. Precisamos reagir contra isso. Inclusive no voto, recusando-se a eleger políticos que não tenham compromisso com a democracia.