25 de outubro de 2018

A Reforma Anti-Totalitária e suas lições para o Brasil

Sinto saudades de quando as eleições eram realizadas apenas no dia 15 de novembro. Então, outubro ainda podia ser o mês das crianças e da Reforma Protestante. No entanto, quis a Providência Divina que o Brasil realizasse eleições em outubro. Mais do que isso: em 2018 elas acontecem no domingo em que, tradicionalmente, celebraríamos o aniversário da Reforma Protestante. E há sabedoria nisso.

Martinho Lutero ainda não sabia disso, mas quando ele pregou suas 95 Teses na Catedral de Wittenberg, ele começou um movimento religioso que teria implicações políticas, culturais e econômicas. Até os estudiosos seculares se sentem obrigados a explicar a Reforma em seus cursos de História, porque ela é indispensável para compreender o mundo em que vivemos hoje. A fé nunca é apenas um assunto privado, ela é sempre o centro de um abalo sísmico que vai impactar toda a vida do fiel. E, no campo político, a Reforma foi um grito contra o totalitarismo simbolizado pelo papa.

A Bíblia e as constituições
O papado moderno foi forjado durante a Idade Média e é filho de seu tempo. A Igreja sempre foi descentralizada enquanto era perseguida no Império Romano. Houve um início de centralização quando Constantino reconheceu o cristianismo, no século IV, mas o fim do Império Romano voltou a fragmentar a Igreja ocidental. Ao longo da Idade Média, reis buscaram legitimar seu poder e centralizá-lo, lutando para diminuir o poder dos senhores feudais. De modo análogo, o Papado também reivindicou para si a supremacia sobre toda a Igreja e lutou contra reis para assumir o controle das nomeações eclesiásticas e sufocar aqueles que contestassem sua teologia e autoridade. O período medieval termina com reis absolutistas e papas com um imenso poder. Em suma: a Idade Média começa com uma Europa quase anárquica e termina com uma Europa quase totalitária.

Ao questionar publicamente as indulgências (o perdão de pecados concedido por meio de ofertas à Igreja) e apontar os desvios do catolicismo romano, Lutero fez um desafio imperdoável. O erro do reformador foi ter afirmado que, além de Deus, havia uma outra autoridade superior à do papa: a Bíblia Sagrada. Quando ele colocou as Escrituras como a norma a ser observada até mesmo pelo suposto sucessor de Pedro, Lutero desferiu um golpe inconsciente contra o totalitarismo medieval.

Esse deslocamento de autoridade teve repercussões que se fazem sentir até no Brasil do século XXI. Ao colocar a autoridade sobre as leis divinas, e não sobre o seu intérprete, Lutero deu uma justificação teológica para os governos constitucionais de nosso tempo. O poder de reis, presidentes, parlamentares e juízes é definido e limitado pelo texto constitucional. Em caso de abusos de poder, assim como Lutero apelou para a Palavra de Deus, hoje podemos apelar para o texto fundador do país: a Constituição.

Vale lembrar que isso afetou até mesmo os príncipes que protegeram Lutero quando a reação católica colocou a vida do reformador em perigo. Os príncipes alemães gostaram da descentralização de poder, mas talvez aspirassem a um totalitarismo local, menor. Com o passar do tempo, o apelo à Lei acabou alcançando todas as esferas de poder político ocidental, enterrando também o feudalismo e toda a estrutura política medieval.

Concílios e parlamentos
Uma vez estabelecida uma nova fonte de autoridade, é preciso ouvir o que ela diz. A Reforma foi, antes de tudo, uma tentativa de retorno e de resgate do ensino bíblico. E algo interessante a se notar é que nenhuma das denominações filhas da Reforma de Lutero adotou o episcopalismo, o governo da Igreja pelos bispos. As denominações protestantes que possuem bispos ou são filhas da Reforma Inglesa (metodistas, por exemplo) ou são filhas do movimento neopentecostal, o qual tem seu caráter protestante questionável.

De modo geral, duas formas de governo eclesiástico procederam do movimento inicial da Reforma: o governo congregacional e o governo presbiteriano da Igreja. A figura do bispo acima dos demais que decide as questões doutrinárias foi substitúido pelos concílios. O luteranismo formou seu corpo doutrinário na Confissão de Augsburgo, que teve Melanchton como principal redator, e não Lutero. João Calvino defendeu o governo da Igreja por meio de uma pluralidade de presbíteros e as doutrinas do calvinismo foram definidas em concílios posteriores, que produziram documentos como Os Cânones de Dort e a Confissão de Fé de Westminster, entre outros. Até mesmo os batistas decidiram sua doutrina de modo conciliar, produzindo as Confissões Batistas de Londres no século XVII.

A importância dos concílios é que eles são uma espécie de equivalente dos parlamentos. Diferentes pontos de vista são examinados por comissões, discutidos e chega-se a um acordo sobre o texto final. A primeira grande controvérsia teológica cristã foi resolvida de modo similar, no que ficou conhecido como Concílio de Jerusalém, registrado em Atos 15. De modo mais rotineiro, tanto as assembleias congregacionais como as reuniões de Conselhos de igrejas locais também cumprem uma espécie de papel legislativo. O clero não decide sozinho, ele precisa do consentimento da assembleia ou de seus representantes (os presbíteros) para governar a Igreja.

Liberdade: a doença e o antídoto
Contudo, há uma implicação negativa da Reforma, sempre lembrada pelos católicos. Ao evitar a centralização, a Reforma levou a um quadro nunca antes de visto de desfragmentação da Igreja. Ninguém sabe ao certo quantas denominações se divide o protestantismo, e muitas delas sequer carregam os fundamentos teológicos dos reformadores.

Por que isso acontece? Porque o maior problema da Reforma é uma de suas maiores virtudes: a liberdade. Ao tirar o poder de uma pessoa e lançá-lo sobre a Bíblia em si, a Reforma abriu a possibilidade de qualquer um examinar livremente a interpretação bíblica. Como é inevitável (e explico por quê a seguir), divergências surgiram. E, sem uma autoridade central a apelar, nada impediu que se criassem denominações diferentes.

Essa fragmentação era inevitável porque é uma consequência da liberdade em um mundo caído. O ensino bíblico afirma claramente que o pecado afetou o ser humano como um todo, inclusive nas áreas da razão, das emoções e dos desejos e vontades. Por esse motivo, a unidade espontânea de pensamento é inatingível neste mundo. Alie a isso a finitude dos seres humanos e você verá que é impossível que nós enxerguemos todos os lados de uma questão e vejamos tudo como Deus vê.

Mas essa fragmentação tão indesejada acaba sendo uma virtude celebrada na política. Os partidos políticos são como as diferentes denominações protestantes. Cada um deles possui (ou deveria possuir) um programa ideológico, com propostas concretas diferentes sobre como a Constituição deve ser interpretada e executada. E como a Constituição não é a Bíblia Sagrada, eles possuem visões diferentes até de como deveria ser o texto constitucional. Mas, embora sejam partidos diferentes, ainda são parte de um mesmo país. E essa pluralidade político-partidária tem evitado totalitarismos e corrigido erros por meio da alternância de poder.

E é aí que a liberdade trazida pela Reforma se transforma em cura. O que os católicos não entendem é que, embora existam muitas denominações, os protestantes se vêem como parte de uma única Igreja de Cristo. Por isso não digo "igrejas" protestantes, mas sim "denominações". E, assim como os partidos políticos podem ser classificados em grandes categorias, também as denominações, embora muitas, acabam seguindo um número bem menor de escolas protestantes de pensamento. Há esquerda e há direita, mas há calvinistas, luteranos, herdeiros do anglicanismo, batistas e pentecostais. Dificilmente alguma denominação estaria fora desse enquadramento geral.

Mais do que isso: as diferentes tradições protestantes se complementam. Por mais que eu, por exemplo, considere a tradição calvinista como sendo a mais fiel intérprete do texto bíblico, aprecio muito as contribuições que outras tradições trouxeram ao cristianismo. Este blog é uma pequena demonstração disso, pois embora sejamos cinco calvinistas, todos temos algumas afinidades com outras tradições que moldaram ou moldam a nossa fé até hoje.

E o Brasil?
Mas vamos parar de falar de 1517 e irmos a 2018. Hoje, às vésperas do segundo turno de eleições presidenciais, o país todo teme a volta do totalitarismo. Um grupo teme o advento de uma ditadura socialista, outro o de uma ditadura militar. E aqui eu convido os dois lados a encontrarem na Reforma e nas Escrituras os princípios que podem evitar esse perigo.

A Reforma é o reconhecimento de que o ser humano é pecador e que nenhum de nós pode ter poderes em excesso. Se trouxermos esse reconhecimento para a esfera civil, entenderemos que nenhum político, partido ou Estado pode ter um poder ilimitado. É preciso que tenhamos um documento, uma constituição para a qual possamos apelar, inclusive contra as autoridades constituídas, caso elas se corrompam.

Além do limite constitucional, é preciso que o poder seja compartilhado. Esse compartilhamento pode ser maior ou menor (congregacionais e presbiterianos que o digam), mas é necessário. O povo não apenas deve ser ouvido, mas também deve assumir a responsabilidade de aprovar leis e governar.

E, uma vez que a unidade perfeita só virá quando Cristo voltar, é preciso que convivamos com uma pluralidade de opiniões. Claro, é preciso que exista um consenso em torno de valores básicos e essenciais. Mas há amplo espaço para debates e discordâncias respeitosas em assuntos secundários. A liberdade sempre trará diferenças consigo. E, desde que o principal seja preservado, a liberdade não é uma inimiga da unidade que desejamos como Brasil.

Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro

23 de outubro de 2018

Aborto social

Ou: A insensibilidade como prova da imoralidade

Li nas mídias sociais que haveria um "arguto" argumento em favor da descriminalização do aborto desenvolvido num artigo de um grande jornal. Fui conferir. E tal argumento pode ser resumido na sua afirmação tese:
Meu argumento pragmático em defesa do direito da mulher de interromper a gravidez em seu estágio inicial é o seguinte: não há qualquer ritual social que indique a perda de uma vida humana quando uma gravidez é interrompida nesse estágio. (Um argumento pragmatista em defesa do direito de aborto, por Heloisa Pait, no Estadão, em 28/08/2018)
Este é um dos argumentos mais abjetos que já tive a oportunidade de ler/ouvir.

Em 2015, minha esposa sofreu um aborto espontâneo no estágio inicial da gravidez. É verdade que não houve qualquer "ritual social" a respeito. Mas houve luto familiar, que não deixou de ser compartilhado:


O luto…

“Você saberia meu nome se eu o visse no Paraíso?”

…não é sem…
“Além da porta há paz, eu estou certo, e eu sei que não haverá mais lágrimas no Paraíso!”
…ESPERANÇA!

27.05.2015 (trechos de Tears in Heaven, de Eric Clapton)
Uma vez compartilhado, houve condolências. Mas, não houvesse, não faria a menor diferença para nosso luto e o sofrimento da perda de um filho.

E aqui convém dizer que a falta de um túmulo e mesmo de um nome também não diminuem o luto neste tempo e a esperança que acalento de encontrar meu não nascido no porvir. Também não importa que mesmo entre os cristãos não se veja, socialmente, um discurso neste sentido.

Sim, este luto é um luto íntimo.

Em 2011, um casal amigo passou por uma gravidez difícil e acabou perdendo seu bebê. O marido, André Venâncio, escreveu, à época em seu blog, um dos relatos mais comoventes que já tive ocasião de ler a respeito da perda de um não nascido: Dezenove semanas de amor. Destaco o parágrafo final de seu relato:
Sofro porque meu filho partiu tão cedo, pela intimidade que não chegamos a ter, pelas muitas alegrias (e algumas dores de cabeça) que não terei mais, por tudo o que eu teria aprendido com ele, por todos os momentos com que sonhei e que jamais acontecerão. É como se nossa vida tivesse empobrecido de repente. É justo chorar por tudo isso. Mas não há nenhuma necessidade de chorar por meu bebê, como se ele fosse uma vítima inocente de um destino cruel, nem de queixar-me das injustiças deste mundo, no qual tantos perversos incorrigidos passam vidas longas e saudáveis. A verdade é o oposto exato disso tudo: meu filho se foi deste mundo mau sem que ninguém lhe tivesse feito mal algum. Deus foi maravilhosamente bom para ele. Sua morte foi preciosa aos olhos de meu Senhor, que o alcançou com sua graça salvadora. Todo pai deseja que seu filho seja bem-sucedido. Pois o meu foi, naquilo que pode haver de mais importante. E isso muito me alegra nesta hora de lágrimas.

Sim, este luto é um luto íntimo. Mas os cristãos sofremos e esperamos, mesmo em silêncio.

Até porque… que esperar da sociedade quanto às angústias mais profundas pelas quais passamos?

Em A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi, o personagem principal se ressentia da indiferença e da afetação dos médicos e dos familiares. Afetação e indiferença bem poderiam também fazer parte do delírio do doente, mas é certo que a tristeza convencional (social) é bastante insincera. E isto é um retrato fiel da realidade.

Ou, como bem disse Fabrício Tavares de Moraes:
No conto “Angústia”, Tchekhov narra a excruciante dor do cocheiro Yona Potapov, que havia perdido há pouco seu menino em razão de uma febre misteriosa. Tentando comunicar-se e falar de sua perda a todos os que entram em seu coche, depara-se com a completa indiferença dos tipos sociais. Por fim, encontra no seu cavalo o único ouvinte atento: “O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo… Yona anima-se e conta-lhe tudo…”.
Considerar a angústia humana pelas reações ou ritos sociais que se lhe seguem é próprio de uma alma imersa nas trevas mais estéreis.

A verdade é que nossas dores, especialmente as mais lancinantes, as mais profundas, as mais indelevelmente marcantes, raramente são compartilhadas por outros. São angústias pessoais, não sociais.

Que esta espécie de “aborto social” da dor individual, assassinada e esquecida pela multidão, seja um aspecto da realidade é irrelevante para a causa do aborto. A única coisa que o "aborto social" prova é a extensão da depravação humana.

A tese que faz depender a humanidade do feto à qualquer consciência social por meio de ritos é um desrespeito tanto ao feto quanto à própria angústia de inúmeros pais que sofrem a perda de um filho, quer participem isso socialmente quer pranteiem em silêncio. É uma monstruosidade.

Justificar, pois, a própria imoralidade pela insensibilidade social é cabal, total e perfeitamente abjeto. É acumular testemunho da própria podridão contra si.

É uma tristeza que o homem seja capaz de propor tais termos.