Qual o significado dos dois testamentos da Bíblia? Popularmente, aprendemos nas igrejas cristãs que o Antigo Testamento refere-se a uma aliança feita por Deus antes da vinda de Jesus Cristo, que não está mais em vigor nos dias de hoje. Já o Novo Testamento é a aliança feita por meio de Jesus Cristo e que vigorará até o fim dos tempos. De modo geral essa diferenciação é reconhecida por diferentes correntes teológicas, embora alguns acentuem a separação (dispensacionalismo) e outros a atenuem (aliancismo ou teologia do pacto).
Contudo, ultimamente no Brasil uma forma extremada de aliancismo começa a ganhar espaço. Algumas pessoas defendem que a Lei de Moisés deve ser aplicada, em seus aspectos civis, em pleno século XXI. Por causa desse tipo de ideia, blogs como o
Internautas Cristãos, defendem que o Estado criminalize pecados como o adultério e o homossexualismo, como pode ser visto neste
post:
Os cristãos são favoráveis a leis que proíbam e punam o homossexualismo?
Sim, pois é isso que a Bíblia ensina. A lei de Deus é clara ao criminalizar o assassintato (sic!), o roubo, o adultério, o estupro, o homossexualismo, o incesto, a zoofilia, e uma série de outras condutas imorais. Isso serve para proteger a sociedade contra a proliferação do pecado. (Internautas Cristãos)
Esse ponto de vista choca-se diretamente com o de outros blogs, inclusive o
5 Calvinistas, que não defendem a aprovação de nenhuma lei que proíba a conduta homossexual, entendendo que não é papel do Estado legislar sobre a matéria:
Não somos a favor de nenhum tipo de lei que proíba a conduta homossexual; da mesma forma, somos contrários a qualquer lei que atente contra um princípio caro à sociedade brasileira: a liberdade de consciência.
É impossível que os dois lados estejam corretos. Definir quem tem razão é responder primeiro a seguinte pergunta: a lei civil de Israel deve ser obedecida pelos cristãos após a vinda de Jesus?
As três faces da Lei
Para entender melhor a discussão, é preciso esclarecer antes uma divisão que é feita da Lei de Moisés, que vigorou durante todo o Antigo Testamento. Dentro da teologia cristã, a Lei é dividida em três aspectos:
1. Lei moral: os princípios morais da Lei, como a ordem de amar ao próximo como a si mesmo (Levítico 19:18). Para os aliancistas (entre os quais eu me inclúo), esta parte do Antigo Testamento encontra-se em pleno vigor mesmo no século XXI.
2. Lei cerimonial: os sacrifícios e rituais de culto do Antigo Testamento (como Levítico de 1 a 7). Para todos os cristãos, essa parte da Lei não é mais válida, porque se tornou inútil com o sacrifício de Jesus Cristo na cruz.
3. Lei civil: a parte da Lei que estipulava penas a serem aplicadas pelo Estado teocrático de Israel, como a ordem de matar os filhos que amaldiçoassem aos pais (Êxodo 21:17). Para os dispensacionalistas e aliancistas moderados, essa parte da Lei também não é mais válida, ela apenas traz princípios que podem ser aplicados hoje em dia (como a justiça retributiva). Mas, para os aliancistas extremados, como é o caso do Internautas Cristãos, a lei civil deve ser aplicada, ainda que com adaptações.
Por que a lei civil caiu?
Uma das discussões mais vivas e presentes da igreja na época dos apóstolos foi exatamente a de determinar o que deveria ser observado da Lei e o que deveria ser descartado. O centro dessa discussão foi a circuncisão. Um grupo de judeus convertidos ao cristianismo achava que os não-judeus (gentios) deveriam ser circuncidados e observar a lei de Moisés. Já os apóstolos Paulo e Barnabé se opunham a isso. A discussão e a sua solução estão registradas em Atos 15:4-29.
Tendo eles chegado a Jerusalém, foram bem recebidos pela igreja, pelos apóstolos e pelos presbíteros e relataram tudo o que Deus fizera com eles. Insurgiram-se, entretanto, alguns da seita dos fariseus que haviam crido, dizendo: É necessário circuncidá-los e determinar-lhes que observem a lei de Moisés.
Então, se reuniram os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão.
Havendo grande debate, Pedro tomou a palavra e lhes disse: Irmãos, vós sabeis que, desde há muito, Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio, ouvissem os gentios a palavra do evangelho e cressem. Ora, Deus, que conhece os corações, lhes deu testemunho, concedendo o Espírito Santo a eles, como também a nós nos concedera. E não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles, purificando-lhes pela fé o coração. Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós? Mas cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também aqueles o foram.
E toda a multidão silenciou, passando a ouvir a Barnabé e a Paulo, que contavam quantos sinais e prodígios Deus fizera por meio deles entre os gentios.
Depois que eles terminaram, falou Tiago, dizendo: Irmãos, atentai nas minhas palavras: expôs Simão como Deus, primeiramente, visitou os gentios, a fim de constituir dentre eles um povo para o seu nome. Conferem com isto as palavras dos profetas, como está escrito:
Cumpridas estas coisas, voltarei e reedificarei o tabernáculo caído de Davi; e, levantando-o de suas ruínas, restaurá-lo-ei. Para que os demais homens busquem o Senhor, e também todos os gentios sobre os quais tem sido invocado o meu nome, diz o Senhor, que faz estas coisas conhecidas desde séculos.
Pelo que, julgo eu, não devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue. Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados.
Então, pareceu bem aos apóstolos e aos presbíteros, com toda a igreja, tendo elegido homens dentre eles, enviá-los, juntamente com Paulo e Barnabé, a Antioquia: foram Judas, chamado Barsabás, e Silas, homens notáveis entre os irmãos, escrevendo, por mão deles:
Os irmãos, tanto os apóstolos como os presbíteros, aos irmãos de entre os gentios em Antioquia, {Antioquia: capital da Síria} Síria e Cilícia, saudações.
Visto sabermos que alguns que saíram de entre nós, sem nenhuma autorização, vos têm perturbado com palavras, transtornando a vossa alma, pareceu-nos bem, chegados a pleno acordo, eleger alguns homens e enviá-los a vós outros com os nossos amados Barnabé e Paulo, homens que têm exposto a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Enviamos, portanto, Judas e Silas, os quais pessoalmente vos dirão também estas coisas.
Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além destas coisas essenciais: que vos abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem se vos guardardes. Saúde. (Atos 15:4-29)
A questão não era apenas a de decidir se a obediência à Lei de Moisés é ou não necessária para a salvação dos gentios, mas também de determinar o que os gentios deveriam obedecer da Lei em sua vida cristã. E aí, percebe-se que ficaram apenas quatro exigências:
- abster-se das coisas sacrificadas a ídolos (lei moral, porque toca no aspecto da idolatria e do ferir a consciência de outros cristãos);
- abster-se de comer sangue (lei moral para uns ou cerimonial para outros);
- abster-se da carne de animais sufocados (porque o sangue fica entranhado na carne);
- abster-se das relações sexuais ilícitas (lei moral).
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Fariseus se opuseram a Jesus, aos apóstolos e aos cristãos do século XXI |
Repare: nenhuma das exigências diz respeito à lei civil. Embora as imoralidades sexuais sejam condenadas como pecados, não há qualquer referência a uma espécie de penalidade estatal.
Em nenhuma parte do Novo Testamento, a igreja exige que o Império Romano aplique as penas da Lei de Moisés ou cria tribunais próprios para aplicar essas leis. O que existe é a disciplina eclesiástica, com penas aplicadas
somente aos membros das igrejas, e não a pessoas de fora.
Mesmo assim, a questão da comida sacrificada aos ídolos é permitida em certas condições (por exemplo em 1 Coríntios 10) e há quem não veja problemas na questão de comer sangue porque Jesus considerou todos os alimentos puros (Marcos 7:19). O único aspecto realmente intocado da Lei de Moisés é o aspecto moral.
Claro que o resto da lei moral não é jogado fora...eles são repetidos em outros lugares do Novo Testamento e referendados de modo especial por Jesus Cristo no Sermão do Monte (Mateus 5 a 7). Porém, o objeto deste post é a lei civil, e não a moral.
O papel do Estado
E nessa perspectiva, o silêncio de Jesus e dos apóstolos em relação a um Estado que aplicasse as penas da Lei de Moisés é revelador. A ênfase da pregação apostólica é na obediência voluntária às leis de Deus. A coerção não é mais um caminho e o papel do Estado é reduzido a promover o bem dos que fazem o bem e punir com a espada os malfeitores:
Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. (Romanos 13:3-4)
Talvez os aliancistas extremos interpretem o "fazer o mal" como sendo uma licença divina para que o Estado se coloque no lugar de Juiz e acabe punindo todo tipo de pecado, criando uma teocracia cristã. Mas uma teocracia cristã não é o plano divino para este momento da História, como escrevi em outro
post.
O Estado deve regular as relações entre os seres humanos. Com certeza deve punir os que matam e roubam, os que enganam o próximo, dentro dos princípios colocados pela face civil da Lei. Mas não deve se intrometer nos aspectos mais privados e individuais dessas relações.
Por que coloco esse limite? Porque todas as exortações apostólicas relativas à sexualidade são feitas com base na pregação, na busca do convencimento intelectual e emocional dos cristãos. Não há apelos para que os cristãos se mobilizem para terem ao seu lado um Estado coercitivo, que lance mão da espada ou de outros instrumentos para forçar a sociedade a seguir determinado padrão sexual. O ensino de Romanos 13 encaixa-se mais no contexto de "manutenção da ordem" e deve ser entendido mais como uma legitimação das Forças Armadas e das polícias no seu trabalho de garantir a segurança interna e externa.
Quando o aliancista extremado quer criminalizar o adultério e o homossexualismo (por que não fazer o mesmo com a idolatria, a fornicação, a desobediência aos pais e outros, condenados pela Lei civil?), ele erra por querer que o Estado se intrometa em questões que o Novo Testamento trata na esfera da pregação da Igreja e da liberdade individual de escolha. No fundo, o aliancismo extremado quer produzir um Estado totalitário, que usa a espada (simbolizando todos os mecanismos coercitivos estatais) para forçar os seres humanos a guardarem a Lei.
Atrevo-me a dizer mais. Quando se caminha nessa direção, cai-se no mesmo erro dos fariseus de Atos 15, só que com um agravante. Lá o que se buscava era que os cristãos guardassem a Lei de Moisés (um peso que eles mesmos não puderam suportar, como lembra Pedro), mas agora o que se busca é forçar e constranger quem não é cristão a seguir a Lei!
O que os cristãos buscam não é a obediência a certas normas de conduta. Quem está atrás deste alvo está tropeçando em uma armadilha, como alerta Isaías:
A quem, pois, se ensinaria o conhecimento? E a quem se daria a entender o que se ouviu? Acaso, aos desmamados e aos que foram afastados dos seios maternos? Porque é preceito sobre preceito, preceito e mais preceito; regra sobre regra, regra e mais regra; um pouco aqui, um pouco ali. Pelo que por lábios gaguejantes e por língua estranha falará o SENHOR a este povo, ao qual ele disse: Este é o descanso, dai descanso ao cansado; e este é o refrigério; mas não quiseram ouvir. Assim, pois, a palavra do SENHOR lhes será preceito sobre preceito, preceito e mais preceito; regra sobre regra, regra e mais regra; um pouco aqui, um pouco ali; para que vão, e caiam para trás, e se quebrantem, se enlacem, e sejam presos. (Isaías 28:9-13)
Não hesito em dizer: quem está preocupado demais com a observância de regras e preceitos, a ponto de interpretarem a Palavra do Senhor (Bíblia) como um livro de regras e quererem forçar os não-cristãos a segui-la usando o Estado...quem vai por este caminho está perto de cair e ser quebrantado, enlaçado e preso! Não estão buscando a justiça (uma sociedade justa) por meio de Cristo e da pregação da fé, e sim por meio das obras, logo, tropeçam:
Que diremos, pois? Que os gentios, que não buscavam a justificação, vieram a alcançá-la, todavia, a que decorre da fé; e Israel, que buscava a lei de justiça, não chegou a atingir essa lei. Por quê? Porque não decorreu da fé, e sim como que das obras. Tropeçaram na pedra de tropeço,como está escrito: Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, e aquele que nela crê não será confundido. (Romanos 9:30-33)
Exagero meu? De modo algum! Eu é que pergunto a você: quando cristãos querem que o Estado legisle com base na Lei de Moisés, criminalizando os pecados apontados pela face civil da Torá...quando se acha que este é o caminho para uma sociedade melhor...quando se busca uma teocracia "cristã"...a esperança está sendo posta em quem: Moisés ou Jesus?
Qual a solução?
Então os cristãos devem se calar diante de pecados, como o adultério ou a prática do homossexualismo? Claro que não! Devemos nos calar diante de projetos como o
PL 122? Óbvio que não! O que temos que fazer é
protestar e pregar a Palavra! Agora, em momento algum, devemos enxergar no Estado (ou em uma teocracia) um caminho para salvação da sociedade ou da família.
Isso não é trair o espírito dos puritanos? Não. O que muitos "reformados" não enxergam é que o puritanismo deu certo por causa da pregação da Palavra e não devido à ação do Estado. A Genebra de Calvino só foi uma experiência governamental bem-sucedida na medida em que os cidadãos ginebrinos foram convencidos pela pregação da Palavra a acreditarem no Evangelho e obedecerem a Jesus. O bom uso do Estado foi uma consequência de corações transformados, e não a causa dessa transformação.
Por isso eu quero destacar um parágrafo magistral da equipe do
iPródigo sobre o assunto.
Nosso consolo é saber que jamais ganharemos mais quando vencermos na esfera política. Muitas vezes, na história do Cristianismo, Deus usou a perseguição para que a Palavra fosse semeada com profundidade e amor verdadeiros. Por isso, nós do iPródigo convocamos todos a unirem sua vozes simbolicamente e declarar que Deus é santo, sua Palavra é inerrante e que não concordamos com nada que é contra esta Palavra e o caráter deste Deus. E isso inclui a falta de liberdade – mesmo que ela venha do governo. (iPródigo)
Se ganharmos ou se perdermos a batalha em torno do PL 122, isso não é o que importa. Criminalizar o homossexualismo, o divórcio, o adultério, a fornicação ou a desobediência aos pais não nos fará ganhar coisa alguma. O que realmente conta é a igreja erguer a sua voz para pregar a santidade de Deus e o Evangelho de Jesus. A guerra é vencida, não quando o Estado aprova leis de acordo com a Bíblia, mas sim quando pessoas tocadas pelo Espírito Santo decidem, voluntariamente, deixar uma vida de pecados para viverem em obediência ao Deus vivo e verdadeiro, crendo em Jesus como Senhor e Salvador. E aí eu não resisto em dizer:
SOLI DEO GLORIA! (Só a Deus, e não ao Estado, e não à teocracia ou a qualquer outra criatura ou coisa que possamos fazer ou imaginar).
Graça e paz do Senhor,
Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro
P.S: Este post também se aplica a outros blogs favoráveis à criminalização da homossexualidade como o
Ministério Cristão Apologético.