31 de dezembro de 2009

Em 2010, quero entrar “de sola”!

“Entrar solando” (ou, “de sola”) é uma expressão muito comum no mundo do futebol. Ela é usada toda vez que, numa disputa de bola, o jogador entra com as travas (a sola, nesse caso) da sua chuteira por cima da bola, fazendo com que o adversário se intimide na disputa. Se o oponente não se intimidar e resolver fazer o mesmo, aí a coisa pode ficar realmente feia. Um dos dois, ou até mesmo ambos, poderão se machucar seriamente. Jogadas desse tipo são consideradas desleais e até mesmo antidesportivas, e os infratores, além de serem punidos com cartão amarelo ou vermelho no momento da partida, podem até mesmo pegar um “gancho” do Supremo Tibunal de Justiça Desportiva (STJD).

Mas não é dessa forma futebolística que eu pretendo “entrar solando” nesse ano que ora se inicia. Apesar de eu gostar muito de futebol, visualizo uma causa infinitamente mais nobre para desejar fazer isso. Em 2010, desejo ardentemente entrar solando com os famosos “Solas” da Reforma: Sola Scrpitura, Solus Christus, Sola Gratia, Sola Fide e Soli Deo Gloria. São essas as “solas” que eu pretendo calçar.

Quero entrar de “Sola Scriptura” em toda e qualquer doutrina ou prática que relegue a Bíblia a um plano inferior e secundário, e não a coloque no seu devido lugar de única regra de fé e prática do povo de Deus. Entrar de “Sola Scriptura” se faz necessário porque muitas pessoas e igrejas ditas evangélicas nos dias de hoje tem dado mais crédito às supostas “novas revelações” do que à verdadeira Revelação canônica de Deus – as Sagradas Escrituras. Do mesmo modo como a igreja medieval se afastou das Escrituras, introduzindo elementos estranhos (“preceitos de homens” – Mc 7.7) ao culto e à teologia, a igreja contemporânea tem incorrido no mesmo erro. E a sola (ou, o Sola) vale também para todos aqueles que questionam e atacam a infalibilidade, inerrância e inspiração da Escrituras, como os liberais, neo-ortodoxos e Cia. Isso só aumenta ainda mais a nossa urgência em reafirmar o brado dos reformadores de “Sola Scriptura”(Somente as Escrituras).

Quero entrar de “Solus Christus” em todo e qualquer ensino que descentralize ou destrone a Cristo do seu devido lugar de honra e glória. Entrar de “Solus Christus” se faz necessário porque Jesus não tem sido mais o centro da pregação em muitos púlpitos. Os “testemunhos” tomaram o lugar da pregação da cruz; os “zaqueus” e os “lázaros” também. Além disso, o espírito ecumênico de nossa época está fazendo com que Cristo não seja mais exclusividade para muitos pessoas. Daí o porquê de muitos televangelistas chamarem a budistas, espíritas, mulçumanos e etc. de “irmãos”. Abandonaram a verdade de que existe apenas um mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2.5). A igreja romana fez e continua fazendo o mesmo, ao colocar Maria como adjuntora na salvação. Os reformadores não se conformaram com essas coisas, motivo pelo qual o brado de “Solus Christus” (Somente Cristo) foi vigorosamente entoado.

Quero entrar de “Sola Gratia” no esforço humano (sinergismo) para a sua salvação, tanto quanto nas doutrinas e teologias que o instigam a pensar assim. Entrar de “Sola Gratia” se faz necessário porque muitas pessoas pregam por aí que “Deus já fez a parte dele, basta que façamos a nossa”. Motivados por isso, os pecadores vão a Cristo pensando que estão fazendo um grande favor para Deus ao “cooperar” com ele na salvação. Quanta mentira e ilusão! A Bíblia é suficientemente clara ao afirmar que “não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia” (Rm 9.16). PONTO. Numa cultura onde o semi-pelagianismo e o arminianismo quase que imperam, verdades como as Antigas Doutrinas da Graça não tem encontrado o mesmo espaço que outrora encontrou. Cabe a nós, então, reafirmá-las como o bom o velho “Sola Gratia” (Somente a Graça).

Quero entrar de “Sola Fide” em toda e qualquer teologia, pregação ou ensino que pregue outro meio para a justificação do homem além da fé que o próprio Deus o concede. Pedro se refere aos crentes como aqueles que “obtiveram fé igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 1.1). Ora, o que é a fé salvífica, senão a capacidade que o próprio Deus concede a nós, os eleitos (cf. Tt 1.1), para que creiamos na perfeita justiça do Seu Filho, em prejuízo da nossa própria? Esta foi uma verdade que a igreja romana rejeitou. Quer dizer, ela cria, sim, que somos justificados pela fé, mas não pela fé somente, e isso faz toda a diferença. Foi por isso que Lutero disse que a justificação pela fé é “o artigo de fé mediante o qual a igreja permanece de pé ou cai”. À maneira da igreja romana, muitas igrejas ditas protestantes tem se afastado dessa verdade, pregando que a fé carece de “algo mais”. É por essas e outras que entrar de “Sola Fide” (Somente a Fé) se faz necessário.

Finalmente, desejo entrar de “Soli Deo Gloria” em 2010, e penso que este seja o “Sola” mais caro de todos (inclusive para mim), pois ele derruba toda e qualquer pretensão e arrogância humanas. Depois de discorrer largamente sobre a doutrina da salvação, Paulo conclui a seção doutrinária da sua carta aos Romanos com uma das mais belas doxologias encontradas nas Escrituras:

Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria quanto do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Rm 11.33-36).

Agora dá pra saber de onde os reformadores tiraram todo o seu teocentrismo ao bradarem o “Soli Deo Gloria”. Michael Horton acertadamente escreveu que “pregar a Escritura é pregar a Cristo; pregar é Cristo é pregar a cruz; pregar a cruz é pregar a graça; pregar a graça é pregar a justificação; pregar a justificação é atribuir o todo da salvação à glória de Deus e responder a essa Boa Nova em grata obediência por meio de nossa vocação no mundo”[1]. Sinceramente, qualquer sistema teológico de doutrina que procure de alguma forma limitar Deus em seus atributos (arminianos e afins) não pode bradar o “Soli Deo Gloria” sem nenhum senão. Mas não é somente por conta de questões soteriológicas e doutrinárias que se faz necessário reafirmarmos que somente a Deus seja dada a glória. Entrar de “Soli Deo Gloria” se faz necessário porque muitos cristãos (pastores, ovelhas, “apóstolos”, blogueiros, “profetas”, curandeiros, cantores-astros, etc.) tem tentado usurpar o louvor, a honra e a glória que somente a Deus pertencem, chamando a atenção para si mesmos (é a “Síndrome do Zaqueu” – não o da Bíblia, mas o da música). Mas não se iludam os tais, pois o próprio Deus mesmo diz que não dará a sua glória a outrem (Is 42.8). Isso quer dizer que não apenas os construtores da autojustificação, mas também os construtores da auto-imagem são incapazes de dizer que “Somente a Deus a Glória”.

Oro a Deus para que Ele me dê forças para cumprir esse propósito de “entrar solando” nesse ano de 2010. Que eu jamais me esquive de entrar “de Sola” quando a Verdade estiver em jogo. Que eu jamais use de deslealdade quando estiver numa disputa, mas que eu me valha apenas da Sagrada Escritura. E que jamais eu alivie as canelas ou os tornozelos dos erros teológicos que tentam ofuscar os “Solas” que os reformadores nos legaram. Que sejam essas, de fato, as Solas que calcem os meus pés.

Sola Scriptura, Solus Chistus, Sola Gratia, Sola Fide, Soli Deo Gloria!!!

Allen, desculpe por me “intrometer” no seu dia de postar, mas é que eu quis aproveitar o ensejo da ocasião, e também pelo fato de eu não ter postado na terça. Prometo que isso não se repetirá mais (rsrsrs!).


[1] Reforma Hoje. Editora Cultura Cristã, 1999, pag. 124

O desejo de um calvinista


Fiquei com o último post do ano. [Dizem que quem ri por último, ri melhor. Será que algo parecido com quem escreve por último?]

Vocês já têm lido as mensagens de fim de ano do Roberto e do Clóvis. Eu pretendo seguir uma linha semelhante.

No pouco tempo de existência, este blog teve um retorno satisfatório, com comentários de apoio, indicações em outros blogs, seguidores, e muitas visitas. A proposta de conversar sobre o calvinismo, contribuindo para os reformados que desejam compreender melhor o seu sistema, e para os não-calvinistas que desejam perceber como os pensamentos se desenvolvem nesta linha, demonstrou-se adequada.

Desejamos, então, continuar o bate-papo. Não apenas para postar contraposições entre arminianismo e calvinismo, mas para mostrar como os reformados pensam o mundo. Cada aspecto da realidade pode (e deve) ser pensado a partir de uma cosmovisão consistente, e entendemos que a perspectiva reformada é fiel à Escritura e bem articulada para tanto.

Por isso, o nosso desejo para 2010 é que vocês continuem o diálogo conosco. Somos gratos por sua participação em 2009, e esperamos um 2010 cheio de novas contribuições dos 5 calvinistas, e dos 5000 visitantes (número fictício).

Além do blog, desejamos um 2010 pleno do reconhecimento da supremacia de Deus sobre todos os aspectos da vida. Um ano novo marcante, pelo fato de o Deus soberano Se revelar a nós em Sua Palavra de maneira mais intensa. Um período de crescimento em sabedoria, maturidade, e conhecimento do Senhor. Um novo tempo, de pensamentos mais profundos, uma sede quase insaciável da justiça de Deus.

Esperamos um 2010 no qual vocês sejam "reformados" continuamente pela Bíblia.

Um tempo no qual somente a Escritura falará mais alto, somente a graça será percebida em sua salvação, somente a fé revelará a sua justiça, somente Jesus será reconhecido como o Justificador, e somente para a glória de Deus será a nossa existência.

Um grande abraço.
Soli Deo Gloria.

28 de dezembro de 2009

Em 2010 também

“E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto” Rm 8:28

O ano 2009 chega ao seu final e 2010 se apresenta diante de nós. É momento de agradecer pelas bênçãos recebidas. E de pedir que no próximo ano vivamos dias ainda mais abençoados, segundo a vontade de Deus.

Nesta última postagem chamo sua atenção para a passagem em apreço. Peço que considere a doutrina nela firmemente estabelecida (e corroborada pelo ensino geral das Escrituras) e que extraia dela a confiança necessária para mais um ano de vida, sob a graça do Senhor.

As palavras do apóstolo apontam para o domínio do Senhor sobre tudo. É por um decreto que Deus nos chama para ama-lo. E um decreto de Deus é eterno, soberano, imutável e infalível, portanto não cabe revogação, emendas ou modificações. Não existe força ou poder no universo capaz de alterar um só detalhe no decreto divino.

Este decreto não diz respeito apenas a pessoas, mas a todas as coisas, inclusive todos os eventos, estão sob seu domínio. Deus governa de forma soberana todos os acontecimentos, todas as circunstâncias e todas as pessoas. Nada ocorre à margem de Sua vontade. Se houvesse uma coisinha só fora do controle divino, esta poderia não contribuir para o bem do povo de Deus. E sabemos que por uma ferradura se perde um reino. Todas as coisas somente poderão contribuir para o bem dos escolhidos do Senhor se todas elas estiverem sob seu controle.

Que conforto há nessa doutrina! Todas as coisas contribuem para nosso bem. Um crente no Senhor e na Bíblia não duvida disso. Por maiores que sejam as evidências contrárias a este fato, o fato permanece, visto que é Deus quem fala. O apóstolo diz que sabemos que todas as coisas concorrem para o bem. É um fato reconhecido por quem conhece ao Senhor, cujas dons e vocações sãos em arrependimento. Se sabemos, não duvidaremos quando acontecimentos que não consideramos bons ocorrerem. Pois mesmo sem compreender como, sabemos que servem ao propósito maior de Deus de fazer-nos o bem.

Que neste final de 2009 demos graças a Deus, inclusive pelas coisas ruins que aconteceram, pois serviram ao propósito divino de nos fazer “segundo a imagem de Seu Filho”. Que em 2010 confiemos em Deus mesmo nos momentos mais difíceis, pois através delas Deus estará nos fazendo o bem.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

24 de dezembro de 2009

A encarnação

Dificuldades com o blogger impediram a publicação deste texto antes. Dito isto, vamos ao post:


"Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz" Filipenses 2.5-8

"Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e verdade". João 1.14

No momento cultural que vivemos, nada mais contextualizado do que pensarmos o nascimento e a vida de Jesus.
A doutrina da encarnação, em linhas gerais, é o ensino de que o Deus Filho encarnou e se tornou homem para cumprir o plano de Salvação estabelecido pela Trindade.
Desde o Antigo Testamento o Messias foi prometido. Ainda em Gênesis (3.15) o evangelho foi proclamado, e com ele, a promessa do Descendente da mulher, que feriria a serpente-satanás.
Em Isaías a coisa fica ainda mais explícita, e Jesus é anunciado como o menino que nasceria, o Deus forte (Is.9.6).
O nascimento do Messias é anunciado pelo anjo a José em Mateus (1.21), com a explícita declaração de que Ele seria O Salvador.
A isto unimos os ensinamentos de João e Paulo em Filipenses (transcritos acima), bem como a declaração do autor de Hebreus (1.3,4):

O Filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do Seu Ser, sustentando todas as coisas por Sua palavra poderosa. Depois de ter realizado a purificação dos pecados, Ele se assentou à direita da Majestade nas alturas, tornando-se tão superior aos anjos quanto o nome que herdou é superior ao deles.

Os textos indicam a divindade de Jesus, bem como a sua humanidade. Indicam a realidade do Deus vivo se entregando por amor a pecadores, para garantir a salvação deles.
A encarnação é expressão clara e irrefutável do caráter justo e amoroso do Pai. Justo porque ela possibilitou a salvação do homem mediante a vida perfeita do homem Jesus. Amoroso porque exibiu publicamente a entrega voluntária de Jesus, e a doação do Pai em favor de pecadores ingratos.


Por que Deus se fez homem? Qual a necessidade da encarnação?

Mencionamos o cumprimento da justiça de Deus no ponto anterior, e esta é uma boa explicação para a primeira vinda de Jesus. O pecado do homem o tornou culpado diante de Deus desde o seu nascimento. As criancinhas que pensamos serem inocentes, biblicamente são seres rebeldes contra Deus, e filhos da ira por definição (Gn.8.21; Sl.51.5;Ef.2.3). O pecado gerou a maior ruptura da história da humanidade - a quebra do relacionamento com o Pai, e a culpabilidade do homem.
A punição justa de Deus para o pecado é a morte (Gn.2.17; Rm.6.23). Não apenas a morte física, mas a morte eterna (Ap.21.8). O homem se tornou escravo do pecado, então não poderia simplesmente se libertar de tal escravidão, pagar os seus pecados, e passar a viver uma vida perfeita, agora de maneira inocente diante de Deus. Isto é impossível e absurdo. Era necessário que alguém fosse capaz de receber toda a ira de Deus (e nenhum homem é capaz disso); morresse como pagamento pelos pecados e vivesse uma vida perfeita (novamente, ninguém é capaz de fazer isso).
Assim chegamos a Jesus. Ele é Deus e homem, assim pode viver a vida perfeita, receber a ira de Deus, e legitimamente representar a humanidade. Jesus se tornou homem como parte do plano perfeito de Deus para a redenção do Seu povo.
Jesus viveu perfeitamente, morreu, e ressucitou para a salvação dos Seus (Jo.6.37,39,44). Jesus cumpriu a justiça de Deus, recebeu a culpa de pecadores e deu a eles a Sua justiça.


A encarnação ensina sobre humildade e amor, sobre paciência e abnegação. Ensina sobre a natureza real do evangelho, que são as boas notícias de salvação em Jesus. Ensina sobre a impossibilidade de méritos humanos, e a necessidade de fé no Messias. Ensina o que devemos crer, e como devemos viver.

23 de dezembro de 2009

Bíblia e Predestinação [6] - O Natal e a expiação limitada

Leia o post anterior da série clicando aqui.

Quando os evangélicos falam sobre salvação, dois desejos, aparentemente contraditórios, perturbam os corações e as mentes. Um é o desejo de que todos os seres humanos sejam salvos e rumem para o céu. O outro é o desejo de mostrar que Deus é justo por não fazer isso, afinal, o inferno e a condenação dos ímpios são dados como certos na Bíblia.

Os arminianos buscam conciliar esses desejos com o ensino do livre-arbítrio, ou seja, os homens têm o poder de, voluntariamente, sem nenhuma ação divina direta sobre sua vontade, escolher a Deus. Em nome da liberdade, pessoas são condenadas. Os calvinistas, por outro lado, dizem que Deus salva ou não a quem Ele quer, e que isso é feito por causa de Sua glória, por ser o único caminho pelo qual tanto o amor como a ira de Deus pudessem ser plenamente manifestos. Em nome da glória de Deus, pessoas são condenadas.

Tudo isso, no entanto, provoca um dilema quando se pensa no sacrifício expiatório de Jesus. Expiação é uma pena, um trabalho ou sacrifício usado para purificar alguém de seus pecados ou culpas. O ensino bíblico é o de que a salvação acontece porque Jesus Cristo sofre, no nosso lugar, a culpa que nós deveríamos sofrer:
Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito... (1 Pedro 3:18)

Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. (Isaías 53:5)
O dilema começa quando se vai definir esse "nós". Os arminianos e não calvinistas dizem que Jesus morreu no lugar de todo ser humano que vive, viveu ou viverá sobre a face da terra, incluindo aqueles que serão condenados ao inferno. Os calvinistas ou reformados afirmam o contrário, que Jesus Cristo morreu apenas pelos seres humanos que foram escolhidos para a salvação. É o que ficou conhecido como o terceiro ponto do calvinismo, a expiação limitada.

Diante desse ensino, os não calvinistas acusam os reformados de fazerem de Deus um injusto e de limitarem o sacrifício remidor de Cristo Jesus. Como pode Cristo não ter se sacrificado em favor de todos os homens?

Sei que este ponto é o mais controverso de todos e o que causa o maior número de reações emocionais. Mas gostaria de pedir que a questão seja analisada do ponto de vista da Bíblia, e não da moral ou lógica humana. Não é nosso papel questionar se a Bíblia está ou não certa, se ela está sendo justa ou injusta, porque esse simples questionamento seria dirigido a Deus, que foi o Autor, e não ao livro sagrado. O que cabe a investigação humana é analisar o que a Bíblia diz sobre o assunto.

Magnificat
O pensamento cristão tradicional coloca o nascimento de Jesus como uma bênção para toda a humanidade. O Natal simbolizaria a esperança de salvação para todas as pessoas.

Contudo, quando Jesus nasce, os Evangelhos ensinam algo diferente. Jesus é bênção sim, para uns...mas, para outros, a vinda dele é um sinal do Juízo de Deus. Quando Maria visita a Isabel e entoa o Magnificat, ela estabelece um contraste entre aqueles que serão alvo da misericórdia de Deus e aqueles que seão castigados pelo Senhor:
A sua misericórdia vai de geração em geração sobre os que o temem.
Agiu com o seu braço valorosamente;
dispersou os que, no coração,
alimentavam pensamentos soberbos.
Derrubou do seu trono os poderosos
e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos
e despediu vazios os ricos
Amparou a Israel, seu servo,
a fim de lembrar-se da sua misericórdia
a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre,
como prometera aos nossos pais. (Lucas 1:50-55)
A misericórdia é para os que temem ao Senhor e para a descendência de Abraão. Segundo o apóstolo Paulo, os verdadeiros filhos de Abraão e herdeiros da salvação são os que creem:
E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência. Isto é, estes filhos de Deus não são propriamente os da carne, mas devem ser considerados como descendência os filhos da promessa. (Romanos 9:6-8)

Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão. (Gálatas 3:7)
Por outro lado, Maria diz que os soberbos serão dispersos, os poderosos humilhados e os ricos, deixados vazios. Os humildes e famintos, enfim, os verdadeiros descendentes de Abraão, os que temem a Deus, estes é que são alvo da misericórdia de Deus.

Benedictus
O sacerdote Zacarias, pai de João Batista, também entoa um cãntico de louvor, com referências ao ministério de Jesus. No Benedictus, ele também faz um contraste entre aqueles que receberão a misericórdia de Deus e aqueles que sofrerão oposição de Jesus:
...para nos libertar dos nossos inimigos
e das mãos de todos os que nos odeiam;
para usar de misericórdia com nossos pais
e lembrar-se da sua santa aliança
e do juramento que fez a Abraão, o nosso pai,
de conceder-nos que, livres das mãos de inimigos,
o adorássemos sem temor... (Lucas 1:71-74)
Para os descendentes de Abraão, a vinda de Jesus é a misericórdia de Deus, o cumprimento da aliança. Mas, para os inimigos dessa descendência, Jesus é aquele que vai se opor a eles para libertar o Seu povo. Interessante notar que, ainda no Benedictus, Zacarias destaca que João Batista deve dar ao povo de Deus o conhecimento da salvação. Os inimigos de Israel não são, em momento algum, alvo da misericórdia divina nesse cântico:
Tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor, preparando-lhe os caminhos, para dar ao seu povo conhecimento da salvação, no redimi-lo dos seus pecados... (Lucas 1:76-77)
Os mais puristas talvez desdenhem da explicação dizendo que Zacarias refere-se a João Batista, e que este ministério era mesmo junto aos judeus. Mas, ao falar com José, o anjo Gabriel se refere especificamente ao ministério de Jesus e faz a mesma particularização:
Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele savará o seu povo dos pecados deles. (Lucas 1:31)
Se Jesus tivesse vindo salvar a toda a humanidade, não faria sentido o anjo dizer que Cristo veio salvar um povo. A humanidade não é um único povo, mas sim uma multidão deles. Mas, faz todo o sentido pensar neste povo que é salvo como sendo a igreja, os eleitos, porque Deus sempre fala dos salvos como sendo um povo à parte dos demais:
Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que antes, não éreis povo, mas agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia (1 Pedro 2:9-10)
E aqui temos uma prova irrefutável de que Jesus não veio morrer em favor de todos os homens. Vejam, tanto Maria como Zacarias deixam claro que a misericórdia alcança os descendentes de Abraão, que, segundo Paulo, são os salvos apenas. O anjo Gabriel diz que Jesus vem salvar o seu povo. Pedro reconhece que há um povo de Deus e que há pessoas que não são povo, e que os salvos são uma raça eleita, uma nação santa, um povo de propriedade exclusiva de Deus e que, por essa razão, alcança a misericórdia de Deus. Olhando o contexto do capítulo, especialmente os versículos 7 e 8, fica claro que Pedro excluí os descrentes. Portanto, Jesus veio salvar apenas os eleitos, aqueles que crerão em Seu nome.

A bem-aventurança dos anjos
A expiação limitada também pode ser observada na visão dos pastores sobre o nascimento de Jesus. Os anjos anunciam que a vinda de Jesus será uma boa-nova de grande alegria para todo o povo (Lucas 9:10), mas quando louvam a Deus, fazem uma restrição:
Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem. (Lucas 2:14)
O nascimento de Jesus pode sim ser visto como um evento que trará paz aos homens. Mas não a todos, e sim àqueles a quem o Senhor quer bem.

Para aqueles apologistas que acham que a palavra "todo" e variantes, sempre significa "todas as pessoas", como é o caso do Pr. Ciro Zibordi, vale lembrar que nem todas as pessoas da Judéia encararam o nascimento de Jesus como uma boa-nova. Herodes alarmou-se quando os magos vieram adorar o novo Rei dos judeus (Mateus 2:3) e, de fato, um anjo precisou avisar a José para que ele fugisse:
Tendo eles partido, eis que apareceu um anjo do Senhor a José, em sonho, e disse: Dispõe-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e permanece lá até que eu te avise; porque Herodes há de procurar o menino para o matar. (Mateus 2:13)
E parece que Herodes não era o único:
Dispõe-te, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel; porque já morreram os que atentavam contra a vida do menino. (Mateus 2:20)
Quando a Bíblia fala em "todos", "todo" e similares, é preciso ver, pelo contexto, se a referência é, de fato, a todas as pessoas, sem exceção, ou se é dita de modo vago, como quando dizemos que todo mundo já tomou Coca-Cola (o que, sabemos, não é verdade para todas as pessoas da face da terra).

A profecia de Simeão
Que o nascimento de Jesus significa redenção para uns e juízo para outros é indicado de modo mais claro na profecia de Simeão. Ao ver o menino Jesus, ele profetiza palavras perturbadoras a Maria:
Simeão os abençoou e disse a Maria, mãe do menino: Eis que este menino está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de contradição (também uma espada traspassará a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações. (Lucas 2:34-35)
Jesus não vem salvar a todos, ele vem levantar a muitos...e arruinar a muitos também.

E aqui podemos fazer uma reflexão bíblica sobre o verdadeiro sentido do Natal. Jesus veio, e sua presença não pode ser ignorada indefinidamente pelas pessoas. Para os que depositarem sua fé em Deus, para os que se arrependem de seus pecados e decidem temer ao Senhor, o Natal é o símbolo da libertação da opressão, da misericórdia de Deus, da paz que enche o coração, do levantamento com o qual tanto sonhamos!

Mas, para os que desdenham da Palavra do Senhor, para os que são inimigos do povo de Deus, para os que oprimem ao próximo, o Natal é o lembrete de que Herodes morreu, mas Cristo vive. É o sinal de que, se persistirem em suas maldades, estarão provando para si mesmos que não foram eleitos por Deus, e se encontrarão com o Juiz Jesus Cristo, que os humilhará no último dia.

Mas, se houver arrependimento, então eles mostrarão que Cristo os escolheu, e experimentarão com os salvos as glórias do Deus vivo!

Semana que vem eu não postarei no 5 Calvinistas porque estarei descansando um imerecido recesso (obrigado, Senhor, por mais essa dádiva que não mereço!), mas volto em 2010 com outros versículos sobre a expiação limitada.

Feliz Natal a todos e, que em 2010, todos nós possamos dizer e viver, de fato o último Sola da Reforma:

SOLI DEO GLORIA!!!

Leia o próximo post da série clicando aqui.

Helder Nozima é pastor presbiteriano, blogueiro do Reforma e Carisma e escreve às quartas-feiras no  5 Calvinistas.

22 de dezembro de 2009

Ateísmo "paratodos" - a democratização da descrença numa sociedade secularizada

Ainda gozando férias (merecidas!) em Recife, mas já de malas prontas para Santarém-PA, onde ficarei nos próximos dois anos, continuo sem tempo para escrever. E, para não deixar o 5 Calvinistas vazio nesta terça-feira, mais uma vez republico uma postagem antiga, do Optica Reformata. Em breve, voltarei à ativa!
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De uns tempos pra cá o ateísmo tem recebido uma atenção especial por parte da mídia, endossada pelas declarações de algumas celebridades que se autodenominam “ateias” ou “agnósticas” e, mais ainda, reforçada com as campanhas de cientistas e filósofos engajados numa verdadeira guerra contra o teísmo religioso. Munidos com uma argumentação eloquente, os propagadores dessa perspectiva tem feito a cabeça de muitas pessoas, fazendo com que o ateísmo se torne numa alternativa quase que religiosa (por mais irônico e paradoxal que isso possa soar) para o cidadão pós-moderno tão carente de referenciais.

Obviamente, o assunto é vasto, podendo variar desde o manifesto em prol da proibição das manifestações religiosas nos esportes (pois é, Kaká... sua batata está assando!) até às campanhas pró-ateístas mediadas por alguns dos profetas do ateísmo pós-moderno. No início desse ano a British Humanist Association (Associação Humanista Britânica) empreendeu uma campanha de 195 mil dólares para colocar nos ônibus londrinos a seguinte frase: “There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life” (“Provavelmente, Deus não existe. Agora, pare de se preocupar e aproveite a vida”). Segundo os próprios membros da Associação, a campanha, apoiada por nomes de peso como o biólogo Richard Dawkins (autor de Deus, um delírio), tem por objetivo “promover o ateísmo na Grã-Bretanha, encorajar mais ateístas a assumirem publicamente a sua posição e elevar o moral das pessoas a caminho do trabalho”. Como se pode perceber, esse novo ateísmo (chamado por alguns de neo-ateísmo) não pretende enclausurar seus pressupostos nos livros e nos discursos catedráticos, mas difundir suas ideias num marketing frenético e dinâmico, aproximando-se cada vez mais da população (leitora ou não) e estimulando as pessoas a abandonarem suas crenças. “Tenho certeza que essa campanha será vista como um sopro de ar fresco”, afirmou Hanne Stinson, presidente da referida Associação[1]. Essa militância confere aos novos ateus um status privilegiado perante a sociedade pensante, e os transforma em verdadeiros “sumos sacerdotes” da causa agnóstica. Juntando o que há de melhor no ateísmo evidencial (que é aquele que nega a Deus por “falta de evidências”) e no ateísmo da suspeição (que é aquele que acusa a religião de “manipulação das massas”), o neo-ateísmo (acredito que o termo Neo-Iluminismo também seria bastante apropriado) apresenta essas duas correntes “em um só pacote preparado para a condição pós-moderna”[2].

Essa nova (?) filosofia tem angariado alguns adeptos do mundo das celebridades. Recentemente o ator Brad Pitt, em entrevista a uma importante revista alemã, a Bild, declarou que não acredita em Deus. “Sou provavelmente 20% ateu e 80% agnóstico. Não acho que alguém realmente saiba (se Deus existe). Você só vai descobrir, ou não, quando chegar lá. Até isso acontecer não existe porque ficar pensando no assunto”, disse ele (se Brad sustentar isso até a morte, tenho a leve impressão de que ele vai descobrir essa verdade tarde demais). A atriz Julianne Moore foi mais irônica. Em 2002, perguntada sobre o que diria a Deus se o visse, ela falou: “Uau, eu estava errada, você realmente existe” (mais irônico ainda é que essa mesma atriz estrelou o excelente filme Ensaio sobre a cegueira, no qual toda a população de uma cidade não identificada foi repentinamente atingida por uma epidemia de cegueira, e somente ela ficou imune). Um caso curioso (para não dizer engraçado) foi o do Dr. Dráuzio Varela. O médico disse que virou ateu quando mordeu a hóstia e viu que não saiu sangue dela[3] (quem mandou crer na mentira romana da transubstanciação?). É óbvio que a lista é bem mais exaustiva, mas fiquemos com apenas esses exemplos. Como é evidente nesses casos, os motivos para tanta desilusão variam de um racionalismo científico-filosófico (ateísmo evidencial), com variantes agnósticas, a experiências religiosas frustrantes (ateísmo da suspeição), com desdobramentos psicossociais.

Diante das poucas evidências acima expostas não seria nenhum exagero dizer que a marcha pela “democratização da descrença” anda em cadência acelerada numa sociedade cada vez mais pluralista, descrente, secularizada e, por conseguinte, doente. Para a opinião pública as opiniões das instituições religiosas pouco importam, pois elas são irrelevantes e inúteis. Deus não está incluso no projeto de vida do cidadão hodierno, e quando está, geralmente é na forma de uma divindade pocket, que caiba perfeitamente no bolso das pretensões humanas. Dentro desse contexto não me surpreende o fato de o Teísmo Bíblico ser o alvo número um dos ataques dessa milícia agnóstica. Se endossamos o Criacionismo como ciência, somos tachados de ignorantes; e se reivindicamos a exclusividade da revelação bíblica como a única Verdade, somos tachados de fundamentalistas intransigentes. Mas não é somente por isso que somos tão rechaçados. Para aumentar mais ainda a cratera, as igrejas fazem o favor de promover escândalos, confirmando suas reminiscências medievais (como as novas “indulgências” impostas pelos teólogos da prosperidade – preciso citar nomes?) e contribuindo mais ainda para que as suspeitas dos agnósticos e críticos de plantão se confirmem. Talvez tenha sido exatamente isso o que tenha motivado Cazuza a dizer que “o banheiro é a igreja de todos os bêbados”, na sua depressiva Down em mim. Se eu estiver equivocado em minhas assertivas, vou deixar para que Freud explique.

Há quem fique surpreendido com toda essa maré de descrença. Particularmente, nada disso me surpreende. Aliás, eu diria que o número de ateus é bem maior do que se imagina e do que as estatísticas apontam. Em minha opinião, ateu não é apenas aquele que declara sua descrença, mas também aquele que vive como se Deus não existisse, a seu bel-prazer. Na sua epístola aos Romanos o apóstolo Paulo fala tanto destes como daqueles (Rm 1.18-32). Tanto a descrença quanto a perversão deliberada são fruto do desprezo pelo conhecimento de Deus (cf. Rm 1.28-32). Paulo coloca os dois grupos num só pacote, e a sua sentença (ou vaticínio) contra eles é fatal: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18). Aos ateus está dado o aviso: CUIDADO!

Soli Deo Gloria!


Em tempo: O título desta postagem, Ateísmo "paratodos", é uma referência ao caso da campanha ateísta nos ônibus de Londres, já que a palavra ônibus (do latim omnibus) siginifica, literalmente, "paratodos" (para todos).
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[1]Em http://quiosque.aeiou.pt/gen.pl?p=print&op=view&fokey=ae.stories/12483&sid=ae.sections/3

[2]Veja o excelente prefácio do Rev. Dr. Davi Charles Gomes ao livro Ateísmo Remix, de Albert Mohler (Ed. Fiel, 2009, pág. 10).

[3] As referências a Brad Pitt, Julianne Moore e Dráuzio Varela estão em http//br.noticias.yahoo.com/s/20082009/48/entretenimento-famosos-nao-acreditam-deus.html.

21 de dezembro de 2009

Falta um Sola no arminianismo

Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Ef 2:8

Sei que os arminianos não fazem questão de serem chamados de reformados, aliás costumam identificar assim os calvinistas, que por sua vez esforçam-se para fazer jus ao epíteto. A bem da verdade, ser reformado vai bem além de subscrever alguma Confissão de Fé, defender o acróstico TULIP ou reunir-se numa igreja dita confessional. Mas para os fins deste artigo, chamarei de reformado todos aqueles que aceitam sem reservas os Solas da Reforma: Sola Scriptura, Sola Gratia, Sola Fide, Solus Christus e Soli Deo Gloria. E assim sendo, os arminianos não podem ser considerados reformados, pois embora aceitem o Sola Fide, negam o Sola Gratia.

Antevendo protestos, vou explicar porque entendo que os arminianos não professam o Sola Gratia. Vou recorrer à Declaração de Cambridge para esclarecer o que realmente significa Sola Gratia:

“A graça de Deus em Cristo não só é necessária como é a única causa eficaz da salvação. Confessamos que os seres humanos nascem espiritualmente mortos e nem mesmo são capazes de cooperar com a graça regeneradora”.

Os arminianos pregam a pleno pulmões que a graça é necessária à salvação. Porém não levam isso até às últimas consequências, por exemplo, de afirmar que a graça é a única causa da salvação, porque os homens estão mortos em pecado e são absolutamente incapazes que cooperar com a graça regeneradora. Aliás, explicitamente negam que a regeneração antecede a fé, pois afirmam categoricamente que a fé produz o novo nascimento.

Que os remonstrantes modernos não crêem na salvação pela graça fica ainda mais claro quando se analisa o que se afirma e o que se nega com o Sola Gratia:

“Reafirmamos que na salvação somos resgatados da ira de Deus unicamente pela sua graça. A obra sobrenatural do Espírito Santo é que nos leva a Cristo, soltando-nos de nossa servidão ao pecado e erguendo-nos da morte espiritual à vida espiritual.

Negamos que a salvação seja em qualquer sentido obra humana. Os métodos, técnicas ou estratégias humanas por si só não podem realizar essa transformação. A fé não é produzida pela nossa natureza não-regenerada.”

Os arminianos até que gostariam de poder dizer que somos resgatados da ira de Deus unicamente pela Sua graça, que nos dá vida enquanto estamos mortos espiritualmente. Mas dirão que a causa disso é a fé e esta é um presente do pecador a Deus e não o contrário. Assim, em pelo menos algum sentido, a salvação é obra humana (embora afirmem que a fé não é obra).

Seria o caso de que a Declaração de Cambridge estaria definindo o Sola Gratia em termos calvinistas, desfavorável ao arminianismo? Seguramente não é o caso, pois o que a Declaração faz é apenas resgatar o sentido que a expressão tinha para os reformadores. Além disso, a definição de graça é controlada pelo que diz a Palavra de Deus, que não deixa margem para inserção de elemento humano algum.

O texto sagrado diz “pela graça sois salvos” e não “também pela graça sois salvos”. A salvação é monergistica, pois é Deus quem opera exclusivamente o novo nascimento, sem o concurso de nenhuma faculdade humana. A graça é a causa única da salvação. A fé em si não é a causa da salvação, que se dá por meio e não por causa dela. Podemos dizer, no máximo, que a fé é a causa instrumental da salvação. De qualquer forma, a fé como tudo o mais que diz respeito à salvação é dom de Deus, dom este que vem unicamente pela graça.

Mas se os arminianos negam na prática o Sola Gratia, será que não negam também outros Solas?

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

17 de dezembro de 2009

Que é o calvinismo? [final]

PRA ENCERRAR A CONVERSA (POR ENQUANTO)

Cinco proposições foram comentadas, na tentativa de descrever o que é, e o que não é o calvinismo:

1. O Calvinismo não é um pensamento intolerante, carrancudo, e elitista
2. O Calvinismo não é um sistema que se alegra com a destruição dos homens
3. O Calvinismo é uma forma de ver Deus
4. O Calvinismo é uma forma de ver o homem
5. O Calvinismo é uma forma de ver o mundo

Estes comentários não têm a pretensão de esgotar o assunto, nem de ser a palavra final em termos de descrição do pensamento reformado. Homens como Spurgeon fizeram um trabalho melhor em sintetizar tudo na máxima: “O calvinismo é o evangelho”.

À guisa de conclusão, como quem vai se preparando pra levantar em uma mesa de café – naquele bate-papo agradável –, cabe destacar cinco princípios da Reforma, que ilustram adequadamente o espírito calvinista:

Sola Scriptura – A Bíblia é a fiel Palavra de Deus, bem como a autoridade final do que crer e como viver.
Sola Gratia – A Graça é a ação Divina em favor de pecadores indignos. A salvação se dá unicamente pela vontade de Deus, a despeito do imerecimento humano.
Sola Fide – A fé é o meio estipulado na Escritura para recebermos a bênção do Senhor. Nenhuma obra pode nos fazer aceitáveis ao Pai, precisamos apenas crer, desistindo de tentar comprar a salvação.
Solus Christus – O objeto da fé precisa ser exclusivamente o Senhor Jesus. Não basta ter apenas fé, mas fé em Cristo. Ele morreu na cruz para salvar pecadores. Ele é o único mediador entre Deus e os homens (1Tm.2.5).
Soli Deo Gloria – A vida do cristão precisa ser vivida somente para a glória de Deus. Todas as circunstâncias são transformadas em momento de adoração, independentemente de sua aproximação com o que é “religioso”. O objetivo de vida do reformado é glorificar a Deus em tudo.

Com as cinco proposições e estes cinco princípios, é possível um vislumbre adequado do pensamento reformado. O espírito calvinista, longe das caricaturas de pessoas malvadas e arrogantes, é de indivíduos que amam a Jesus e à Sua verdade.

É certo que, pelos caminhos da vida, vamos encontrar um ou outro reformado irritante – aqueles “caras de um assunto só”. Têm essa habilidade especialmente aqueles que acabaram de descobrir a fé reformada e precisam falar sobre isso de cinco em cinco minutos. Demos a eles o devido desconto. Em breve descobrirão a amplitude do pensamento reformado, e terão vocabulário bem mais extenso.

Enquanto isso, o resto dos calvinistas aguarda ser percebido como um grupo de servos de Deus, comprometidos com a Sua Palavra e com uma visão de mundo que brota da Verdade Divina.

Quando encontrar um calvinista, você já sabe o que esperar.

* * *

Se você tem interesse em baixar o artigo inteiro - "Que é o calvinismo?" (PDF, 13 p., 96KB), basta clicar aqui.

* * *

Allen Porto é blogueiro do A Bíblia, o Jornal e a Caneta, e escreve às quintas-feiras no 5calvinistas.

16 de dezembro de 2009

Bíblia e Predestinação [5] - Deus decreta pecados?

Leia o post anterior da série clicando aqui.

Este texto já foi postado anteriormente no meu blog pessoal, o Reforma e Carisma, mas é pertinente à série que me propus a expor aqui. Quem quiser ler a versão original, é só clicar neste link. A versão aqui apresentada tem algumas alterações e explica as dúvidas que possam ter surgidos nos posts anteriores sobre a conciliação entre a soberania de Deus e a existência do mal e a liberdade humana.
I. Pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e imutável conselho da sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a maior até a menor.
Ref. Nee, 9:6; Sal. 145:14-16; Dan. 4:34-35; Sal. 135:6; Mat. 10:29-31; Prov. 15:3; II Cron. 16:9; At.15:18; Ef. 1:11; Sal. 33:10-11; Ef. 3:10; Rom. 9:17; Gen. 45:5. (CFW, cap. V. art. 1)

I. Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta da sua natureza.
Ref. Tiago 1:14; Deut. 30:19; João 5:40; Mat. 17:12; At.7:51; Tiago 4:7. (CFW, cap. IX, art.1)
Afinal, as coisas acontecem por que nós queremos e determinamos que elas seriam assim ou por que Deus assim ordena? A compreensão da teologia reformada é a de que os dois lados são igualmente verdadeiros. Deus "dirige, dispõe e governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a maior até a menor". Por outro lado, o homem é livre, de tal forma "que ele nem é forçado para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta da sua natureza".

Em outras palavras...tudo o que nós fazemos, nas mínimas coisas, desde um bocejo até a decisão de seguirmos ou não a Cristo...é governada e dirigida por Deus. Por outro lado, se decido vestir uma camisa vermelha e não a azul, ou se me recuso a seguir a Cristo, o faço porque escolhi livremente aquela decisão.

Acreditar no que disse acima já é uma barreira enorme para muitos, mas é o ponto de vista oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil e de todas as igrejas reformadas que adotam a Confissão de Fé de Westminster (CFW). Essas idéias também foram defendidas por não presbiterianos, como os batistas Charles Spurgeon e Arthur Walkington Pink. Hoje, expoentes batistas como John Piper e Wayne Grudem defendem a mesma visão. Quem quiser conferir, basta checar as referências bíblicas na citação acima...ou ler, por exemplo, a explicação de providência divina dada na Teologia Sistemática de Wayne Grudem.

Mas, se já é duro ler esses artigos da CFW, é mais difícil ainda pensar nas conseqüências. Se Deus dirige as mínimas coisas...então os nossos pecados também foram decretados por Deus. Sim, pecamos não apenas porque nós decidimos assim, mas também porque Deus decretou que pecaríamos. Isso pode ser visto em várias passagens:

1) Na crucificação de Jesus
No sermão do dia de Pentecostes, Pedro atribuí a crucificação de Cristo tanto à vontade humana como ao decreto divino:
Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos... (Atos 2:22-23)
A mesma idéia é repetida pela igreja, quando ora agradecendo ao Senhor pela libertação dos apóstolos:
porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram..." (Atos 4:27-28)
A crucificação de Jesus foi, sem dúvida alguma, um dos maiores pecados já cometidos na face da Terra, só sendo superado (talvez) pela blasfêmia contra o Espírito Santo. No entanto, se vê que foi um pecado decretado por Deus e executado, livremente, pelos homens predeterminados para isso. Pelo menos essa é a interpretação dada por Pedro e pela igreja de Atos.

2) Quem castigou a Jó: Deus ou Satanás?
Um outro caso interessante é o de Jó. Lendo o livro, vemos que é Deus quem põe a Jó na alça de mira do diabo:
Perguntou ainda o SENHOR a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal. (Jó 1:8)
Após essa pergunta, Satanás se interessa em afetar a Jó e recebe permissão divina para agir contra ele:
Disse o SENHOR a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a mão. E Satanás saiu da presença do SENHOR. (Jó 1:12)
Daí se vê que várias desgraças foram causadas pelo diabo contra Jó: o roubo do gado e o assassinato dos servos de Jó feitos pelos sabeus (Jó 1:14-15); o fogo que consumiu ovelhas e servos (Jó 1:16); o roubo dos camelos e o assassinato dos servos, agora feito pelos caldeus (Jó 1:17) e a morte dos primogênitos (Jó 1:18-19).

Quem foi o responsável? Com certeza, sabeus e caldeus são responsáveis: roubaram porque quiseram. O diabo também, essas coisas só aconteceram depois que ele se decidiu a atacar a Jó. Mas Jó atribuiu tudo a Deus:
e disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o SENHOR o deu e o SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR! (Jó 1:21)
Teria Jó pecado em atribuir tal fato ao Senhor? De modo algum:
Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma. (Jó 1:22)
Deus decretou, o diabo, os caldeus e sabeus o executaram, usando a liberdade que possuem.

3) Quem tentou a Davi: Deus ou Satanás?
Tornou a ira do SENHOR a acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá. (2 Samuel 24:1)

Então Satanás se levantou contra Israel e incitou Davi a levantar o censo de Israel. (1 Crônicas 21:1)
Uma das dificuldades de interpretação bíblica é conciliar o levantamento do censo de Israel conforme contado por 2 Samuel e 1 Crônicas. Em um, Deus é quem fez Davi levantar o censo. No outro, foi o diabo. Há erro?

Não. Tanto Deus como Satanás incitaram a Davi. Deus decretou e o diabo executou a ordem. Mas, mesmo assim, Davi também foi responsável. E o próprio Davi o admite:
Disse Davi a Deus: Não sou eu o que disse que se contasse o povo? Eu é que pequei, eu é que fiz muito mal; porém estas ovelhas que fizeram? Ah! SENHOR, meu deus, seja, pois a tua mão contra mim e contra a casa de meu pai e não para castigo do teu povo. (1 Crônicas 21:17)
Uma lição muito preciosa para crentes que ficam querendo jogar a culpa de seus pecados em cima do diabo, dos homens e de Deus. E um detalhe...aqui a Bíblia diz que Deus incitou Davi a pecar. Como explicar isso sem recorrer à doutrina dos decretos?

4) As vitórias militares de Senaqueribe
Quando o rei assírio Senaqueribe atacou o reino de Judá, ele afrontou a Deus e recebeu uma resposta divina, por meio do profeta Isaías. Senaqueribe achava que ele é quem havia conquistado povos e reinos...e Deus responde, mostrando que isso só aconteceu porque Deus havia determinado que assim seria:
Por meio dos teus servos, afrontaste o Senhor e disseste: Com a multidão dos meus carros, subi ao cimo dos montes, ao mais interior do Líbano; deitarei abaixo os seus altos cedros e os ciprestes escolhidos, chegarei ao seu mais alto cimo, ao seu denso e fértil pomar. Cavei e bebi as águas e com a planta de meus pés sequei todos os rios do Egito. Acaso, não ouviste que já há muito dispus eu estas coisas, já desde os dias remotos o tinha planejado? Agora, porém, as faço executar e eu quis que tu reduzisses a montões de ruínas as cidades fortificadas. (Isaías 37:24-26).
Vale lembrar que, embora Deus tivesse planejado as conquistas assírias, elas eram um pecado para Ele:
Não há remédio para a tua ferida; a tua chaga é incurável; todos os que ouvirem a tua fama baterão palmas sobre ti; porque sobre quem não passou continuamente a tua maldade? (Naum 3:19)
5) A profecia de Micaías
Deus decreta e dirige todas as coisas, e usa até mesmo os pecados para atingir os Seus propósitos divinos. Poucas histórias ilustram isso como a morte de Acabe, que foi considerado o pior rei da história de Israel (1 Reis 21:25). Por causa da morte de Nabote, Deus determinou a morte de todos os descendentes masculinos de Acabe (1 Rs 21:21-24).

Um dia, Acabe decidiu guerrear contra os siros. E vários profetas foram chamados para serem consultados pelo rei. Acabe venceria ou não os siros? Todos profetizaram vitórias. Mas o profeta Micaías mostrou o que, de fato, estava acontecendo:
Micaías prosseguiu: Ouve, pois, a palavra do SENHOR: Vi o SENHOR assentado no seu trono, e todo o exército do céu estava junto à ele, à sua direita e à sua esquerda; Perguntou o SENHOR: Quem enganará a Acabe, para que suba e caia em Ramote-Gileade? Um dizia desta maneira, e outro, de outra. Então, saiu um espírito, e se apresentou diante do SENHOR, e disse: Eu o enganarei. Perguntou-lhe o SENHOR: Com quê? Respondeu ele: Sairei e serei espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas. Disse o SENHOR: tu o enganarás e ainda prevalecerás; sai e faze-o assim. Eis que o SENHOR pôs um espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas e o SENHOR falou o que é mau contra ti. (1 Reis 22:19-23)
Deus se valeu de um pecado (a mentira) e de um espírito mentiroso (provavelmente um demônio) para cumprir o seu decreto, de que Acabe morreria.

Mas, há uma dificuldade aqui que precisamos resolver.

Deus tenta os homens?
De modo algum. Como está escrito:
Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. (Tiago 1:13)
Como também ensina a CFW:
IV. A onipotência, a sabedoria inescrutável e a infinita bondade de Deus, de tal maneira se manifestam na sua providência, que esta se estende até a primeira queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os seus próprios e santos desígnios, sábia e poderosamente os limita, e regula e governa em uma múltipla dispensarão mas essa permissão é tal, que a pecaminosidade dessas transgressões procede tão somente da criatura e não de Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não pode ser o autor do pecado nem pode aprová-lo.
Ref. Isa. 45:7; Rom. 11:32-34; At. 4:27-28; Sal. 76:10; II Reis 19:28; At.14:16; Gen. 50:20; Isa. 10:12; I João 2:16; Sal. 50:21; Tiago 1:17. (CFW, cap. V, art. IV).
Deus decreta o mal? Sim. Usa o mal para o cumprimento de Seus propósitos? Sim. Mas Ele mesmo vai lá, tentar o pecador de forma direta? Não. Embora Deus decrete o pecado, Ele mesmo não é o Seu autor imediato ou o seu executor.

Mas como conciliar os decretos de Deus com a liberdade humana? A Bíblia não se preocupa em fazer essa conciliação: ela simplesmente afirma os dois lados como sendo verdadeiros e não vê razões para explicar. O bom intérprete não vai tentar criar uma harmonização artificial deste paradoxo: ele vai seguir a Bíblia e afirmar as duas metades. Seguirá o bom conselho de se calar nos assuntos em que a Bíblia também se cala e não se atreverá a negar aquilo que a Palavra de Deus afirma.

E o que podemos afirmar, com certeza, é que nada, absolutamente nada está fora dos decretos de Deus, que governa ativamente a Sua criação. Nem mesmo a nossa liberdade, a nossa livre-agência, é capaz de impedir, anular ou limitar esse governo soberano de Deus.

Soli Deo Gloria!

Leia o próximo post da série clicando aqui.

Helder Nozima é pastor presbiteriano, blogueiro do Reforma e Carisma e escreve às quartas-feiras no  5 Calvinistas.

15 de dezembro de 2009

Heresias escondidas dentro de uma cabana


Como ainda estou sem tempo para dar continuidade à série sobre os textos supostamente "arminianos" da Bíblia, estou repostando um texto antigo, que escrevi no Optica Reformata (aqui). Vai que alguém queira dar A Cabana de presente de natal a um parente, amigo, irmão...


O escritor canadense William Paul Young saiu do anonimato para a fama ao publicar um livro que se tornaria, em muito pouco tempo, um verdadeiro sucesso. Com mais de dois milhões de cópias vendidas e status de best-seller, “A Cabana” tem cativado a mente de muitas pessoas ao redor do mundo, especialmente/inclusive dos cristãos. Em linhas gerais, o livro conta a história de Mackenzie Allen Phillips, o “Mack”, um pai de família que encontra a Deus depois de ter sua filha caçula, Missy, raptada e brutalmente assassinada por um maníaco assassino de crianças (um serial killer). Cerca de três anos e meio depois do ocorrido, Deus, ou melhor, “Papai”, manda uma carta para Mack marcando um encontro com ele exatamente na cabana onde a polícia havia encontrado o vestido usado por Missy todo encharcado de sangue. Mack, depois de lutas intensas consigo mesmo, resolve aceitar o “encontro”, mesmo desconfiando de uma possível cilada do assassino de sua filha. Ao chegar lá, Mack tem uma, ou melhor, três surpresas: Deus lhe aparece na pessoa de uma mulher “negra enorme e sorridente” (pág. 73). Logo depois aparecem o Espírito Santo, na pele de uma mulher asiática, chamada Sarayu, e Jesus, um homem médio-oriental (hebreu, pra ser mais preciso) vestido de calça jeans e camisa xadrez. A partir de então, Mack vai viver uma inesquecível aventura ao lado dessa ilustre “Trindade”.

Qualquer cristão que tenha um mínimo de conhecimento de História da Igreja saberá que A Cabana nada mais é do que o ressurgimento de algumas das antigas heresias que tumultuaram a vida e o andamento da Igreja Antiga, principalmente aquelas que envolviam questões sobre a Trindade. Do ponto de vista teológico, o livro oscila entre heresias implícitas e explícitas; do ponto de vista literário, entre frases de efeito medíocres (quase sempre) e alguns poucos insights interessantes. Seu enredo envolvente propõe-se a apanhar os desavisados.

Não sei qual foi a experiência eclesiástica do autor de A Cabana, mas posso presumir que não foi das melhores. Torna-se patente, em muitas partes do livro, o desprezo pela igreja e pela adoração corporativa, ressaltando-se e a valorização da experiência pessoal, como bem reza a cartilha pós-moderna.

[Mack] Percebeu que estava travado e que as orações e os hinos dos domingos não serviam mais, se é que já haviam servido [...] Mack estava farto de Deus e da religião, farto de todos os pequenos clubes sociais religiosos que não pareciam fazer nenhuma diferença expressiva nem provocar qualquer mudança real. Mack certamente desejava mais (pág. 54 – versão digital. Itálico meu).

Parece que a intenção inicial do livro não é a de levar os leitores a uma nova perspectiva sobre a Trindade, e sim, que eles desacreditem da Igreja como sendo a “coluna e baluarte da verdade” (1Tm 3.15) e sigam atrás de outras alternativas de encontrar Deus. Em minha opinião, esse é o maior perigo que o livro oferece.

Quando o assunto, finalmente, é a Trindade, A Cabana traz à tona várias heresias antigas (não pretendo fazer comentários exaustivos sobre todas elas). Como já disse anteriormente, Mack vai à cabana encontrar Deus, que lhe aparece no corpo de uma mulher de pele negra. Logo de cara, vemos a verdadeira alma do paganismo, a saber, materializar Deus dando-lhe alguma forma física. Entendo perfeitamente que se trata de um romance e, como tal, precisa de personagens para dar substância ao enredo. Mas, em se tratando do Senhor Deus Todo-Poderoso, essa regra não deve ser aplicada em hipótese alguma. É exatamente isso que Deus expressamente proíbe no Segundo Mandamento (Ex 20.4-5). Jesus mesmo declarou que “Deus é Espírito” (Jo 4.24). Não devemos emprestar a Deus as formas vãs e tolas que concebemos em nossas mentes pecaminosas (cf. Rm 1).

Uma das antigas heresias às quais me referi há pouco é o Patripassianismo, doutrina monarquianista[1] segundo a qual foi o próprio Deus quem morreu na cruz, em vez de Jesus. Tertuliano combateu esse ensino com bastante veemência. Quando, certa vez, ele disse que “o demônio tem lutado contra a verdade de muitas maneiras, inclusive defendendo-a para melhor destruí-la”, estava se referindo justamente a essa heresia, que estava sendo largamente difundida por Práxeas. Ele continua dizendo que “Ele [o demônio] defende a unidade de Deus, o onipotente criador do universo, com o fim exclusivo de torná-la herética[2]”. Em uma passagem de A Cabana essa heresia é claramente visível:
Papai não respondeu, apenas olhou para as mãos dos dois. O olhar de Mack seguiu o dela, e pela primeira vez ele notou as cicatrizes nos punhos da negra, como as que agora presumia que Jesus também tinha nos dele. Ela permitiu que ele tocasse com ternura as cicatrizes, marcas de furos fundos, e finalmente Mack ergueu os olhos para os dela (pág. 86. Itálico meu).

Embora Jesus seja Deus, sabemos que não foi Deus, o Pai, quem morreu na cruz. Deus não tem as marcas dos pregos em seus punhos, como A Cabana quer que acreditemos. Foi o Seu Filho quem foi crucificado. No afã de ressaltar a unidade da Trindade, o Monarquianismo acabou resumindo tudo a uma só pessoa. Em mais uma declaração claramente sabeliana[3], “Papai” diz a Mack que “quando nós três penetramos na existência humana sob a forma do Filho de Deus, nos tornamos totalmente humanos” (pág. 85). Mas não é esse o ensino bíblico. A Palavra de Deus é bastante clara quando se refere ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo como sendo Pessoas distintas que possuem uma mesma essência (ver Mt 28.29; 2 Co 13.13; 1 Jo 5.7; 2 Jo 3). E o pior de tudo é que, para confundir ainda mais o leitor, “Papai” desdiz tudo o que houvera dito antes, dizendo que
Não somos três deuses e não estamos falando de um deus com três atitudes, como um homem que é marido, pai e trabalhador. Sou um só Deus e sou três pessoas, e cada uma das três é total e inteiramente o um (pág. 87).
Seria algo equivalente à “Metamorfose Ambulante” proposta por Raul Seixas (“eu vou lhes dizer agora o oposto do que eu disse antes”)? Será que dá pra confiar no “Deus” proposto por William P. Young?
Mas os problemas não param por aí. Como se não bastasse, o livro também nega a divindade de Jesus. Em uma conversa entre Mack e Papai, Mack pergunta:
— Mas... e todos os milagres? As curas? Ressuscitar os mortos? Isso não prova que Jesus era Deus... você sabe, mais do que humano? — Não, isso prova que Jesus é realmente humano. [Papai continua...] — Fez isso como um ser humano dependente e limitado que confia na minha vida e no meu poder de trabalhar com ele e através dele. Jesus, como ser humano, não tinha poder para curar ninguém (pág. 90).
Ora, o que temos aqui não é o velho Ebionismo, que pregava que Jesus tornou-se Messias pelo Espírito Santo? Ou, ainda, o Arianismo, que dizia que Jesus era um simples homem elevado a uma categoria superior à dos demais seres humanos? O autor faz um divórcio entre a Humanidade e a Divindade de Jesus quando diz que “Jesus, como ser humano, não tinha poder para curar ninguém”, quando, na realidade, as duas naturezas de Cristo são inseparáveis. Nas palavras de John Stott, “Jesus não é Deus disfarçado de homem e nem um homem disfarçado de Deus”. Ele é Deus-Homem, como bem foi definido em Calcedônia no ano de 451 d.C. E para dar mais ênfase ainda na humanidade de Cristo, a personagem Jesus “deixara cair uma grande tigela com algum tipo de massa ou molho no chão, e a coisa tinha se espalhado por toda parte” (pág. 95), o que rendeu boas gargalhadas a Mack e Papai. Era só o que faltava: um Jesus todo atrapalhado!

O livro prossegue no enredo seguindo a tônica do “o importante é relacionar-se”. Nada de imposições, de regras. Amor pressupõe liberdade. Baseado nesse pensamento o autor constrói, ou melhor, desconstrói a questão da hierarquia na Trindade. É assim que “Jesus” define a questão:
Esta é a beleza que você vê no meu relacionamento com Abba e Sarayu. Nós somos de fato submetidos uns aos outros, sempre fomos e sempre seremos. Papai é tão submetida a mim quanto eu a ela, ou Sarayu a mim, ou Papai a ela (pág. 129 – versão digital).
Sarayu, que personifica o Espírito Santo, diz que a hierarquia não faria sentido entre a Trindade (pág. 112). Como é que fica, então, frases como “Seja feita a vossa vontade”? Não havia uma submissão do Filho ao Pai? Jesus disse que desceu do céu para "fazer a vontade do Pai"(Jo 6.38). A Cabana não se coaduna com a Bíblia aqui.

Outro ponto que chama alguma atenção no livro é a questão da onisciência de Deus. Apesar de em alguns pontos ela ser ressaltada (págs. 81, 147, 148, 174, 192 e 206, e.g.), o livro parece bem confuso neste aspecto. Nas páginas 129-130, por exemplo, Jesus diz que “é impossível ter poder sobre o futuro, porque ele não é real, e jamais será”. Sophia, uma personagem que representa a Sabedoria de Deus (Teosofismo?) diz que Deus não pôde impedir a morte de Missy (pág. 151), e que tal tragédia “não foi nenhum plano de Papai” (pág. 152). Entretanto, mais uma vez ele se contradiz, ao afirmar que poderia ter impedido o que aconteceu a Missy (pág. 204). Os leitores mais familiarizados com as tendências teológicas pós-modernas saberão que isso se trata de Teísmo Aberto, uma doutrina que remonta ao Socinianismo do século XVI. Segundo essa ideia, o futuro não pode ser plenamente conhecido (nem mesmo por Deus!), pois depende das ações dos seres humanos (chamados de “agentes livres”). Isso inclui também as tragédias naturais (como o Tsunami, por exemplo). Se isso é verdade, como é que fica, então, a questão do Dilúvio? E de Sodoma e Gomorra? Não foi o próprio Deus quem orquestrou tudo? Não é justamente isso que Ele diz em Isaías 45.7 (“... faço a paz e crio o mal”)? William P. Young parece não acreditar muito nisso.

A verdade do Evangelho é outra questão que está em jogo em A Cabana. Como diria a máxima modernista, “tudo o que é sólido desmancha-se no ar”. Nada de certezas, convicções. Papai mesmo é quem diz a Mack que “a fé não cresce na casa da certeza” (pág. 176), declaração que faria Brian McLaren e Ricardo Gondim babarem! Sarayu diz: “gosto demais da incerteza” (pág. 190). Em outra ocasião Papai diz a Mack: “Quem quer adorar um Deus que pode ser totalmente conhecido, hein? Não há muito mistério nisso” (págs. 85 e 86 – versão digital). E as farpas contra a igreja continuam. Jesus diz: “não crio instituições” (pág. 166). Logo em seguida, numa declaração hilariante, ele afirma categoricamente: “eu não sou cristão” (pág. 168). Aliás, para esse Jesus, o evangelho não é exclusividade. Diante do pluralismo religioso “Jesus” é bastante inclusivista. Ele mesmo diz que
Os que me amam estão em todos os sistemas que existem. São budistas ou mórmons, batistas ou muçulmanos, democratas, republicanos e muitos que não votam nem fazem parte de qualquer instituição religiosa (pág. 168).
Realmente, para um Deus que disse que “a morte dele [de Cristo] e sua ressurreição foram a razão pela qual eu agora estou totalmente reconciliado com o mundo” (pág. 180 – itálico meu) isso não é problema. Universalismo? Imagina! “Não preciso castigar as pessoas pelos pecados” (pág. 109). “Em Jesus eu perdoei todos os humanos por seus pecados contra mim, mas só alguns escolheram relacionar-se comigo”, disse Papai (pág. 209). Que estranho, não? Todo mundo perdoado e alguns que se relacionam? Bom, se é ele quem está falando, quem sou eu para questionar? No meio de toda essa confusão Mack parecia mesmo estar totalmente perdido. Foi “barrado” inclusive de ter seu momento devocional, quando foi perguntar pelas orações, ouvindo da boca de Papai: “nada é um ritual” (pág. 194). Coitadinho do Mack! Não tinha razão em nada! Mesmo quando pensou em Jesus como referencial de vida, um exemplo a ser seguido, ouviu da boca do próprio: “minha vida não se destinava a tornar-se um exemplo a copiar” (pág. 136). E agora, José, ou melhor, Mack? Caía por terra diante de seus olhos toda a instrução apostólica para que sejamos “imitadores de Deus” (Ef 5.1; 1Pe 1.16).

Ainda não acabou. Falta o “filé mignon”. Que tal uma pitadinha de Espiritismo para temperar nossa estória? Pois é. Mack vê sua filha, Missy! Uau! Que emocionante, hein? Foi Sophia (uma médium?) quem proporcionou esse encontro (pág. 153). E tem mais. Mack reencontra o seu pai (pág. 200), que ele havia envenenado depois de ter levado uma surra que o deixou de cama por duas semanas quando ele tinha apenas 13 anos de idade. Abre parêntese. O pai de Mack era um alcoólatra que batia na esposa, e Mack contou isso a um irmão da igreja da qual seu pai era membro. Fecha parêntese. Esse era um segredo que Mack guardava a sete chaves. Realmente, ele tinha muitas feridas que precisavam ser curadas. Então, por que não fazê-lo com uma sessão espírita? Os dois se abraçaram e fizeram as pazes, com direito a beijinho na boca e tudo (pág. 201). Jesus gosta tanto dessa ideia de beijar na boca que resolve fazer o mesmo com Papai (pág. 205).

Perdoem-me aqueles que ainda não leram o livro, pois revelei muitos dos seus suspenses. Achei por bem não expor absolutamente tudo de errado que encontrei. Expus apenas aquilo que considerei necessário. É perfeitamente compreensível o fato de A Cabana encabeçar o ranking dos livros mais vendidos[4], afinal de contas as pessoas estão à procura de um "Deus" (deus!) que se ajuste às suas pretensões. O que nos preocupa, entretanto, é saber que dentre os que financiam esse tipo de heresia estão aqueles que se professam crentes em Cristo. Sei que se trata de uma ficção, mas infelizmente não é dessa forma ela tem sido encarada. Perguntado sobre o que ele quer que as pessoas concluam ao lerem A Cabana, numa entrevista, William P. Young declarou que deseja que as pessoas “saibam ou tenham a noção de que Deus é bem maior do que eles já imaginaram”[5]. Lembrando de trechos do livro, sinceramente ainda não consigo enxergar grandeza alguma no “Deus” apresentado por Young. O que vi foi uma divindade deficiente que se curva aos caprichos humanos. Continuo preferindo o Deus que se revelou nas Escrituras. Este sim é a minha Rocha!

“Se alguém vos prega evangelho que vá além daquele que recebeste, seja anátema”! (Gl 1.9)


Soli Deo Gloria!!!
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Obs.: As referências tiradas do livro variam entre a versão impressa (Editora Sextante, 2008) e uma versão digital (e-book). Li o livro na versão impressa e fiz minhas anotações, mas devolvi-o ao dono (peguei o livro emprestado!). Depois anotei mais coisas na versão digital. É por isso que eu especifico as páginas e suas respectivas versões quando faço citações.


[1] O Monarquianismo, doutrina desenvolvida no final do século II e início do III, enfatizava tanto a unidade de Deus que acabou se transformando em numa espécie de Unitarismo, negando a realidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo como Pessoas distintas.
[2] Bettenson, H. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo, 2001. Editora Aste, Pág. 81.
[3] Sabélio ensinava que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma só e mesma essência, três nomes diferentes para a mesma substância. “Deus se manifestou como Pai no Velho Testamento, depois como Filho para redimir o homem e como Espírito após a ressurreição de Cristo. Não houve, então, três pessoas em Deus mas três manifestações” (Earle E. Cairns. O Cristianismo Através dos Séculos. São Paulo - SP, 1988. Editora Vida Nova, Pág. 83). Esse ensino ficou conhecido como Monarquianismo Modalista.
[4] Segundo a Revista Veja, em http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/
[5] http://www.youtube.com/watch?v=EaGMliCxyWY.

14 de dezembro de 2009

Não venha o teu reino

“Não queremos que este reine sobre nós.” Lc 19:14

A doutrina da Providência afirma que Deus reina soberanamente sobre toda Sua criação. Isto significa que o Senhor sustenta e preserva a natureza, dirige a história e domina sobre os seres morais de forma que absolutamente nada acontece à parte de Sua vontade. Assim, a providência é a realização na história do que Deus decretou na eternidade, e este decreto é todo abrangente, incluindo tudo o que acontece, até o destino eterno dos seres morais (homens e anjos).

É necessário dizer que esta doutrina, ainda que menos conhecida que a da Predestinação, é alvo da mesma resistência por parte dos não-calvinistas que a conhecem. O motivo declarado é que ela faria Deus autor do pecado e culpado de todo mal existente no universo. Mas as raízes da rejeição à doutrina da providência são mais profundas do que é piedosamente externado.

Jesus contou uma parábola em que “certo homem nobre partiu para uma terra remota, a fim de tomar para si um reino e voltar depois” (Lc 19:12). Incumbindo servos de seus negócios, até seu retorno, partiu. Tendo partido, as pessoas daquele lugar enviaram atrás dele embaixadores, com a clara mensagem de que seu reino, vale dizer, o seu domínio sobre eles não era bem vindo. Tendo tomado posse do reino, voltou e pediu contas aos encarregados de seus negócios e em seguida ordenou “quanto àqueles meus inimigos que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui, e matai-os diante de mim” (Lc 19:27).

A vontade do homem é contrária à ideia da providência. Nenhum motivo, além da própria vontade, é apresentado para recusar o reinado divino. Não se coloca em dúvida as bases de Seu reino, a justiça do Soberano ou as vantagens de um tal reinado. Dizem simplesmente “não queremos!”. Em última análise, é a vontade caída e escrava do pecado que se revolta contra o senhorio de Deus e de Seu Cristo.

Mas, por que a vontade humana é contrária ao domínio de Deus? Porque este domínio é exercido “sobre nós”. Desde o Éden o homem acalenta a ilusão de ser como Deus, após dar ouvidos à mentira de Satanás “sereis como Deus” (Gn 3:5). No âmago da rebelião está a egolatria, os homens não querem ceder o lugar no trono de suas vidas ao Regente do universo. Acalentam o diabólico anseio de autonomia pensando “eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono” (Is 14:13). Que o Senhor reine nos céus é algo que o homem tolera, que reine sobre as forças da natureza é suportável, mas reinar sobre eles próprios? Não, isto é inaceitável! Que Deus controla os pensamentos e os corações, inclinando-os para fazer através deles a Sua vontade é algo que o orgulho humano não consegue engolir, embora seja isso mesmo que a Bíblia ensine. Lutam com unhas e dentes para manter a aparente autonomia que desfrutam.

Mas a verdade é que queiram ou não os homens, Deus reina. E reina absolutamente, não abrindo mão das prerrogativas de Sua soberania em favor de ninguém, pois em todo o Seu domínio Ele “faz todas as coisas, segundo o conselho da Sua vontade” (Ef 1:11). Embora pareça que sua vontade está sendo contrariada, a própria rebelião dos que rejeitam seu domínio serve aos Seus propósitos eternos. E, ao final, todos os que não se submeteram voluntariamente ao Seu domínio sofrerão o dano da segunda morte.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

11 de dezembro de 2009

Soli Deo Gloria

Dizem-nos que as questões de fé são “de foro íntimo”. Não podemos nos expressar quanto ao que cremos publicamente, mas apenas em particular. A “era das luzes” empurra a fé para um canto escondido da experiência humana enquanto grita aos quatro ventos que é a razão, e com ela a ciência, que é a experiência universal (e pública) por excelência.
O erro deste pensamento é extremamente pernicioso, fazendo uma dicotomia entre o sagrado e o profano, entre o público e o privado. Nosso século é tão influenciado por esta dicotomia, e esta não se refere apenas às questões de fé, que as pessoas se tornam incapazes de ter uma visão unificada do mundo e de si mesmas. 
Assim, elas se dividem entre suas vidas: há uma que é profissional, outra acadêmica, ainda outra pessoal e sei lá mais quantas ela possa inventar. Crêem haver uma forma de se comportar no trabalho e outra em casa. Uma forma de pensar na academia (seja na que se estuda, seja na que se malha) e outra na igreja. Esquecem-se que há um único “eu” em todas estas atividades, unificando o sentido de todas as suas experiências. 
Em outras palavras, não há integridade em suas vidas.
Todo cristão, ao contrário, deveria perceber que todas e cada uma de suas experiências estão diante dele como uma ocasião para revelar para onde se inclina seu coração. É na sua integridade que ele revela o caráter de sua vontade redimida. Mas, infelizmente, este século está de tal forma comprometido com este pensamento, que, infelizmente, a dicotomia faz sentir sua influência também entre nós. 
Assim é que muitos cristãos não conseguem sequer imaginar o viver um verdadeiro Soli Deo Gloria. Eles imaginam que podem viver momentos “na presença de Deus”. Mas não atinam com uma vida toda e cada momento dela diante da Presença. 
Ora, para onde poderíamos fugir dEla se Deus é onipresente? Não é, entretanto, de um determinado atributo divino que devemos falar agora. Deixemos de lado a tentação de mais uma digressão e sigamos para o nosso objetivo aqui. E para tal, precisamos falar da finalidade do homem. E eu não me canso de repetir: nosso fim é doxológico. 
“Qual é o fim supremo e principal do homem?”, pergunta o Catecismo Maior de Westminster. E a resposta é “O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”: “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (I Co 10.31). “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.36).
Mas, infelizmente, nem todo cristão é confessional, pelo que Westminster provavelmente não lhes dirá muita coisa. E, pior, para muitos que se denominam cristãos, parece que textos bíblicos já não são suficientes para os convencer. 
Então, certa vez, li um texto em algum blog de um destes que se denominam cristãos, um muito esperto e deveras sábio não-reformado que com palavras irônicas, semelhantes a estas (seus termos não eram nada polidos), zombava das Escrituras:
Será que fazemos tudo para a glória de Deus? E isto intencionalmente? Será que fazemos amor para a glória de Deus? Será que vamos ao banheiro para a glória de Deus? Será que Deus é glorificado quando fazemos sexo? Será que Deus se satisfaz com nossas necessidades (fisiológicas)?
É triste saber que isso ofende a muitos ouvidos, sensíveis por demais, mas a resposta a estas perguntas, que se pretendem difíceis, uma resposta dada por aquele que entende ser a finalidade do homem o Soli Deo Gloria, é um convicto e sonoro SIM. 
Aquele que tem o calvinismo por cosmovisão coloca o homem em seu lugar e entende seu significado coram Deo (diante de Deus). E, assim, sem a dicotomia sagrado/profano, público/privado, entende que tudo que faz, seja o uso natural, sadio e correto do seu corpo, seja o prazer do amor sob Sua benção, seja qualquer outra coisa, tudo é culto ao Criador, tudo é para a Sua glória!
Mas alguém ainda pode zombar mais:
E ao pecar, dará você glória a Deus? E Deus é assim que precise da glorificação do homem?
É bem verdade que o cristão, ainda preso a este corpo de morte, ainda vive em lutas e tropeça. Nestes momentos (considerados por si), em nada glorifica ao seu Deus. Porém, ao reconhecer sua miséria e arrepender-se, se de fato o fez e dEle é, recebe o perdão gratuito oferecido pela cruz e volta a prestar-lhe louvor. Louvor que é para Sua glória. Pois o Deus que o chamou é Aquele que o salvou de si mesmo e é capaz de tornar mal em bem!
Deus não é mesmo carente de qualquer glória que Lhe seja externa. Ele basta a Si mesmo. Porém Ele resolveu criar, segundo Seu conselho. Para revelar Sua glória na criação, para revelar Sua glória nos eleitos. O homem que O glorifica não Lhe acrescenta glória alguma, mas reconhece a glória que lhe é devida!
Assim, desde as menores coisas até as maiores, desde dádiva da vida até a promessa da eternidade, desde os dias simples e comuns ao Dia do Senhor, desde as bênçãos ao mal que é tornado em bem, desde a planta do pé ao último fio de cabelo, desde a alvorada até o fim do dia, desde ventre até o Jordão, em tudo darei glórias ao Deus da minha salvação!
E repetirei e repetirei em êxtase e gozo: SOLI DEO GLORIA!