7 de novembro de 2018

ENEM - Exame Nabucodonosor do Ensino Médio

Publicado originalmente no site Reforma e Carisma.

Entra ano, sai ano, e há duas certezas que você ter sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A primeira é a de que você vai poder fazer vídeos constrangedores dos alunos que chegam atrasado. A segunda é a de que a prova será criticada por suas questões com forte viés ideológico. O ENEM 2018 não podia ser diferente.

De todas as polêmicas, a que está causando mais barulho é a que pergunta sobre o "dialeto secreto" dos travestis, o pajubá, que usa termos da língua iorubá. A maneira usada pelo examinador para saber se o aluno sabe o que é um dialeto foi questionada até pelo presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, que considerou a pergunta uma supervalorização da questão LGBT. Por outro lado, há pessoas que consideram exagerada a reação à pergunta. Ela não encorajaria nenhum tipo de engajamento homossexual e tamanha aversão apenas contribuiria para o avanço da homofobia no Brasil.

Quem tem a razão? Antes de responder, gostaria de explorar um outro exame feito na Bíblia. Assim como o Enem, esse exame era um pré-requisito para ascender socialmente, era promovido pelo Estado e tinha objetivos bem específicos.

A escola de Nabucodonosor
A história deste exame está no livro de Daniel. No século VI a.C., o grande imperador da Babilônia, Nabucodonosor, havia acabado de conquistar vários povos, entre eles, os judeus. Como parte de sua política de dominação, os babilônios transportavam as elites dos povos conquistados para a sua capital, de modo a deixar o populacho sem liderança. Mas Nabucodonosor tinha mais um objetivo: ele queria desconstruir a identidade nacional de seus conquistados. E, para isso, ele queria que os jovens dessas elites se tornassem babilônios (também conhecidos como caldeus).
Disse o rei a Aspenaz, chefe dos seus eunucos, que trouxesse alguns dos filhos de Israel, tanto da linhagem real como dos nobres, jovens sem nenhum defeito, de boa aparência, instruídos em toda a sabedoria, doutos em ciência, versados no conhecimento e que fossem competentes para assistirem no palácio do rei e lhes ensinasse a cultura e a língua dos caldeus. Determinou-lhes o rei a ração diária, das finas iguarias da mesa real e do vinho que ele bebia, e que assim fossem mantidos por três anos, ao cabo dos quais assistiriam diante do rei. Entre eles, se achavam, dos filhos de Judá, Daniel, Hananias, Misael e Azarias. O chefe dos eunucos lhes pôs outros nomes, a saber: a Daniel, o de Beltessazar; a Hananias, o de Sadraque; a Misael, o de Mesaque; e a Azarias, o de Abede-Nego. (Daniel 1:3-7)
Não adiantava tentar transformar homens adultos em caldeus. Jovens eram mais flexíveis. Afinal, eles não deveriam apenas adquirir o conhecimento técnico necessário para trabalhar para o rei: eles deveriam aprender a cultura e a língua. Seus hábitos alimentares seriam mudados: agora eles comeriam a mesma comida do rei. E ganharam outros nomes, na língua babilônica. Foi isso o que aconteceu com o profeta Daniel e seus amigos Hananias, Misael e Azarias.

Há muitas similaridades entre o método de educação babilônico e a educação considerada ideal no Brasil. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu a educação domiciliar.  Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski enfatizou que o Estado deve participar da educação das crianças. O ministro Luiz Fux lembrou que a lei brasileira determina o acesso e a permanência da criança na escola. No Brasil, o Estado deve interferir na educação.

Além da interferência estatal, um outro ponto de excelência seria a educação integral, onde a criança passa o dia inteiro na escola e só entra em contato com a sua família à noite, quando todos estão cansados. Assim, o Estado não apenas participa, como acaba sendo o protagonista da educação, em se tratando de escolas públicas. Afinal, até a maioria das refeições acaba sendo dada pelo Governo. Acrescente a isso a noção de que o educador ideal forma um cidadão, e você tem a receita babilônica a pleno vapor. As escolas brasileiras não transmitem conhecimentos, elas querem educar, elas querem formar a cultura de seus alunos. Em outras palavras, há uma cultura e até uma "língua" a ser ensinada. Qualquer semelhança com o pajubá é mera coincidência.

Por fim, há a questão do nome. Nos tempos bíblicos, quando pais nomeavam seus filhos, isso era um sinal de autoridade. O nome escolhido transmitia alguma mensagem ou ideia, e era uma espécie de definidor de caráter. Ao mudar o nome de Daniel e seus amigos, a Babilônia estava exercendo essa autoridade em um nível extremamente pessoal. Era um sinal externo de que eles não eram mais judeus, mas caldeus. De certa forma, a educação brasileira quer forjar uma nova identidade. Por isso que ministros como Luiz Fux, consideram a educação domiciliar por motivos religiosos como uma "uma superproteção nociva à criança".

O exame de Nabucodonosor
Mas, muito antes em se falar em mensuração de resultados, os caldeus já sabiam que era preciso medir a eficácia de sua filosofia educacional. E o examinador era a própria encarnação do Estado da época: o rei Nabucodonosor. Ele faria perguntas sobre matérias de "sabedoria e inteligência" e o resultado seria comparado com o da elite intelectual caldéia: os magos e encantadores. Se aprovados, os estrangeiros seriam parte dessa elite. Se reprovados, até a cabeça dos professores poderia ser cortada. Não há motivador melhor para o ensino do que esse.

Duvida? Basta ver a reação de Aspenaz quando Daniel e seus amigos se recusam a seguir a dieta real:
 Resolveu Daniel, firmemente, não contaminar-se com as finas iguarias do rei, nem com o vinho que ele bebia; então, pediu ao chefe dos eunucos que lhe permitisse não contaminar-se. Ora, Deus concedeu a Daniel misericórdia e compreensão da parte do chefe dos eunucos. Disse o chefe dos eunucos a Daniel: Tenho medo do meu senhor, o rei, que determinou a vossa comida e a vossa bebida; por que, pois, veria ele o vosso rosto mais abatido do que o dos outros jovens da vossa idade? Assim, poríeis em perigo a minha cabeça para com o rei. (Daniel 1:8-10)
Se Daniel e seus amigos estivessem "fora do padrão", abatidos, diminuídos em relação aos demais, a vida de Aspenaz estava em risco. Por analogia, talvez Daniel até ficasse vivo, mas seria o fim de qualquer possibilidade de ascensão social, e é quase certo que uma vida de servidão o aguardava. Não havia meio termo: a vida dependia daquele exame.

O Enem está se tornando um exame assim. Há uma pressão para que o exame seja o critério principal e decisivo para ingresso em qualquer estabelecimento de ensino superior. Outras formas de seleção são desencorajadas e mal vistas. Não se faz o mesmo que outros países, como os EUA ou o Canadá, onde há o exame mas pode-se ingressar em uma faculdade pelo currículo, pelo desempenho esportivo ou artístico ou outros fatores que podem ser decisivos. Pior: no Brasil, considera-se que não há possibilidade de sucesso profissional fora das faculdades. Em países realmente desenvolvidos, um emprego de ensino médio pode muito bem te pagar mais do que certas faculdades.

"Se fere minha existência, eu serei resistência"
Aqui já deve estar claro qual o meu posicionamento sobre a pergunta do pajubá. Sim, talvez a resposta da pergunta seja sim algo válido de se aprender. Em se tratando de línguas, é bom que alunos saibam o que é um dialeto. O problema é a fôrma usada para a pergunta. Porque, ao analisarmos o quadro maior da educação brasileira, o que podemos ver é que o Enem é um instrumento de submissão ideológica, como afirma o crítico literário Rodrigo Gurgel:
Como afirmei em 25 de outubro de 2015 — e como muitos amigos estão lembrando aqui e em outras redes sociais —, o ENEM não é um exame, não é uma prova. Não… É um exercício de submissão ideológica. É o primeiro exercício de submissão ideológica antes da entrada na universidade, onde a submissão ideológica se completará. O governo não quer saber a opinião do estudante. Não… Quer apenas que o estudante concorde com a ideologia que o próprio governo defende, ensina e estimula. Se isso não é uma forma de totalitarismo, então o que é?
Há uma pauta política e cultural que justifica o uso dos travestis e de um dialeto derivado de uma língua africana na pergunta. Há método ao destacar um advogado como alguém que conhece o pajubá e o usa em ambientes mais formais. O objetivo está ligado à ideologia de gênero: legitimar o travestimento. Por isso a pergunta em um exame de acesso universitário, a ligação com a cultura africana, o uso de um advogado e o ambiente formal: tudo para dar legitimidade a um comportamento que não é bem visto por toda a sociedade. Isso explica também porque a imprensa está querendo eleger "Pablo Vittar como mulher mais sexy do Brasil" e Thammy como "homem mais sexy do Brasil". Os fatos estão ligados. É essa a língua e a cultura que está se querendo ensinar.

E aí é que entra a lição que a Bíblia nos dá diante de um quadro educacional assim: resistir. Capitular pode não ser o fim da existência física, mas é o fim da existência identitária. Daniel não teve como escapar do exame, nem mesmo como evitar o aprendizado da língua e da cultura dos caldeus. Mas ele nunca capitulou diante de Nabucodonosor. Ele resistiu dentro do cabível, rejeitando as iguarias do rei e preservando a dieta prescrita na Lei de Moisés. Daniel e seus amigos se mantiveram como uma microcomunidade judia na corte babilônica. Preservaram sua fé, seus valores e sua consciência. E porque resistiram, o nome deles foi escrito na Bíblia e perdura até hoje.

Posteriormente, Daniel e seus amigos foram examinados por Nabucodonosor e aprovados. Eles entraram para o serviço público da Babilônia. E aí agiram como "sal na terra", influenciando por dentro a máquina imperial, de modo que até o próprio Nabucodonosor reconheceu a superioridade do Deus de Daniel:
 Mas ao fim daqueles dias, eu, Nabucodonosor, levantei os olhos ao céu, tornou-me a vir o entendimento, e eu bendisse o Altíssimo, e louvei, e glorifiquei ao que vive para sempre, cujo domínio é sempiterno, e cujo reino é de geração em geração. Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Daniel 4:34-35)
 
O nosso papel no Brasil do século XXI é imitar a Daniel e a seus amigos. Como eles confiaram em Deus, devemos confiar em Jesus, que é Soberano sobre Nabucodonosor e sobre toda a máquina ideológica do Estado brasileiro. Devemos resistir, cada um em sua esfera.

Se alunos, façamos as provas e aprendamos os conteúdos, mas que a nossa comida verdadeira seja a Palavra de Deus, e não o alimento imundo da ideologia de gênero e do marxismo cultural. Se somos professores, servidores públicos, escritores, pais ou até presidentes, precisamos desmontar essa máquina e influenciar do lado de dentro. Como? Tendo uma conduta profissional irrepreensivel, colocando Deus no nosso trabalho, orando e falando o que é correto. Se até Nabucodonosor se curvou, por que não os discípulos de Gramsci e Marx?

Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro

1 de novembro de 2018

A Reforma que o Brasil precisa: Tota Scriptura

Outubro já passou, por que ainda falar em Reforma? Bom, nunca é tarde demais para tocar no assunto, como diz o lema: "Igreja reformada, sempre se reformando". Infelizmente, porém, o lema tem sido mal aplicado no Brasil. As igrejas evangélicas brasileiras parecem aquelas senhoras que fizeram tantas cirurgias plásticas que desfiguraram seu próprio rosto. São tantas reformas: na liturgia, no nome, no marketing, na abordagem evangelística...mas a verdadeira Reforma, que é o retorno à Palavra de Deus, essa parece sempre ficar para depois.

E, de todas as reformas plásticas feitas no rosto das igrejas evangélicas brasileiras, a mais assustadora de todas é a doutrinária. E eu não falo aqui da Teologia da Prosperidade. Falo de uma "reforma"mais sutil, disfarçada de pregação do Evangelho da graça, mas que esconde uma heresia por trás: o marcionismo. Usando o Sola Gratia e o Solus Christus como disfarce, muitos pastores em igrejas históricas tem desprezado completamente o ensino do Antigo Testamento, assim como o herege Marcião descartou o Antigo Testamento no século II. Quando pastores verdadeiramente reformados resgatam princípios do Antigo Testamento para aplicá-los de modo cristológico nos dias de hoje, eles logo são acusados de judaizantes e legalistas. Bem, em resposta, afirmo: a Reforma não é apenas os cinco Solas. Ela também é o ensino do Tota Scriptura. E rejeitar o Tota é abraçar a heresia do que chamo "neomarcionismo".

A utilidade do Antigo Testamento
Em primeiro lugar, é preciso aprender a importância do Antigo Testamento nos dias de hoje. Com a vinda de Jesus e o derramar do Espírito Santo, uma nova aliança ou testamento teve início. A Lei passou a ser lida de uma forma diferente, com as lentes oferecidas pelo Novo Testamento. Mas ler com uma nova lente não significa que eu não preciso mais ler. Como diz a própria Bíblia:
Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra. (2 Timóteo 3:16-17)
Quando Paulo fala de "Toda a Escritura", as Escrituras que ele tinha em mãos eram o Antigo Testamento. Os Evangelhos não haviam sido todos escritos ainda, o Apocalipse sequer fora revelado, e as cartas dos apóstolos ainda não haviam sido compiladas em um Novo Testamento. Tudo o que Paulo fala nos dois versículos supracitados aplica-se, de modo mais direto, ao Antigo Testamento. Aplica-se a Moisés e a todos os Profetas.

Enquanto, em nome da graça, pastores dizem que não devemos ir até Moisés, Paulo estava usando Moisés e os Profetas para ensinar, repreender, corrigir e educar na justiça. Paulo estava afirmando a inspiração divina de livros como Levítico. Mais: ele aconselhava Timóteo a permanecer usando esses livros, para que o homem de Deus fosse perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.

O dever de anunciar o Antigo Testamento
Em segundo lugar, além de ser útil, é um dever ensinar o Antigo Testamento. Erramos quando pensamos que nós, que vivemos no tempo da graça, temos a opção de ignorar 39 dos 66 livros da Bíblia em nossa leitura individual. Erramos quando pensamos que nossos pastores e professores de Escola Bíblica Dominical podem descartar a Lei e os Profetas de seu ensino. Deixar de fazê-lo é deixar que as mãos de mestres e pastores estejam sujas de sangue:
Portanto, eu vos protesto, no dia de hoje, que estou limpo do sangue de todos; porque jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus. (Atos 20:26-27)
Quando Paulo fala de todo o "desígnio" de Deus, a palavra usada é boule, que tem o sentido de "conselho, propósito". O texto tem sido entendido como uma declaração paulina de que o apóstolo ensinou toda a Palavra de Deus à igreja de Éfeso. Isso faz muito sentido. Uma vez que Deus fala por meio da Bíblia, a única maneira de expor todo o seu propósito é explorando todo o seu conteúdo.

Isso não significa que Paulo fez uma exposição de todo o Antigo Testamento versículo por versículo em Éfeso ou em qualquer igreja. Mas que toda a mensagem bíblica, todos os temas contidos em toda a Lei e os Profetas foram ensinados por ele em seu ministério. Paulo não era um especialista que falava somente do profeta Isaías, por exemplo. A Bíblia toda era o seu ensino.

O caminho que leva a Jesus Cristo
Mas há um terceiro e último motivo que quero colocar aqui para defender porque Moisés não deve ser retirado dos púlpitos cristãos. Repare em Atos 20:26. Paulo afirma que estava limpo do sangue de todos, porque ensinou todo o desígnio de Deus. Por que limpo do sangue? Porque, ao ensinar toda a Escritura, Paulo ensinou tudo o que era preciso para que os efésios cressem em Jesus e vivessem segundo o desejo d'Ele. Em outras palavras, Moisés nos leva a Cristo.

Quem ensina isso é o próprio Senhor Jesus. O problema nunca esteve na Lei e nos Profetas, mas sim na maneira como lemos. Se lermos o Antigo Testamento corretamente, veremos que a mensagem dele é Cristo! Jesus mesmo prova isso quando conversa com dois discípulos no caminho de Emaús:
Então, lhes disse Jesus: Ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!  Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras. (Lucas 24:25-27)
Jesus não é a revogação da Lei, mas sim o seu cumprimento:
Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. (Mateus 5:17-18)
A Lei não é contrária a Cristo! O problema da Lei não é a sua existência. O que o Novo Testamento combate é a ideia de que podemos ser salvos por meio das obras da Lei. Contudo, se a Lei for vista de modo correto, sem ser como caminho de salvação, ela é boa. Ela é uma espécie de pedagogo que leva até Cristo Jesus:
É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo nenhum! Porque, se fosse promulgada uma lei que pudesse dar vida, a justiça, na verdade, seria procedente de lei.  Mas a Escritura encerrou tudo sob o pecado, para que, mediante a fé em Jesus Cristo, fosse a promessa concedida aos que crêem. Mas, antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela encerrados, para essa fé que, de futuro, haveria de revelar-se. De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio.(Gálatas 3:21-25)
A Lei não é uma inimiga do Evangelho. Ela não se coloca como uma alternativa a ele. Usada de modo correto, a Lei conduz a Cristo. Como? Nos convencendo de nossos pecados. Não há arrependimento e graça sem que, antes, sintamos a condenação da Lei aos nossos pecados. Enquanto não formos convencidos de que não somos justos e de que necessitamos de um Salvador, nunca imploraremos a misericórdia de Cristo. E, sem isso, não seremos salvos.

Um retorno ao Tota Scriptura
Ainda haveria mais motivos para serem explorados, mas o espaço e o hábito limitam-me a listar apenas os três acima. Jesus nunca quis que sua vinda e a pregação de Seu nome fossem pretextos para jogar fora Moisés e os Profetas. O que Ele espera é que nós o imitemos, e aprendamos a encontrar tudo o que é dito sobre Cristo em todo o Antigo Testamento.

Certamente isso não é fácil. Mas viver de modo completo nunca o foi. Ter uma dieta completa envolve variedade e o trabalho de cozinhar e preparar o que não parece saboroso. Uma vida equilibrada não é aquela dedicada somente ao lado espiritual, negligenciando o convívio com o próximo ou os cuidados com a saúde. É preciso enfrentar aquilo que parece difícil ou até indesejado.

O mesmo ocorre com as Escrituras. Uma Igreja verdadeiramente bíblica e reformada precisa passar por aqueles livros difíceis de entender e até de ler. Precisa aprender a buscar a Cristo em histórias que, em um primeiro momento, não parecem nada cristãs. Mas não temos o direito de fingir que elas não existem.

Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro

25 de outubro de 2018

A Reforma Anti-Totalitária e suas lições para o Brasil

Sinto saudades de quando as eleições eram realizadas apenas no dia 15 de novembro. Então, outubro ainda podia ser o mês das crianças e da Reforma Protestante. No entanto, quis a Providência Divina que o Brasil realizasse eleições em outubro. Mais do que isso: em 2018 elas acontecem no domingo em que, tradicionalmente, celebraríamos o aniversário da Reforma Protestante. E há sabedoria nisso.

Martinho Lutero ainda não sabia disso, mas quando ele pregou suas 95 Teses na Catedral de Wittenberg, ele começou um movimento religioso que teria implicações políticas, culturais e econômicas. Até os estudiosos seculares se sentem obrigados a explicar a Reforma em seus cursos de História, porque ela é indispensável para compreender o mundo em que vivemos hoje. A fé nunca é apenas um assunto privado, ela é sempre o centro de um abalo sísmico que vai impactar toda a vida do fiel. E, no campo político, a Reforma foi um grito contra o totalitarismo simbolizado pelo papa.

A Bíblia e as constituições
O papado moderno foi forjado durante a Idade Média e é filho de seu tempo. A Igreja sempre foi descentralizada enquanto era perseguida no Império Romano. Houve um início de centralização quando Constantino reconheceu o cristianismo, no século IV, mas o fim do Império Romano voltou a fragmentar a Igreja ocidental. Ao longo da Idade Média, reis buscaram legitimar seu poder e centralizá-lo, lutando para diminuir o poder dos senhores feudais. De modo análogo, o Papado também reivindicou para si a supremacia sobre toda a Igreja e lutou contra reis para assumir o controle das nomeações eclesiásticas e sufocar aqueles que contestassem sua teologia e autoridade. O período medieval termina com reis absolutistas e papas com um imenso poder. Em suma: a Idade Média começa com uma Europa quase anárquica e termina com uma Europa quase totalitária.

Ao questionar publicamente as indulgências (o perdão de pecados concedido por meio de ofertas à Igreja) e apontar os desvios do catolicismo romano, Lutero fez um desafio imperdoável. O erro do reformador foi ter afirmado que, além de Deus, havia uma outra autoridade superior à do papa: a Bíblia Sagrada. Quando ele colocou as Escrituras como a norma a ser observada até mesmo pelo suposto sucessor de Pedro, Lutero desferiu um golpe inconsciente contra o totalitarismo medieval.

Esse deslocamento de autoridade teve repercussões que se fazem sentir até no Brasil do século XXI. Ao colocar a autoridade sobre as leis divinas, e não sobre o seu intérprete, Lutero deu uma justificação teológica para os governos constitucionais de nosso tempo. O poder de reis, presidentes, parlamentares e juízes é definido e limitado pelo texto constitucional. Em caso de abusos de poder, assim como Lutero apelou para a Palavra de Deus, hoje podemos apelar para o texto fundador do país: a Constituição.

Vale lembrar que isso afetou até mesmo os príncipes que protegeram Lutero quando a reação católica colocou a vida do reformador em perigo. Os príncipes alemães gostaram da descentralização de poder, mas talvez aspirassem a um totalitarismo local, menor. Com o passar do tempo, o apelo à Lei acabou alcançando todas as esferas de poder político ocidental, enterrando também o feudalismo e toda a estrutura política medieval.

Concílios e parlamentos
Uma vez estabelecida uma nova fonte de autoridade, é preciso ouvir o que ela diz. A Reforma foi, antes de tudo, uma tentativa de retorno e de resgate do ensino bíblico. E algo interessante a se notar é que nenhuma das denominações filhas da Reforma de Lutero adotou o episcopalismo, o governo da Igreja pelos bispos. As denominações protestantes que possuem bispos ou são filhas da Reforma Inglesa (metodistas, por exemplo) ou são filhas do movimento neopentecostal, o qual tem seu caráter protestante questionável.

De modo geral, duas formas de governo eclesiástico procederam do movimento inicial da Reforma: o governo congregacional e o governo presbiteriano da Igreja. A figura do bispo acima dos demais que decide as questões doutrinárias foi substitúido pelos concílios. O luteranismo formou seu corpo doutrinário na Confissão de Augsburgo, que teve Melanchton como principal redator, e não Lutero. João Calvino defendeu o governo da Igreja por meio de uma pluralidade de presbíteros e as doutrinas do calvinismo foram definidas em concílios posteriores, que produziram documentos como Os Cânones de Dort e a Confissão de Fé de Westminster, entre outros. Até mesmo os batistas decidiram sua doutrina de modo conciliar, produzindo as Confissões Batistas de Londres no século XVII.

A importância dos concílios é que eles são uma espécie de equivalente dos parlamentos. Diferentes pontos de vista são examinados por comissões, discutidos e chega-se a um acordo sobre o texto final. A primeira grande controvérsia teológica cristã foi resolvida de modo similar, no que ficou conhecido como Concílio de Jerusalém, registrado em Atos 15. De modo mais rotineiro, tanto as assembleias congregacionais como as reuniões de Conselhos de igrejas locais também cumprem uma espécie de papel legislativo. O clero não decide sozinho, ele precisa do consentimento da assembleia ou de seus representantes (os presbíteros) para governar a Igreja.

Liberdade: a doença e o antídoto
Contudo, há uma implicação negativa da Reforma, sempre lembrada pelos católicos. Ao evitar a centralização, a Reforma levou a um quadro nunca antes de visto de desfragmentação da Igreja. Ninguém sabe ao certo quantas denominações se divide o protestantismo, e muitas delas sequer carregam os fundamentos teológicos dos reformadores.

Por que isso acontece? Porque o maior problema da Reforma é uma de suas maiores virtudes: a liberdade. Ao tirar o poder de uma pessoa e lançá-lo sobre a Bíblia em si, a Reforma abriu a possibilidade de qualquer um examinar livremente a interpretação bíblica. Como é inevitável (e explico por quê a seguir), divergências surgiram. E, sem uma autoridade central a apelar, nada impediu que se criassem denominações diferentes.

Essa fragmentação era inevitável porque é uma consequência da liberdade em um mundo caído. O ensino bíblico afirma claramente que o pecado afetou o ser humano como um todo, inclusive nas áreas da razão, das emoções e dos desejos e vontades. Por esse motivo, a unidade espontânea de pensamento é inatingível neste mundo. Alie a isso a finitude dos seres humanos e você verá que é impossível que nós enxerguemos todos os lados de uma questão e vejamos tudo como Deus vê.

Mas essa fragmentação tão indesejada acaba sendo uma virtude celebrada na política. Os partidos políticos são como as diferentes denominações protestantes. Cada um deles possui (ou deveria possuir) um programa ideológico, com propostas concretas diferentes sobre como a Constituição deve ser interpretada e executada. E como a Constituição não é a Bíblia Sagrada, eles possuem visões diferentes até de como deveria ser o texto constitucional. Mas, embora sejam partidos diferentes, ainda são parte de um mesmo país. E essa pluralidade político-partidária tem evitado totalitarismos e corrigido erros por meio da alternância de poder.

E é aí que a liberdade trazida pela Reforma se transforma em cura. O que os católicos não entendem é que, embora existam muitas denominações, os protestantes se vêem como parte de uma única Igreja de Cristo. Por isso não digo "igrejas" protestantes, mas sim "denominações". E, assim como os partidos políticos podem ser classificados em grandes categorias, também as denominações, embora muitas, acabam seguindo um número bem menor de escolas protestantes de pensamento. Há esquerda e há direita, mas há calvinistas, luteranos, herdeiros do anglicanismo, batistas e pentecostais. Dificilmente alguma denominação estaria fora desse enquadramento geral.

Mais do que isso: as diferentes tradições protestantes se complementam. Por mais que eu, por exemplo, considere a tradição calvinista como sendo a mais fiel intérprete do texto bíblico, aprecio muito as contribuições que outras tradições trouxeram ao cristianismo. Este blog é uma pequena demonstração disso, pois embora sejamos cinco calvinistas, todos temos algumas afinidades com outras tradições que moldaram ou moldam a nossa fé até hoje.

E o Brasil?
Mas vamos parar de falar de 1517 e irmos a 2018. Hoje, às vésperas do segundo turno de eleições presidenciais, o país todo teme a volta do totalitarismo. Um grupo teme o advento de uma ditadura socialista, outro o de uma ditadura militar. E aqui eu convido os dois lados a encontrarem na Reforma e nas Escrituras os princípios que podem evitar esse perigo.

A Reforma é o reconhecimento de que o ser humano é pecador e que nenhum de nós pode ter poderes em excesso. Se trouxermos esse reconhecimento para a esfera civil, entenderemos que nenhum político, partido ou Estado pode ter um poder ilimitado. É preciso que tenhamos um documento, uma constituição para a qual possamos apelar, inclusive contra as autoridades constituídas, caso elas se corrompam.

Além do limite constitucional, é preciso que o poder seja compartilhado. Esse compartilhamento pode ser maior ou menor (congregacionais e presbiterianos que o digam), mas é necessário. O povo não apenas deve ser ouvido, mas também deve assumir a responsabilidade de aprovar leis e governar.

E, uma vez que a unidade perfeita só virá quando Cristo voltar, é preciso que convivamos com uma pluralidade de opiniões. Claro, é preciso que exista um consenso em torno de valores básicos e essenciais. Mas há amplo espaço para debates e discordâncias respeitosas em assuntos secundários. A liberdade sempre trará diferenças consigo. E, desde que o principal seja preservado, a liberdade não é uma inimiga da unidade que desejamos como Brasil.

Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro

23 de outubro de 2018

Aborto social

Ou: A insensibilidade como prova da imoralidade

Li nas mídias sociais que haveria um "arguto" argumento em favor da descriminalização do aborto desenvolvido num artigo de um grande jornal. Fui conferir. E tal argumento pode ser resumido na sua afirmação tese:
Meu argumento pragmático em defesa do direito da mulher de interromper a gravidez em seu estágio inicial é o seguinte: não há qualquer ritual social que indique a perda de uma vida humana quando uma gravidez é interrompida nesse estágio. (Um argumento pragmatista em defesa do direito de aborto, por Heloisa Pait, no Estadão, em 28/08/2018)
Este é um dos argumentos mais abjetos que já tive a oportunidade de ler/ouvir.

Em 2015, minha esposa sofreu um aborto espontâneo no estágio inicial da gravidez. É verdade que não houve qualquer "ritual social" a respeito. Mas houve luto familiar, que não deixou de ser compartilhado:


O luto…

“Você saberia meu nome se eu o visse no Paraíso?”

…não é sem…
“Além da porta há paz, eu estou certo, e eu sei que não haverá mais lágrimas no Paraíso!”
…ESPERANÇA!

27.05.2015 (trechos de Tears in Heaven, de Eric Clapton)
Uma vez compartilhado, houve condolências. Mas, não houvesse, não faria a menor diferença para nosso luto e o sofrimento da perda de um filho.

E aqui convém dizer que a falta de um túmulo e mesmo de um nome também não diminuem o luto neste tempo e a esperança que acalento de encontrar meu não nascido no porvir. Também não importa que mesmo entre os cristãos não se veja, socialmente, um discurso neste sentido.

Sim, este luto é um luto íntimo.

Em 2011, um casal amigo passou por uma gravidez difícil e acabou perdendo seu bebê. O marido, André Venâncio, escreveu, à época em seu blog, um dos relatos mais comoventes que já tive ocasião de ler a respeito da perda de um não nascido: Dezenove semanas de amor. Destaco o parágrafo final de seu relato:
Sofro porque meu filho partiu tão cedo, pela intimidade que não chegamos a ter, pelas muitas alegrias (e algumas dores de cabeça) que não terei mais, por tudo o que eu teria aprendido com ele, por todos os momentos com que sonhei e que jamais acontecerão. É como se nossa vida tivesse empobrecido de repente. É justo chorar por tudo isso. Mas não há nenhuma necessidade de chorar por meu bebê, como se ele fosse uma vítima inocente de um destino cruel, nem de queixar-me das injustiças deste mundo, no qual tantos perversos incorrigidos passam vidas longas e saudáveis. A verdade é o oposto exato disso tudo: meu filho se foi deste mundo mau sem que ninguém lhe tivesse feito mal algum. Deus foi maravilhosamente bom para ele. Sua morte foi preciosa aos olhos de meu Senhor, que o alcançou com sua graça salvadora. Todo pai deseja que seu filho seja bem-sucedido. Pois o meu foi, naquilo que pode haver de mais importante. E isso muito me alegra nesta hora de lágrimas.

Sim, este luto é um luto íntimo. Mas os cristãos sofremos e esperamos, mesmo em silêncio.

Até porque… que esperar da sociedade quanto às angústias mais profundas pelas quais passamos?

Em A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi, o personagem principal se ressentia da indiferença e da afetação dos médicos e dos familiares. Afetação e indiferença bem poderiam também fazer parte do delírio do doente, mas é certo que a tristeza convencional (social) é bastante insincera. E isto é um retrato fiel da realidade.

Ou, como bem disse Fabrício Tavares de Moraes:
No conto “Angústia”, Tchekhov narra a excruciante dor do cocheiro Yona Potapov, que havia perdido há pouco seu menino em razão de uma febre misteriosa. Tentando comunicar-se e falar de sua perda a todos os que entram em seu coche, depara-se com a completa indiferença dos tipos sociais. Por fim, encontra no seu cavalo o único ouvinte atento: “O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo… Yona anima-se e conta-lhe tudo…”.
Considerar a angústia humana pelas reações ou ritos sociais que se lhe seguem é próprio de uma alma imersa nas trevas mais estéreis.

A verdade é que nossas dores, especialmente as mais lancinantes, as mais profundas, as mais indelevelmente marcantes, raramente são compartilhadas por outros. São angústias pessoais, não sociais.

Que esta espécie de “aborto social” da dor individual, assassinada e esquecida pela multidão, seja um aspecto da realidade é irrelevante para a causa do aborto. A única coisa que o "aborto social" prova é a extensão da depravação humana.

A tese que faz depender a humanidade do feto à qualquer consciência social por meio de ritos é um desrespeito tanto ao feto quanto à própria angústia de inúmeros pais que sofrem a perda de um filho, quer participem isso socialmente quer pranteiem em silêncio. É uma monstruosidade.

Justificar, pois, a própria imoralidade pela insensibilidade social é cabal, total e perfeitamente abjeto. É acumular testemunho da própria podridão contra si.

É uma tristeza que o homem seja capaz de propor tais termos.