29 de dezembro de 2011

Como ter um 2012 melhor que 2011

Advertência contra o vale da Visão: O que está perturbando vocês agora, o que os levou a se refugiarem nos terraços, cidade cheia de agitação, cidade de tumulto e alvoroço? Na verdade, seus mortos não foram mortos à espada, nem morreram em combate. Todos os seus líderes fugiram juntos; foram capturados sem resistência. Todos vocês que foram encontrados e presos, ainda que tivessem fugido para bem longe.

Por isso eu disse: Afastem-se de mim; deixem-me chorar amargamente. Não tentem consolar-me pela destruição do meu povo. Pois o Soberano, o Senhor dos Exércitos enviou um dia de tumulto, pisoteamento e pavor ao vale da Visão; dia de derrubar muros e de gritar por socorro pelos montes.

Elão apanhou a aljava, e avança com seus carros e cavalos; Quir ostenta o escudo. Os vales mais férteis de Judá ficaram cheios de carros, e cavaleiros tomaram posição junto às portas das cidades; Judá ficou sem defesas. Naquele dia vocês olharam para as armas do palácio da Floresta e viram que a cidade de Davi tinha muitas brechas em seus muros. Vocês armazenaram água no açude inferior, contaram as casas de Jerusalém e derrubaram algumas para fortalecer os muros. Vocês construíram um reservatório entre os dois muros para a água do açude velho, mas não olharam para aquele que fez estas coisas, nem deram atenção àquele que há muito as planejou.

Naquele dia o Soberano, o Senhor dos Exércitos, os chamou para que chorassem e pranteassem, arrancassem os seus cabelos e usassem vestes de lamento. Mas, ao contrário, houve júbilo e alegria, abate de gado e matança de ovelhas, muita carne e muito vinho! E vocês diziam: "Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos".

O Senhor dos Exércitos revelou-me isso: "Até o dia de sua morte não haverá propiciação em favor desse pecado", diz o Soberano, o Senhor dos Exércitos.(Isaías 22:1-14)
Poucos anos foram tão difíceis como 2011. O mundo está no meio de uma crise econômica, talvez a mais séria desde a Grande Depressão de 1929. A alegria com a queda das ditaduras na Primavera Árabe deu lugar a inquietações sobre a natureza dos governos que mudarão a face do Oriente Médio. O Brasil sofreu com escândalos de corrupção, o assassinato da juíza Patrícia Acioly e até com a humilhação imposta pelo futebol do Barcelona. Sem falar nas inúmeras tragédias pessoais que se abateram na minha vida e na de várias pessoas ao meu redor. Para muitos, 2011 é um ano a ser esquecido.

Qual a melhor forma de esquecer um ano ruim? Que tal uma noite de festa, alegrias e prazeres para começar bem 2012? Bebidas, sexo, comida à vontade. Virar o ano beijando na boca ou entregando oferendas a orixás. Ou então guardando sementes de romãs na carteira. Esse é o receituário que os meios de comunicação passam sobre como ter um 2012 bom e esquecer um 2011 sofrível.

Mas, o que diz a Bíblia? O que fazer para que 2012 possa ser melhor do que 2011?

Reconheça a soberania de Deus
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que os anos bons e ruins não são fruto do acaso, mas sim da vontade de um Deus Soberano que controla todas as coisas. Tanto os dias de calma, alegria e prosperidade como os de tumulto, pisoteamento e pavor são determinados por Deus, e não pelo nosso esforço pessoal ou por coincidências sem objetivo.

Sim, é isso mesmo: os tempos e as épocas dependem diretamente de Deus e não de nós. As simpatias do dia 31 são ilusões, magias, tentativas humanas de controlar o destino. Usar roupa branca para ter paz ou amarela para enriquecer...comer peixe que nada pra frente e fugir de aves que ciscam pra trás...isso não passa de uma estratégia ridícula de tomar de Deus o controle de nossas vidas.

Mesmo o esforço racional é inútil. Quando Isaías viu Jerusalém cercada de exércitos, ele enxergou judeus fazendo o melhor que podiam para evitar a queda da cidade. Contaram brechas, derrubaram casas, reforçaram muros, juntaram águas...mas isso não adiantou. Os judeus fizeram tudo o que podiam, menos o que poderia tê-los salvo: "olhar para Aquele que fez estas coisas".

Troque o prazer pelo arrependimento
Mas Deus não reina arbitrariamente sobre o mundo. Ele tem propósitos em mandar épocas boas e ruins. E, quando tudo é difícil, quando nossos pecados nos levam a uma situação de dor e desamparo, o convite que Ele nos faz é ao arrependimento.

Nós pensamos que a melhor atitude que podemos ter em relação ao sofrimento é fugir dele. Fazemos terapia para que as feridas não tragam mais dor. Bebemos e nos drogamos para anestesiar a alma. Beijamos qualquer boca para esquecer o amor que se foi. O prazer de "comer e beber" é o antídoto que buscamos, já que "amanhã, morreremos".

Na verdade, quando agimos assim, não somos sábios. O que fazemos é aumentar ainda mais a nossa culpa diante de Deus. Quando fracassamos, quando erramos, quando forças maiores do que nós nos esmagam, Deus quer que olhemos para cima. O objetivo d'Ele é que paremos de olhar para o lado (para as fugas) ou para baixo (olhando a nossa força) e voltemos os nossos olhos para Ele. São épocas de choro, de sentir a dor de nossos pecados, de despirmos as vestes de festa e vestirmos as roupas de luto. É tempo de confessar pecados e considerar o Senhor que fez todas as coisas.

Não persista no erro
Deus não nos manda ao "inferno" para "abraçarmos o capeta", como Israel fez. Na verdade, quando estamos lá, é em amor que Ele estende seu braço, para que possamos abraçá-Lo, por meio de Jesus Cristo.

Não sei o que você pensa em fazer na virada do ano. Mas eu espero, em Cristo, que nós não aumentemos o tamanho dos nossos erros, até que nossa maldade não possa mais ser perdoada. A "virada" que conta para Deus não é a do calendário, mas sim aquela que realizamos em nossa vida, quando reconhecemos que Ele é Soberano e trocamos o prazer do mundo pelo arrependimento santo. Eis o segredo para escaparmos do juízo de Deus.

Se agirmos assim, ainda que 2012 tenha mais tristezas que 2011, venceremos, porque o Senhor ouvirá o nosso choro e nos salvará quando executar a Sua santa sentença.

Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro

26 de dezembro de 2011

Em tudo dai graças


“Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre” Sl 136:1
Ao se aproximar do final do ano, é oportuno falar sobre dar graças a Deus. Não que este seja o momento para isso, mas porque quase sempre essa época enseja um balanço de nossas vidas nos últimos meses. E isso deve nos levar a agradecer a Deus por tudo o que tem sido em nós e que tem feito por nós.

O salmista diz “rendei graças”. É um imperativo, uma ordem. Sei que humanistas de plantão logo dirão gratidão é sincera somente se for espontânea. Controvérsia à parte, o fato é que a ingratidão revela uma natureza pecaminosa e rebelde. “Porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Rm 1:21). E na medida que o tempo passa, os homens vão se tornando cada vez menos agradecidos, pois “nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes” (2Tm 3:1-2).

Do cristão espera-se que seja agradecido, pois tem um estilo de vida baseado na dependência divina. “Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças” (Fp 4:6). Sendo as ações de graças incorporadas ao seu modo de vida, o crente não é agradecido ocasionalmente, mas em todo tempo, lugar ou situação, pois reconhece como verdadeiro o mandamento “em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco” (1Ts 5:18). E o faz louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração” (Cl 3:16).

O salmista especifica “rendei graças ao Senhor”. A Bíblia é um livro de ações de graças, pois registra pelo menos 175 agradecimentos sendo feitos. Desses, apenas duas vezes é para pessoas, a absoluta maioria Deus é o objeto das ações de graça. Não se trata, pois, de apenas de dizer “dou graças” ou “muito obrigado”, e mas enfatizar que se dá graças a Deus. Não é mera atitude de gratidão ou cortesia, mas de reconhecimento de quem Ele é e de que governa todas as coisas pelo Seu poder.

Devemos dar graças “porque Ele é bom”. E neste ponto devemos nos guiar mais pelo que a Bíblia diz do que pela avaliação que fazemos do que nos acontece. A Bíblia repete 23 vezes que Deus é bom, e isto deveria por fim a qualquer dúvida quanto a isso. Mesmo assim, a Bíblia nos convida dizendo “Oh! Provai e vede que o SENHOR é bom; bem-aventurado o homem que nele se refugia” (Sl 34:8). Porém, mesmo Deus sendo bom, coisas ruins podem acontecer, e acontecem, com os que são objetos de Sua bondade. E não devemos duvidar, em meio ao sofrimento, da bondade do Senhor. Pois em meio a pior das adversidades, o Pai está controlando todas as coisas em nosso favor, tendo a eternidade como horizonte. “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8:28) e por isso sempre rendemos graças ao Senhor, que é bom, sempre.

Devemos dar graças porque “a sua misericórdia dura para sempre”. Deus não apenas em bom em si, mas é bom para conosco. E misericórdia é Sua bondade manifesta a nós enquanto indignos de qualquer favor. Creio que a misericórdia é mencionada aqui porque muitas vezes pensamos que Deus nos abandonará por causa de nossas falhas. Pensamos Deus é bom enquanto formos bons. Mas a misericórdia é amor dirigido a quem não tem mérito algum. E para acentuar isso de forma a não deixar dúvida, o salmista repete a sua misericórdia dura para sempre” 26 vezes neste salmo!

Misericórdia é especialmente aplicável em referência ao nosso destino eterno. Ao ser eterna, a misericórdia do Senhor nos é dispensada da eternidade passada à eternidade futura, incluindo aí nossa história na terra. Podemos e devemos ser sempre gratos ao Senhor, pois mesmo que tribulações intensas nos sobrevenham, seremos guardados no amor de Deus para a eternidade, pois Sua misericórdia dura para sempre. Sejamos agradecidos todos os dias, tornemos pública nossa gratidão a Deus. “Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre” (Sl 136:1).

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

12 de dezembro de 2011

Agostinho e a resposta (in)adequada


Certa vez alguém, baseando-se no exemplo do famoso pregador batista Charles Spurgeon, perguntou a um pastor se a prática do tabagismo lhe era lícita também; e a resposta que ele obteve foi: “somente se você conseguir pregar como ele pregava”[1]. Não sei se com isso o pastor quis dizer “somente se você for tão maduro quanto ele”, mas, particularmente, fiquei encabulado com aquilo. Não pela questão do tabagismo em si, mas pela resposta que aquele jovem recebeu: apenas uma sacada humorística, sem argumentação propriamente dita, que arrancou risos de muitas pessoas que sequer pararam para pensar do que estavam rindo, tomando aquilo por um argumento válido. É certo que o jovem que levantou tal pergunta já dava indícios de que não queria aprender nada, mas somente tumultuar aquele ambiente de discussão – se blog ou rede social já não lembro mais – com pífias arapucas teológicas. Seu histórico de comentários ali deixava transparecer essa tendência, e certamente o pastor levou isso em consideração ao respondê-lo (na realidade, uma não-resposta) daquela maneira. Contudo, apesar de toda a astúcia por trás da pergunta daquele jovem e o direito do pastor à não-resposta, a questão ali levantada não merecia uma atenção, digamos, mais séria, visto que toca num tema relativamente sensível e controverso dos nossos dias?

Passado o tempo, deixei de lado aquelas inquietações, mas somente até me encontrar com algo da pena do grande filósofo e teólogo cristão Agostinho (354 d.C. – 430 d.C), recentemente. Lendo as suas famosas Confissões, me deparei com uma colocação bastante interessante do bispo de Hipona sobre essa questão de como devemos tratar os problemas que nos são levantados (ainda que estes sejam feitos por motivos notadamente escusos). A única diferença é que a “questão” em Agostinho era, digamos, um pouco mais complexa do que a questão da legitimidade do tabagismo entre os crentes. A questão era: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?”. Não lembro ao certo qual dos pais apostólicos (se é que se tratava mesmo de algum deles) respondeu a essa pergunta dizendo que “Deus estava preparando o inferno para os curiosos”, mas, quem quer que tenha sido, Agostinho efetivamente não aprovou sua solução. Eis a resposta que ele deu:

Não lhe responderei nos mesmos termos com que alguém, segundo se narra, respondeu, eludindo, com graça, a dificuldade do problema: “Preparava”, disse, “a Geena [inferno] para aqueles que perscrutam estes profundos mistérios!” Uma coisa é ver a solução do problema e outra é rir-se dela. Não darei essa resposta. Gosto mais de responder: não sei – quando de fato não sei – do que apresentar aquela solução, dando motivo a que se escarneça do que propôs a dificuldade e se louve aquele que respondeu coisas falsas[2].

Não posso deixar de destacar aqui o tom pastoral na fala do bispo de Hipona, pelo qual fui particularmente tocado. Fazer uso do humor apenas para fugir da dificuldade dos problemas que nos são apresentados é, no mínimo, de uma desonestidade intelectual gritante e gratuita. Por este motivo é que Agostinho sugere que o melhor que podemos fazer quando não dispomos de uma resposta imediata para uma determinada questão é admitirmos prontamente a nossa ignorância (ou, na melhor das hipóteses, ponderar melhor sobre o assunto para responder depois), em vez de querer jogar o ônus da prova para o nosso inquiridor com anedotas tolas (as quais frequentemente se mostram falsas no final), que em nada ajudam a resolver o problema. “Gosto mais de responder: não sei – quando de fato não sei – do que apresentar aquela solução”, disse aquele notável servo de Deus. Longe de ser apenas um antídoto contra as especulações racionalistas com as quais somos frequentemente assaltados, e que ultrapassam e ignoram a revelação escriturística, a proposição de Agostinho tem um motivo ainda mais nobre, a saber, evitar o escárnio de quem propôs a dificuldade e o louvor a quem respondeu coisas falsas, promovendo, assim, certa medida de justiça.

Com isto, não estou, evidentemente, dizendo que não há uma resposta bíblica para a questão das atividades de Deus antes de Gênesis 1.1, ou para a questão do tabagismo entre os crentes. Há, sim, respostas bíblicas para ambas as questões. Aliás, o próprio Agostinho arrisca uma resposta (mais filosófica do que propriamente bíblica, é verdade) à questão que lhe foi suscitada. No mesmo parágrafo, ele diz que

Se pelo nome de “céu e terra” se compreendem todas as criaturas, não temo afirmar que antes de criardes o céu e a terra não fazíeis coisa alguma. Pois se tivésseis feito alguma coisa, que poderia ser senão criatura vossa?

Não devemos pensar que aqui Agostinho esteja sugerindo que Deus se encontrava num estado de absoluta inatividade em Si mesmo, e sim que Ele não estava criando efetivamente nada “nos céus e sobre a terra, as [coisas] visíveis e as invisíveis” (Cl 1.16) antes de efetivamente criar algo pela palavra do Seu poder. Até porque Deus não seria menos Deus se resolvesse apenas se ocupar com a Sua própria glória e desfrutar dela no contexto da Santíssima Trindade apenas. Quanto à questão do tabagismo entre crentes, bastaria ao pastor supracitado dizer naquela oportunidade que tudo o que é feito com interesses escusos (uma sutil forma de justiça própria – cf. Mt 6.1-18), sem o exercício do domínio próprio e principalmente não visando à glória de Deus nem ao bem do próximo é idolatria (cf. 1 Co 10.23-33) – o que evitaria, assim, que uma questão séria fosse encerrada da forma como foi - desdenhosa. 

Isso significa que certa dose de sarcasmo ou até mesmo desdém não é válida numa discussão? Não devemos nem precisamos escorregar para esse extremo. Aliás, o próprio Jesus se utilizou desses artifícios em alguns de seus diálogos, especialmente naqueles em que seus oponentes queriam a todo custo pegá-lo em alguma contradição. Em alguns desses casos, um recurso do qual Jesus lançou mão foi o de fazer uma pergunta sobre a pergunta feita a ele. Foi assim, por exemplo, no seu debate com os sacerdotes e anciãos do povo, em Mateus 21.23-27[3], e com o intérprete da lei, em Lucas 10.25-35, ocasiões nas quais Jesus inteligentemente encurralou seus opositores, deixando-os sem alternativa de escape (pois sabia que eles não seriam honestos o suficiente para admitirem que Jesus era tudo quanto dizia ser). Contudo, Jesus tinha um propósito bastante definido com isso: levar o debate a um nível mais profundo do que o comumente entendido na época, corrigindo os erros hermenêuticos e doutrinários e, por tabela, tratando de pecados específicos que estavam alojados nos corações daqueles que presumiam poder submetê-lo ao ridículo.

É óbvio que nenhum de nós é chamado a tratar pecados de ninguém, pois isso é algo que compete somente a Deus, que é quem, naquele Dia, há de "decriptografar" os nossos segredos e intenções mais escondidos (cf. Rm 2.16, onde a palavra para segredo é kriptos). Mas somos chamados, sim, ao esforço para que o diálogo com as pessoas chegue a um nível onde a Verdade seja efetivamente apresentada, e não mascarada com anedotas e subterfúgios afins. Que os porcos não merecem nossas pérolas eu não tenho a menor dúvida. Mas é bom termos cuidado com as bijuterias. Quem lê, entenda.
  
Soli Deo Gloria!


[1] Para quem não sabe, Spurgeon apreciava charutos.
[2] AGOSTINHO, Santo. Confissões (Livro XI.14). Coleção Os Pensadores. Editora Nova Cultural, 2004, p. 320.
[3] Os sacerdotes e anciãos do povo, na realidade, tinham a resposta (tendenciosa, mas tinham), mas temeram expressá-la por pura desonestidade intelectual. Jesus, então, simplesmente se reserva ao direito da não-resposta (ainda que seu silêncio tenha dito tudo).

8 de dezembro de 2011

Jovens espirituais


Sentei com alguns jovens no último fim de semana para conversar sobre o tema “atuação jovem: juventude e espiritualidade". Sou crítico das noções contemporâneas de “juventude”, e de “espiritualidade”, como é possível perceber de posts anteriormente publicados aqui.

A idéia atual de juventude é excêntrica. “O mundo é dos jovens”, dizem. Verdade? De fato, o mercado se voltou para “a juventude” como o público por excelência. De algum modo são os jovens que determinam a pauta cultural – cinema, televisão, música, roupas, e expressões religiosas são remodeladas para alcançar essa faixa etária. Os “crentes” não ficam de fora – o formato de muitas, se não da maioria, das igrejas evangélicas é voltado para agradar ao público jovem. Músicas "pulsantes”, luz e efeitos visuais, estilo de pregação, e tudo o mais são dotados daquele estilo afetado de quem deseja ser ou parecer jovem a qualquer custo. Já falei sobre como é ridículo ver pessoas de 50 anos ou mais tentando se portar como se estivessem na casa dos 20, ou afirmando histericamente que possuem “espírito jovem”.

Presumimos que a cultura esteja certa, e entramos de cabeça no movimento sem questionar os seus pressupostos e resultados. Para não me deter muito no ponto, simplesmente posso questionar a idéia da centralidade dos jovens em uma comunidade a partir do que as Escrituras ensinam sobre a ordem natural de que os mais velhos têm primazia e ensinam os jovens. Não importa se o número de jovens é dez ou vinte vezes maior do que o de idosos, estes ainda precisam se sentar aos pés deles para aprender. Não quero dar a falsa impressão de que todos os idosos são sábios e de que não há espaço algum para os jovens na cultura e na igreja. Há muito espaço. Mas o clima cultural exige reflexão e equilíbrio. O outro ponto é que o resultado de uma cultura centrada nos jovens tende a privilegiar a imaturidade e seus desdobramentos, apenas porque vêm embalados no pacote “cool” da juventude. Somos tolos, mas temos estilo.

O outro tema problemático é a noção de espiritualidade. O termo é tão abrangente que se faz comum fora da igreja cristã. Mais e mais as celebridades falam de sua “espiritualidade” - normalmente uma mistura da prática de ioga, com algum cristal na mesa de centro da sala, e talvez o uso de roupas brancas a cada virada de ano. Os mais intensos se dedicam às práticas neopagãs do esoterismo, ou adentram o espiritismo. E por último vêm os frequentadores esporádicos de missas e cultos. São espirituais, mesmo que não saibam definir propriamente o termo.

O problema cultural é que o termo espiritualidade hoje se refere a um tipo de expressão subjetiva que forneça um sentimento de elevação do espírito, independentemente de um conteúdo de fé. Na cultura contemporânea, ser espiritual é sentir-se bem, sem credos ou doutrinas.

A sabedoria jovem
Aqui os evangélicos entram. O “mantra” cristão dos nossos dias é “ser espiritual sem ser religioso”. Por religioso, pretende-se falar da religião institucional e suas formas – credos, doutrinas, liturgias, orações, hierarquias, etc. Os crentes de nossos dias querem reivindicar o direito de sentir elevação espiritual sem ter de se submeter a qualquer forma. Ser espiritual é algo interno, é sentir e expressar amor, é viver bem com os outros, e outras expressões tão abrangentes quanto vazias. Quanto mais lacônico melhor. A espiritualidade contemporânea é amiga da ambiguidade e da vaguidão.

Os “espirituais” do nosso tempo são inimigos do que é formal – da religião institucional. Aqui jaz mais um problema. Jesus deixou uma igreja, que se reunia regularmente nas casas e no templo. Uma igreja que possuía hierarquia – apóstolos, evangelistas, pastores-mestres. Uma igreja que tinha orações formais, como a do Pai nosso. Uma comunidade que repetia continuamente os sacramentos do batismo e da ceia. Um corpo de pessoas que possuíam liturgia definida e ordenada pelos apóstolos, composta de orações, confissão de pecados, leitura da Bíblia, pregação, e sacramentos. Uma igreja que perseverava na doutrina dos apóstolos.

Pra quê estudar a Bíblia se eu posso
apenas viver bem com o vizinho?
Como é possível espiritualidade sem conteúdos de fé? Alguém pode sentir elevação espiritual ouvindo música instrumental, ou mesmo ter uma experiência estética com a beleza de uma canção que, em sua essência, nega a verdade de Deus. Tal elevação espiritual representa espiritualidade saudável? Viver bem com os outros, sem expressar fidelidade à Palavra de Deus é ser espiritual? Rejeitar a igreja de Deus é ser espiritual?

Finalmente, o outro lado da moeda é uma espiritualidade provida de formas espetaculares. Espiritualidade, especialmente nas comunidades carismáticas, pentecostais e neopentecostais é medida em termos de “ação poderosa do Espírito Santo” por meio de dons: línguas, visões, sonhos, profecias, milagres, curas, expulsões de demônios, e fenômenos semelhantes.

Nesse aspecto, a espiritualidade é retirada do contexto comum da vida, e colocada em um patamar de excentricidade, por meio da qual só há elevação espiritual em momentos pontuais de fenômenos impressionantes. São deixados de lado os elementos comuns e ordinários da vida, de modo que a busca por espiritualidade se transforma na busca pela capacidade de realizar tais feitos, não importa o custo.

Novamente, creio que o ensino bíblico se distancia de tal perspectiva. O crente espiritual não é o que mais realiza fenômenos espetaculares, mas o que vive no dia a dia submetido aos conteúdos da fé cristã – a Palavra de Deus. É aquele que simplesmente cresce aos poucos em suas lutas com pensamentos impuros e a pornografia. Ou a mulher que vence gradualmente suas lutas contra os impulsos de fofoca e insubmissão. É o pastor que cresce em humildade diante da igreja, e não exerce seu ministério como forma de manipulação, mas de serviço. São os maridos que crescem em compreender a aliança feita com sua esposa sob o Senhor, e se comprometem a honrar a aliança e amá-la sacrificialmente. São os desconhecidos que crescem em falar a verdade em amor, em amar a Bíblia e praticá-la, em educar seus filhos no temor do Senhor, em trabalhar diligente e honestamente, tudo para a glória de Deus.

Deste modo, percebemos que uma conversa sobre juventude e espiritualidade hoje precisa passar por uma compreensão da cultura quanto a estes itens, para desafiar os pressupostos do nosso tempo, dentro e fora da igreja, a partir da Bíblia. Precisa passar, também, pela compreensão da obra completa de Jesus na cruz e os seus desdobramentos para a vida do cristão hoje. Só é espiritual quem crê em Jesus – o conteúdo da fé cristã. Toda a nossa “vida espiritual” brota da cruz. Nosso crescimento não é forjado por nosso esforço, mas pela graça de Deus. Finalmente, compreendendo a cultura e a obra completa de Jesus, existe uma resposta existencial necessária – eu me aplicarei a viver conforme os mandamentos do Senhor, não por minhas forças, mas pela fé em Jesus, e pela graça dele. Eu me comprometo a, assim como entreguei a minha vida e fui tomado pelo meu Senhor, manifestar concretamente o senhorio de Jesus sobre todas as áreas de minha vida. Enfrentarei dificuldades nesta caminhada, e sei que, por causa do meu pecado, não conseguirei fazer isso plenamente neste tempo, mas sigo com esperança no evangelho, confiando nas promessas de Deus, e na graça que me é dada.

2 de dezembro de 2011

Paulo orando pelos mortos?


- Textinho que escrevi hoje para o boletim semanal de nossa congregação -
 ***
16 Conceda o Senhor misericórdia à casa de Onesíforo, porque, muitas vezes, me deu ânimo e nunca se envergonhou das minhas algemas; 17 antes, tendo ele chegado a Roma, me procurou solicitamente até me encontrar.   18 O Senhor lhe conceda, naquele Dia, achar misericórdia da parte do Senhor. E tu sabes, melhor do que eu, quantos serviços me prestou ele em Éfeso.

2 Timóteo 1.16-18.


Recentemente ouvi de uma colega, ainda indecisa entre o catolicismo e o evangelho (sim, pois catolicismo e evangelho são coisas totalmente distintas uma da outra), que em 2 Timóteo 1.18 Paulo fez uma oração por Onesíforo, o qual, segundo a leitura dela (e dos católicos romanos em geral), já havia morrido. Muito embora a discussão tenha sido no seu mural do Facebook, ela mesma não apareceu lá para comentar nada. Mas houve quem o fizesse. Deixando de lado essas questiúnculas, vamos ao ponto.

Basicamente, são dois os argumentos usados pelos católicos para defender que Onesíforo estava morto. O primeiro é a referência que Paulo fez ao dia do julgamento final (“aquele Dia”). Para os romanistas esta seria uma prova irrefutável de que o amigo de Paulo já se encontrava em uma situação de além-túmulo. Contudo, o fato de Paulo ter feito menção ao dia do Juízo Final nesse contexto não prova o ponto de vista católico, visto que, no versículo 12, Paulo também faz menção a esse Dia. Se realmente é verdade que Onesíforo estava morto somente porque Paulo fez referência ao Juízo Final, penso que os católicos, por uma questão de coerência, deveriam se prontificar a crer que a presente carta a Timóteo foi psicografada.

O segundo argumento que eles apresentam é o de que Onesíforo já estava morto porque Paulo saúda a “a casa de Onesíforo” (2 Tm 4.19), e não o próprio Onesíforo. Com isso, alguns afirmam que, se Onesíforo estivesse vivo, Paulo o saudaria, em vez de saudar sua família. Esse argumento é logo dissolvido se levarmos em consideração que Onesíforo ainda estava em Roma (ou mesmo a caminho de Éfeso), ao passo que sua família estava em Éfeso, cidade onde Timóteo estava pastoreando na ocasião. Além do mais, a “casa de Onesíforo” não deveria incluir ele próprio?

Que Onesíforo não estava morto no momento em que Paulo escreveu a sua segunda carta a Timóteo eu não tenho a menor dúvida. A Escritura é clara quando afirma que “aos homens está ordenado morrer uma só vez, vindo depois disso o juízo” (Hb 9.27), e o apóstolo jamais contradiria algum princípio dela. Portanto, nenhuma oração é capaz de mudar o destino de quem já partiu desta vida. 

Soli Deo Gloria!


24 de novembro de 2011

Beleza, unidade e sentido


Em 1979, Francis Schaeffer e Colin Duriez trocaram correspondências a respeito da doença do fundador de L'Abri. Em 1984 ele faleceria, como resultado do câncer. Mas na carta escrita por Schaeffer naquele período havia uma belíssima declaração:

Como é bom ter uma teologia na qual não há tensão entre usar a melhor medicina possível e olhar diretamente para o Senhor, buscando a resposta das orações. (Duriez, Francis Schaeffer: an authentic life, p.196 - kindle edition)

Isso poderia abrir uma interessante discussão sobre medicina, fé e oração, mas pretendo apontar a direção que, eu creio, Schaeffer pretendia enfatizar. No pensamento cristão consistente, não há dicotomias ou uma separação entre o campo da "graça" e o da "natureza" - uma distinção entre as coisas comuns da vida e as coisas "espirituais".

Os desdobramentos deste ponto são imensos. Schaeffer demonstrou como ele poderia buscar o melhor da medicina e se voltar a Deus em oração simultaneamente, sem crise de que um "devorasse" o outro, por não haver contradição. Do mesmo modo um cristão pode pedir a Deus pela provisão, e trabalhar duramente, compreendendo a unidade entre as duas coisas. Alguém pode (e deve!) ler a Bíblia sem considerar este um momento distante do resto da vida; pelo contrário, como o salmista, toda a experiência da vida no dia a dia passa a ser um exercício de interpretação e aplicação bíblica.

Luiz Rosa no palco. O centro histórico em flor.
Há, no entanto, ainda um ponto específico que eu gostaria de ressaltar. Refiro-me ao grau de enriquecimento da vida em termos de significado e beleza quando esta unidade é percebida e experimentada. Quero ilustrar com a minha experiência da última semana.

Foi realizado em São Luís o 3º festival internacional de contrabaixo, com grandes nomes do instrumento, como o maranhense Mauro Sérgio, o divulgador da coisa no Brasil inteiro - Celso Pixinga, e os norte-americanos Jim e Grant Stinnett (Jim é professor da Berklee - conceituada faculdade de música em Boston), Todd Johnson, e Shane Alessio, além do baterista e jazzista Dom Moio.

Se você parte de uma visão fragmentada da realidade, o festival poderia despertar algumas posturas:

1. Não é algo "espiritual", portanto não irei
2. Não é algo "espiritual", mas é algo "comum", então irei e aproveitarei como algo separado do reino da graça
3. É "espiritual"! Deus está ali falando e se revelando a partir da cultura - o abalo existencial provocado pela música é a Revelação de Deus

As duas primeiras colocam o show no reino da 'natureza', com respostas diferentes. Por ser algo "comum" (não-espiritual), a primeira resposta considera algo desprezível, ou age com indiferença. Há muitos que vivem de modo empobrecido, por não desenvolverem interesse pela criação de Deus em sua variedade. A beleza das artes, a criatividade humana, as profissões e vocações, são todas diminuídas em sua importância pela preferência das coisas "espirituais" - talvez oração e leitura da Bíblia. O cristão nessa perspectiva tem pouca liberdade de vida. É escravo da "vida espiritual", e assim vive sem prazer durante toda a semana, até que chegue o domingo, ou então cria atividades eclesiásticas todos os dias para justificar a sua existência. Essas são as pessoas conhecidas como fanáticos, ou limitados em suas conversas (monotemáticas). Pessoas que, mesmo valorizando as disciplinas espirituais, definiram o escopo de aplicação das Escrituras e limitaram a experiência de adoração na vida. No esforço de tanto glorificar ao Senhor, o fazem menos do que deveriam.

A segunda resposta tenta encontrar o prazer através do "salto". O festival de baixo continua sendo não-espiritual, mas será desfrutado dentro do seu campo secular. Afinal, as coisas de Deus são aproveitadas aos domingos, e as coisas seculares regulam o resto da vida. Esse tipo de cristão pode ser mais versado e articulado no resto das expressões culturais; pode valorizar as artes e as profissões; pode ter a ciência e a filosofia em grande estima, mas tudo às custas da exclusão da Palavra de Deus. Ele busca o valor de cada elemento separado de Deus, e assim também empobrece a sua experiência de vida. Tem um universo de particulares desconectados e sem sentido último. O festival de baixo não tem propósito último e não está ligado ao todo da vida, é apenas mais uma oportunidade solta de satisfação.

O terceiro a responder se aproxima de uma perspectiva Tillichiana (de Paul Tillich e sua teologia da cultura). Ele ainda pensa de modo fragmentado, mas agora eleva a arte ao patamar de cima - o reino do sagrado, ou da graça. Na medida em que as artes o tocam profundamente, e que o seu espírito é alimentado pela beleza dos sons e cores, ele atribui a isto o mesmo peso da Revelação Divina, considerando tal "abalo existencial" como Palavra de Deus. O resultado disso é uma grande abertura cultural, mas a perda da autoridade bíblica, que foi nivelada a qualquer experiência significante. A voz de Deus nas Escrituras é abafada e perdida em meio à adoração das artes e expressões culturais. O cristão passa a ser alguém confuso, direcionado pela estética e sem conteúdos reais de fé.

Jim Stinnett, Shane Alessio, Dom Moio e Todd Johnson
Contra tudo isso está a perspectiva integrada do cristianismo consistente. Um show é um show: Embora haja abalos existenciais e a beleza de tudo aquilo seja tocante, não é a Palavra de Deus. Mas não é por que há distinção entre a beleza do evento e a Revelação, que o festival não tem valor. Pelo contrário, em uma visão unificada da vida, o show tem verdadeiro valor e significado, porque as artes e expressões culturais são instrumentos da graça comum, e apontam para uma beleza e riqueza eternas, encontradas unicamente em Deus.

Eu experimentei um pouco disso. Pude ouvir um grande som, e alimentar não apenas os ouvidos, mas os olhos com a paisagem do centro histórico de São Luís, em uma experiência de beleza tocante. A presença de amigos e de minha esposa tornaram a coisa ainda mais prazerosa e significante, e lá eu via e sentia gratidão a Deus: a vida em sua plenitude é experimentada quando Jesus é o ponto de referência e unificação. Tudo fazia sentido.

14 de novembro de 2011

Seria Deus justo exigindo do homem o que ele não pode cumprir?


O título deste post é literalmente uma pergunta dirigida a mim por um irmão, em outro local de debate. O que segue é minha resposta, editada apenas para preservar a identidade do referido irmão:

Devemos cuidar para que nossas crenças derivem da Palavra de Deus e não de pressupostos humanos. No caso em apreço, o irmão está adotando o pressuposto "dever implica poder". O que devemos nos perguntar é: este é um princípio bíblico ou é um argumento filosófico humanista que incorporamos acriticamente à nossa visão de mundo?
 
A primeira coisa que eu pergunto é: onde a Bíblia ensina que dever implica poder? O irmão citou um versículo da primeira carta de Paulo aos Coríntios, o qual examinarei em seguida com mais cuidado, mas uma leitura simples com essa pergunta em mente mostra que nesta passagem a Deus não ensina este princípio. 
 
A segunda coisa que podemos questionar é: em que se baseia a nossa obrigação diante de Deus, em nossa capacidade ou na autoridade do Senhor. É claro que Deus como soberano absoluto pode exigir qualquer coisa de Seus súditos, por exemplo, Deus poderia exigir de nós, sob pena de danação no inferno, que saltássemos da Terra à Lua três vezes por mês. E quem de nós teria o direito de questioná-lo quanto a isso? Claro que em sua linha de pensamento o irmão dirá que isto faria de Deus um déspota, sádico e cruel, além de outros adjetivos que homens deveriam temer de atribuir a Deus.
 
Com todo respeito, considero uma leviandade perigosa dizer "se Deus faz isso, então Ele é mau". Ainda mais quando, no assunto em que estamos tratando, Deus exige do homem coisas que este é incapaz de fazer. Isso mesmo, Deus exige do homem aquilo que este não tem condições de cumprir em sua condição de caído. 
 
Por exemplo, o cumprimento da Lei. Quando Deus exigiu dos judeus (menciono os judeus para não entrar na questão da aplicabilidade da Lei) que guardassem a sua lei, eles eram capazes de guardá-la? Houve, em toda a história da humanidade uma única só pessoa, além de Jesus, que guardou a lei perfeitamente? Me diga, alguém conseguiria guardar a Lei de Deus de forma perfeita? No entanto, é isto que Deus exige. 
 
Sabemos que Deus exige do homem que não peque. A Bíblia diz "não pequeis". Reiteradas vezes lemos "sede santos". O mandamentos para sermos justos repete-se em inúmeros lugares na Bíblia. Não resta dúvida que que não pecar, mas ser justo e santo como o próprio Deus é um dever de todo homem diante de dEle. Mas me diga, quem é a pessoa que tem o poder de cumprir com esse dever? Por favor, diga-me onde eu encontro esta pessoa para que eu vá e o adore! 
 
Talvez o irmão queira limitar o assunto à questão da salvação. Deus disse "voltem para mim" e isto é sem sombra de dúvida um dever. Segundo sua linha de pensamento, para que Deus não seja injusto, todos os homens deveriam ter poder para isso. Mas Jesus, contrariando totalmente essa sua teoria diz "ninguém pode vir a mim, se Deus não o trouxer". Note que Jesus disse "ninguém", observe que Ele disse "ninguém pode" e registre que Ele disse "se Deus não o trouxer". Como disse Paulo, o mesmo que escreveu o versículo que você rasgaria de sua Bíblia caso Deus exigisse algo que o homem não fosse capaz de cumprir: "a nossa capacidade vem de Deus"
 
Eu poderia escrever e fundamentar mais a minha posição. Mas creio que isto basta, pois se fosse dar exemplos de coisas que Deus exige que o homem é incapaz de cumprir por si mesmo, a lista cresceria grandemente.
 
Soli Deo Gloria 

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

10 de novembro de 2011

Quando Deus aprova o aborto

Talvez o que eu tenho a dizer aqui neste post seja chocante para muitos, especialmente para quem me conhece como um cristão conservador em matéria de política, ética e teologia. Mas, lendo o excelente livro Purificando o Coração da Idolatria Sexual, do Dr. John D. Street (Editora Nutra, 2009), não tive como escapar da dura realidade dessa constatação. Sim, Deus se agrada de um aborto que foi fruto de uma sexualidade pervertida!

Antes que alguém me tenha por herege, gostaria de justificar o meu ponto com as pertinentes observações do Dr. Street ao texto de Tiago 1.14,15:
Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte.
Almeida Revista e Atualizada.
Na realidade, este post é mais um endosso ao livro do Dr. Street, enquanto termino de lê-lo (e, também, um ensaio para uma provável resenha). A certa altura do livro ele propõe um “paradigma de quatro estágios” para a escravidão sexual, o qual foi apropriadamente inferido da passagem bíblica supracitada (na realidade, o tal paradigma serve para qualquer pecado). Portanto, lido o texto de Tiago e desfeita a impressão de heresia que deixei transparecer no início (assim espero), prossigamos para os apontamentos do Dr. Street.


Primeiro estágio: alguns desejos depravados internos são estimulados pelo pensamento ou pela experiência (p. 53).
Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz (Tg 1.14).
Um dos grandes diferenciais do livro do Dr. Street talvez seja a sua abordagem essencialmente bíblica – não necessariamente pelas citações bíblicas, mas sobretudo por uma questão de cosmovisão –, diferente do que vemos em boa parte dos livros cristãos sobre o assunto. O autor não busca respostas nas teorias de comportamento seculares, mas nas proposições das Escrituras. Fatores externos como revistas e filmes pornográficos não são os nossos únicos inimigos, visto que eles “necessitam de um aliado dentro do homem para serem eficazes”. Portanto, se o nosso foco está apenas nessas questões (externas), estamos apenas dando a oportunidade para que o inimigo se entranhe ainda mais nos recônditos do nosso coração, visto que é lá que ele está alojado. Para que a cobiça – esse primeiro estágio de uma completa ruína –, então, seja vencida é preciso “identificar o inimigo real e conhecer o campo de batalha” (p. 54). Ou seja: que antes de “amarrar” Satanás possamos atentar para o mal que habita em nós! Chamemos esse primeiro estágio – a cobiça atiçada – de flerte e um convite para a cama.


Segundo estágio: A cobiça concebe num coração fértil quando ela ganha o consentimento da vontade (p. 56).
Então, a cobiça, depois de haver concebido … (Tg 1.15a).
É bom que fique bem claro a essa altura que o ser tentado, por si só, não é pecado. O flerte pode ser interrompido desviando-se o olhar (pois os olhos são “a lâmpada do corpo” – Mt 6.22), e o convite para a cama pode ser perfeitamente rejeitado. Contudo, quando não se é forte o suficiente para adotar tal procedimento, a cobiça encontra terreno fértil no coração, nele concebendo.  O autor do livro observa que “a terminologia grega usada em Tiago 1.13-15 é similar aos termos empregados para referir-se à sedução de uma prostituta” (p. 57), o que é bastante apropriado dado o amplo campo semântico da palavra cobiça. “O mundo e Satanás podem incitar os desejos depravados, mas isso não é pecado no coração até que a vontade tenha concedido a sua permissão”, diz Street. E mais: “o coração perverso é, à semelhança de um ventre, o ambiente fértil ideal para que o óvulo fecundado da cobiça sexual se desenvolva”. Como, então, impedir que esse ente continue a crescer em nosso coração? O autor sugere que o mesmo seja “abortado pelo arrependimento” – e aqui justifico o título que escolhi para este post. Caso não se opte pelo arrependimento, chamemos esse segundo estágio de o mal gerado no ventre


Terceiro estágio: o coração fecundado com a cobiça, em algum momento, dará à luz os atos visíveis da trangressão (p. 59).
Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado… (Tg 1.15b).
Caso não haja o aborto de que falamos acima (o qual Deus efetivamente aprova), o pecado, mesmo sendo trevas, será dado à luz. Essa, na realidade, é uma outra forma de dizer que as más obras dos homens tornar-se-ão expostas em tempo oportuno. Assim como a “barriguinha” de uma gravidez indesejada começa a aparecer com alguns meses, os pecados dos homens serão definitivamente visíveis. E, como diz o Dr. Street, “a cobiça sexual nascerá para o mundo quando tiver atingido a maturidade de gestação na qual o ventre da imaginação não pode mais contê-la” (p. 60). No caso de um cristão, esse pecado que foi dado à luz será o seu “filho bastardo” – ou seja, mesmo que haja arrependimento depois, as consequências o acompanharão. Ainda assim, o crente pode se encontrar encantado por essa criança, a qual, com o passar do tempo, exigirá comida mais robusta: nada de “papinhas” de masturbação ou qualquer outro tipo de auto-excitação, mas formas cada vez mais intensas e prazerosas de excitação, o que pode perfeitamente resultar em estupro, incesto, homossexualidade, necrofilia, bestialismo e tantas outras aberrações sexuais. A perda de controle é total. A este terceiro estágio chamemos de a criança nasce e começa a mandar no pai.


Quarto estágio: o pecado completamente formado resulta em morte (p. 69).
…e o pecado, uma vez consumado, gera a morte (Tg 1.15c).
O termo usado por Tiago para “consumado” é apoteleo, que significa maduro; completamene crescido. Nesse caso, a criança já cresceu (“adulteceu”), e se volta contra o pai, que até resiste, mas nada mais pode fazer. Crentes que vivem sob essa condição “jamais experimentarão a morte eterna ou espiritual”, diz o Dr. Street, “mas é possível que experimentem a morte física” (p. 71). Parece ter sido este o caso em 1 Coríntios 5, onde Paulo ordena àquela igreja que exclua o “velho fermento” da comunhão dos irmãos, para que o mesmo fosse “entregue a Satanás para a destruição da carne” (v.5-7). Pessoas escravizadas pela cobiça hão de perceber que, à medida em que a frequência de delitos aumenta, a satisfação diminui, o que as levará a buscar prazer pessoal em formas cada vez mais complexas. O caso de Davi vem bem a calhar. E o resultado de tudo foi a morte do seu filho (1 Sm 11.15-17; 12.15-18). A este quarto estágio podemos chamar de a criança cresce e mata o próprio pai. 


É isso o que acontece toda vez que não resolvemos extirpar o mal pela raiz, preferindo formas paliativas de resolver o problema. A mensagem da cruz começa pelo coração, pois é lá onde estão escondidos os intentos mais nefastos do ser (Mc 7.14-22)! Medidas paliativas somente adiam o problema. De igual modo, livros com propostas superficiais produzem o mesmo tipo de efeito. Por estar absolutamene convencido de que Deus aprova não somente esse aborto do qual falei, mas inclusive o “assassinato” do ente já nascido, recomendo a leitura do livro do Dr. John Street, a qual tem me ajudado e muito a lidar com meus próprios conflitos. Afinal de contas, quem não tem um calcanhar de Aquiles?

Soli Deo Gloria!

8 de novembro de 2011

Uma palavrinha sobre o palavrão

Pegando carona num excelente texto escrito pela Norma Braga há uns quatro anos (leitura mais que obrigatória!), vou arriscar aqui mais algumas palavrinhas sobre os palavrões.
***
Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, e sim unicamente a que for boa para a edificação, conforme a necessidade, e, assim, transmita graça aos que ouvem.
Efésios 4.29.
Deveria ser justamente o oposto, mas não é raro ver cristãos simpáticos à ideia de que é perfeitamente válido ao crente falar palavrão, sob a desculpa de que “extravasar faz bem para o corpo e para a alma”, dentre outras coisas. Afinal de contas, “ninguém é de ferro”. De fato, ninguém o é. Mas escusar-se nisso é deveras pecaminoso, visto que o padrão maior, que é Deus, não é contemplado. E é muito triste observar que essa mentalidade é bastante comum em nosso meio. Outro problema é que nem sempre o palavrão é oriundo de um pico de fúria, mas inclusive das conversas amistosas, nas quais um palavrãozinho acaba se tornando “imprescindível” para que o papo fiquem ainda mais “interessante” – o que acaba sendo ainda pior em se tratando de uma rodinha de crentes.

É bem verdade que Paulo fez essa associação entre palavra torpe (“palavrão”) e explosões de raiva, no versículo 26 (não vou discorrer sobre tal verso aqui, visto que já tratei dele em outro post), mas, como já disse, esta não é a única associação possível. E aqui chamo a nossa atenção para a perspicaz observação da Norma Braga: “todos os palavrões, dos menores aos maiores, têm algo em comum: remetem invariavelmente ao sexo”. (Particularmente, não conheço nenhum palavrão que fuja a essa regra). Mas será que é este o sentido empregado por Paulo na referida passagem? Teria ela conexões com aquilo que hoje entendemos por palavrão? Existia palavrão no século I?

No grego, a palavra traduzida por torpe é sapros, que significa, literalmente, podre, sem proveito, e foi usada apenas por Jesus e Paulo. Cristo a usou como metáfora para a “árvore ”, a qual produz somente frutos maus (Mt 7.17ss; 12.33; Lc 6.43), e para os peixes “ruins” que são deitados fora do cesto (Mt 13.43). É evidente que o uso que Jesus fez dela não tem conexões diretas com a questão da sexualidade, visto que em suas falas Ele nunca se preocupou em dar esse tipo de especificação. Contudo, Jesus era bem específico numa coisa: em apontar o coração como a fonte de tudo aquilo que arruina o homem, incluindo os pecados sexuais (Mc 7.18-23). Assim sendo, o sentido esposado por Paulo se sustém, pois não há boca que sobreviva com uma dieta a base de palavras podres.

Na realidade, o entendimento de que Paulo, aqui, se refere à linguagem libidinosa pervertida não é novo. Por exemplo, Calvino, comentando a passagem em foco observou que esse termo usado pelo apóstolo se refere a “tudo aquilo que provoca excitamento erótico que costuma infeccionar a mente humana com a luxúria” – o que para nós é um sinal de que nos tempos do reformador os palavrões também estavam ligados ao sexo (ou, à deturpação deste). Alguém poderia argumentar que Calvino, aqui, escreveu pensando em sua própria época, e não na de Paulo. A estes respondo com textos como Romanos 1.26-27, 1 Coríntios 5 e 6.12-20, onde o apóstolo nos dá alguns detalhes do que era a imoralidade sexual de seu tempo, o que me leva a crer que a época em que ele viveu não era menos podre de linguagem do que o século XVI ou o século XXI. No entendimento do reformador, Paulo não está falando apenas de palavras vazias e bobas, mas de palavras podres e carregadas de imagens sexuais. Obviamente, são muitas as palavras e coisas que nos provocam esse tipo de excitamento apontado por Calvino, e é razoável aceitarmos que elas são alvo de Paulo nesse texto. Mas não nos enganemos, pois até mesmo palavras “inocentes” podem assumir a forma de um palavrão, pois o pecado, como já vimos, não começa na boca, e sim no coração. Por esse motivo é que devemos extirpar de nossas disposições mentais tudo aquilo que porventura nos remeta a tais pensamentos (cf. Fp 4.8-9), fugindo, assim, de toda a aparência do mal (1 Ts 5.22).

Em resumo, considerando a admoestação do apóstolo, deveríamos fazer os seguintes questionamentos acerca do palavrão, caso ainda queiramos considerar a sua legitimidade: 
  1. ele verdadeiramente promove a edificação (pessoal e coletiva)?
  2. ele verdadeiramente transmite graça aos que o ouvem?
Particularmente, penso que palavras podres e imorais jamais promoverão a edificação pessoal ou coletiva, visto que são fruto de uma árvore mau desde a sua raiz. De um coração tomado de pensamentos impuros não pode sair coisa boa. As obras da carne nada podem edificar senão a própria carne (cf. Gl 5.16-21). Por este motivo, tais palavras são incapazes de transmitir graça às pessoas que nos rodeiam. Em vez de graça, transmitem desgraça: mau testemunho, incitação à violência, ao sexo pervertido e por aí vai. É por esse motivo que Paulo diz para não darmos lugar ao diabo (Ef 4.27), o verdadeiro pai de toda podridão. Estejamos, pois, alertas, antes que o Senhor nos lave a boca com algo muito pior do que o sabão com que nossos pais nos ameaçavam.
Soli Deo Gloria!

31 de outubro de 2011

Avivamento ou Reforma?


Nós precisamos de um avivamento ou de uma reforma? A pergunta induz ao erro de pensarmos que as duas coisas são alternativas independentes ou até mutuamente excludentes. Mas reforma e avivamamento estão tão intimamente ligados que fica difícil estabelecer os limites entre eles e é impossível anelar por um sem querer experimentar a outra. Pois reforma começa com avivamento interior e avivamento sem reforma não é avivamento. Portanto, avivamento e reforma são quase que intercambiáveis.

Estou entre os que anseiam por um verdadeiro avivamento e estou ciente de que isso não se dará à parte de uma nova reforma. Podem ocorrer simultaneamente, ou então de forma sucessiva, mas certamente ocorrerão interligadas. O resultado de uma reforma é avivamento e o teste do verdadeiro avivamento é haver reforma. Pois avivamento da perspectiva de Deus é o céu invadindo a igreja e tornando-a consciente da presença do Senhor. Da perspectiva humana, reconhecer a presença de Deus é voltar ao primeiro amor por Jesus e consequentemente, à mudança de vida. Isso o que ocorreu nos dias de Lutero, e bem antes dele, nos dias do rei Josias.

Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, Na Alemanha. Era filho de um mineirador de prata, de classe média. Estudou para ser advogado, mas tornou-se monge agostiniano. Descobriu a justificação pela fé na Carta aos Romanos e isso o colocou em rota de colisão com a Igreja Romana e sua venda de indulgências. Em 31 de outubro de 1517, fixou as conhecidas 95 Teses na porta da Igreja em Witenberg, marcando o início do movimento que passaria à história como Reforma Protestante, da qual comemoramos hoje 394 anos.

Josias foi o 16o rei de Judá, neto Manassés e filho do ímpio Amon. Era de se esperar que um garoto colocado no trono aos oito anos de idade viesse a seguir o caminho mau de seus antecessores. Mas aos 16 anos “sendo ainda moço, começou a buscar o Deus de Davi, seu pai” e aos 20 “começou a purificar a Judá e a Jerusalém” (2Cr 34:3) expurgando o falso culto e reestabelendo a verdadeira adoração ao único Deus vivo e verdadeiro. Em comum, Josias e Lutero tem o encontro com um livro que estava perdido: a Bíblia Sagrada. Da experiência deles, tiramos lições para o avivamento e reforma necessários.

A reforma de Josias começou com a descoberta da Lei do Senhor. "E, tirando eles o dinheiro que se tinha trazido à casa do SENHOR, Hilquias, o sacerdote, achou o livro da lei do SENHOR, dada pela mão de Moisés" (2Cr 34:14). Não quero alegorizar, mas chama atenção que o livro estivesse escondido sob montes de dinheiro e vejo um paralelo com nossa época, em que o dinheiro tem levado muitos a esconder a Palavra do povo. Nos dias de Lutero, fazia-se o comércio de indulgências, arrecadando-se dinheiro para construir a basílica de São Pedro. E proibia-se o livre exame das escrituras.

O livro encontrado não foi exposto como uma relíquia, mas lido, inclusive aos ouvidos do rei. "Além disto, Safã, o escrivão, fez saber ao rei, dizendo: O sacerdote Hilquias entregou-me um livro. E Safã leu nele perante o rei" (2Cr 34:18). Nunca os crentes tiveram tanta disponibilidade de Bíblias como hoje. São traduções e versões para os mais variados gostos, sem contar as inúmeras Bíblias de Estudo e as disponíveis eletronicamente. Porém, a leitura devocional e o exame cuidadoso das Escrituras tem sido negligenciado. A formação espiritual de nosso povo é feito à base de louvores com a profundidade de um pires e chavões de vendilhões do templo.

Mas, se lida, a Escritura produz resultados e um deles é o quebrantamento do coração, o primeiro sinal do avivamento iminente. “Sucedeu que, ouvindo o rei as palavras da lei, rasgou as suas vestes” (2Cr 34:19). A Bíblia é a ferramenta que o Espírito utiliza para trazer convicção do pecado “porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que espada alguma de dois gumes, e penetra até à divisão da alma e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4:12) e para levar ao arrependimento e confissão dos pecados “porque grande é o furor do SENHOR, que se derramou sobre nós; porquanto nossos pais não guardaram a palavra do SENHOR, para fazerem conforme a tudo quanto está escrito neste livro” (2Cr 34:21).

Lutero percebeu isso. Ele disse certa vez: “simplesmente ensinei, preguei, escrevi a Palavra de Deus; não fiz mais nada... a Palavra fez tudo”. Se os pregadores de hoje tão somente pregassem a Palavra de Deus, com ardor e fidelidade, o povo seria conduzido ao arrependimento e estaria pronto para o avivamento.

Uma vez a Bíblia redescoberta e lida, precisa ser obedecida. Primeiro, Josias proclamou a Palavra: “Então o rei mandou reunir todos os anciãos de Judá e Jerusalém. E o rei subiu à casa do SENHOR, com todos os homens de Judá, e os habitantes de Jerusalém, e os sacerdotes, e os levitas, e todo o povo, desde o maior até ao menor; e ele leu aos ouvidos deles todas as palavras do livro da aliança que fora achado na casa do SENHOR” (2Cr 34:29-30). Importante notar que a Palavra foi anunciada a todos, independente de classe social, ofício, sexo, faixa etária. E não deve passar despercebido que foram anunciadas “todas as palavras do livro”. Toda Escritura anunciada a todas as pessoas, este é o objetivo dos ministros do evangelho.

Com isso, o povo é levado a renovar a sua aliança com o Deus de seus pais. “E pôs-se o rei em pé em seu lugar, e fez aliança perante o SENHOR, para seguirem ao SENHOR, e para guardar os seus mandamentos, e os seus testemunhos, e os seus estatutos, com todo o seu coração, e com toda a sua alma, cumprindo as palavras da aliança, que estão escritas naquele livro. E fez com que todos quantos se achavam em Jerusalém e em Benjamim o firmassem; e os habitantes de Jerusalém fizeram conforme a aliança de Deus, o Deus de seus pais” (2Cr 34:31-32). O compromisso foi renovado. Tinham voltado ao primeiro amor, estavam dispostos a serem fiéis, e o foram, pelo menos durante o reinado de Josias.

Consequentemente, a verdadeira adoração foi purificada. Josias retirou do culto, tudo aquilo que estava errado. “E Josias tirou todas as abominações de todas as terras que eram dos filhos de Israel; e a todos quantos se achavam em Israel obrigou a que servissem ao SENHOR seu Deus. Enquanto ele viveu não se desviaram de seguir o SENHOR, o Deus de seus pais” (2Cr 34:33). Ao mesmo tempo, restaurou o que era certo e estava esquecido. “Então Josias celebrou a páscoa ao SENHOR em Jerusalém; e mataram o cordeiro da páscoa no décimo quarto dia do primeiro mês” (2Cr 35:1). Josias promoveu a maior limpeza em todo o reino, mas não fez apenas a destruição da idolatria, restabeleceu o verdadeiro culto a Deus, como Ele havia prescrito em Sua Palavra.

O que Deus fez nos dias de Josias e também nos dias de Lutero, pode fazer nos dias de hoje. Mas assim como Ele fez através de pessoas como Josias e Lutero, quer fazer através de nós. É claro que não precisa de nós, como não precisava de Josias e Lutero. Mas Ele decidiu não agir diretamente, mas através de instrumentos fracos como nós. Os passos que devemos dar estão bem delineados: primeiro, buscar a Deus em nossos corações, segundo ler e deixar-se influenciar por Sua Palavra e terceiro, estar disposto a obedecer a qualquer custo o que ele nos manda fazer. Quando isso for feito, o avivamento virá, ou talvez seja melhor dizer, já terá vindo.
 
Soli Deo Gloria 

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

19 de outubro de 2011

O que uma banda de rock pode acrescentar à sua vida?

Publicado originalmente no Reforma e Carisma.
O que uma banda de rock pode acrescentar de bom na vida de uma pessoa? (Joel Parreira Neves, no meu Facebook)
Não, meus caros, desta vez a pergunta que abre o post não é minha. Na verdade, o autor do questionamento quis saber por que eu coloquei em meu Facebook um clipe da música "Nothing else matters", do Metallica. Pouco tempo antes, um comentário anônimo (e, por esta razão, não publicado) colocado no blog 5 Calvinistas, questionava como eu podia ouvir músicas da Katy Perry, sendo que ela teria "vendido a alma ao diabo" e que o rock era uma música de origens demoníacas.

Eu realmente fico espantado em ver o quão "estreita" é a mente de muitos evangélicos. Perguntas como essa são motivos de piada entre aqueles que não são evangélicos e criam barreiras para que muitos se disponham a ouvir a Palavra. E, embora eu já tenha respondido, acho que vale a pena dar uma nova resposta, mas por um ângulo diferente.

A origem da música
Já que muitos recriminam o rock por sua origem rebelde e "pecaminosa", gostaria de analisar a origem bíblica da música. Afinal, uma arte tão celestial e inspirativa só poderia ter sido criada por piedosos filhos de Deus, não é mesmo? Especialmente um instrumento tão "espiritual" como a harpa. Nunca pessoas que são condenadas pelo Senhor poderiam ser responsáveis pela criação de algo tão bom e que leva tantas pessoas a adorarem a Deus!

É mesmo? Vamos ler um texto bíblico então:
Então Caim afastou-se da presença do Senhor e foi viver na terra de Node, a leste do Éden. Caim teve relações com sua mulher, e ela engravidou e deu à luz Enoque. Depois Caim fundou uma cidade, à qual deu o nome do seu filho Enoque. A Enoque nasceu-lhe Irade, Irade gerou a Meujael, Meujael a Metusael, e Metusael a Lameque. Lameque tomou duas mulheres: uma chamava-se Ada e a outra, Zilá. Ada deu à luz Jabal, que foi o pai daqueles que moram em tendas e criam rebanhos. O nome do irmão dele era Jubal, que foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. Zilá também deu à luz um filho, Tubalcaim, que fabricava todo tipo de ferramentas de bronze e de ferro. Tubalcaim teve uma irmã chamada Naamá. (Gênesis 4:16-22)
Caim é o primeiro filho de Adão e o primeiro assassino da Bíblia, responsável pela morte de seu irmão Abel. Por causa deste assassinato, Caim é amaldiçoado e a sua descendência é colocada em Gênesis como sendo a linhagem daqueles que se afastaram de Deus. Os descendentes de Caim seriam opostos aos de Sete, o filho que Deus deu em lugar de Abel, o símbolo da linhagem que permaneceu fiel ao Senhor.

No entanto, curiosamente, os grandes avanços tecnológicos e artísticos da Antiguidade são atribuídos à família de Caim! A primeira cidade do mundo foi fundada por ele. Jabal tornou-se o pai da pecuária nômade em um estágio mais avançado. Abel criava ovelhas, Jabal tinha rebanhos. Tubalcaim foi o pai da metalurgia, sendo apontado como o primeiro a usar o bronze e o ferro. E, veja só, o primeiro músico da Bíblia era Jubal, um cainita.

Se os cristãos não podem aproveitar nada do rock porque ele seria fruto de rebeldes pecadores "que venderam a alma ao diabo"...então, todos nós precisamos voltar para a Idade da Pedra. Afinal, a Idade do Bronze foi inventada por homens perversos, descendentes de um assassino, pelo filho do malvado Lameque, o primeiro bígamo da História! Pelo argumento da origem, teríamos que rejeitar não só o rock, mas toda a música, incluindo aquelas tocadas na harpa e que emocionam os mais idosos...sem falar, é claro, da pecuária comercial, das cidades e de todos os avanços tecnólogicos decorrentes da manipulação de metais.

A graça comum
Fica claro que o argumento da "origem" é estúpido. Com certeza, as cidades, a criação de rebanhos ou a invenção de instrumentos musicais não foi feita com o objetivo de glorificar a Deus. Provavelmente são fruto do esforço e da engenhosidade dos caimitas para tornarem sua vida mais confortável, glorificarem o próprio nome ou até mesmo cultuarem a um outro deus. Desta maneira, a motivação dessas realizações seria pecaminosa, porque a ordem bíblica é a de que:
Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus. (1 Coríntios 10:31)
Todavia, a verdadeira fonte da criatividade caimita não era o pecado, mas sim aquilo que a teologia chama de graça comum. É graça porque são bênçãos que nenhum ser humano merecia possuir, e é comum porque é distribuída livremente entre todos os seres humanos, independente da fé ou de outras características. Como está escrito:
Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, que não muda como sombras inconstantes. (Tiago 1:17)
Creio que, na maioria esmagadora das vezes, o simples uso dessa graça já glorifica a Deus, apesar de nossas intenções pecaminosas. Ao meu ver, a análise exegética de Gênesis deixa claro que os caimitas foram condenados ao inferno, pois permaneceram distantes de Deus, seguindo o exemplo de Caim. Mas isso não muda o fato de que eles abençoaram, e muito, o mundo com seus inventos. Eles ajudaram a diminuir a fome, facilitaram o progresso, prolongaram a vida de muitas pessoas e até ajudaram na divulgação do Evangelho (quantos não se converteram ouvindo músicas que falavam sobre Jesus?).
Como seria a fome no mundo sem os rebanhos?

Desta maneira, não é porque um ritmo ou uma música não falam especificamente sobre Deus que devemos condená-los. Tais coisas são neutras, só se tornam más dependendo do uso que fazemos delas. Um dia alguém pegou a harpa e resolveu tocar uma música sacra, assim como, um dia, alguém fez o mesmo para adorar uma divindade pagã. E, se nós nos valemos livremente de invenções tecnológicas e até mesmo de filosofias e sistemas legais concebidos por corações pecaminosos...por que não podemos fazer o mesmo com a arte?

Mas e a banda de rock?
Sim, mas o que isso tem a ver com o Metallica, alguém deve estar imaginando. Eu diria que tudo a ver. "Ah, mas isso não tem utilidade, não edifica a vida de ninguém". Será?

Justificar a arte é um exercício inútil para mim. Ela é útil porque ela é bela. Ponto, pra mim basta. Mas a arte também toca os corações humanos. Ela influencia as nossas histórias, a forma como vemos o mundo, pode aumentar ou diminuir as emoções, é uma das mais formas mais sublimes de expressão do nosso espírito. A arte não é uma bênção menor do que a ciência ou a filosofia. Se as últimas nos ajudam a pensar e a conhecer, a primeira é uma forma legítima de nos autoconhecermos e expressarmos quem nós somos.

Sim, a ordem bíblica é que algo tão sublime deve ser vivido apenas para a glória de Deus, da mesma forma que deveríamos fazer quando vamos ao banheiro fazer nossas necessidades fisiológicas. Afinal, é tudo para a glória d'Ele, do mais sublime ao mais desonroso. Contudo, isso não significa que só possamos ler livros, ver filmes, cantar músicas ou inventar coisas que façam referências explícitas a Deus.

Como provo isso? A poesia é a mãe das artes, porque ela foi a primeira a surgir. E o primeiro poema, meio simplista, foi de amor, e não sacro. Quando Adão viu a Eva, ele disse:
Disse então o homem: "Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada" (Gênesis 2:23)
Uma banda de rock pode me ajudar a cantar o amor pela mulher amada. Pode me ajudar a cantar, a entender e a expressar sentimentos do meu coração. Pode ser uma forma de ver que eu não sou o único a sentir aquelas coisas, de me ligar a outras pessoas, de me sentir parte de um grupo. Pode até ser usada para levar outras pessoas a adorarem a Cristo, assim como eu.

Mas, acima de tudo, eu ouço Metallica e outros porque eu acredito que posso sim glorificar ao Senhor fazendo isso.

E com vocês, "Nothing else matters": 



Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro