25 de dezembro de 2014

Os Pais da Igreja e a Expiação

Na tentativa de evitar a doutrina reformada da expiação limitada, ou da redenção eficaz, sem parecer que estão negando o ensino histórico da igreja, os arminianos recorrem aos chamados Pais da Igreja, aqueles que lideraram a igreja nos primeiros séculos depois dos apóstolos. É um recurso válido recorrer aos antigos, mas nem sempre é seguro e nunca é decisivo. Quero apresentar três razões para isso, aplicando ao caso da doutrina da expiação realizada por Cristo.

A primeira delas é que antiguidade não significa necessariamente ortodoxia. Provam isso heresias como gnosticismo que acometeu a igreja ainda na sua infância e que deixou sequelas que duram até hoje. Quando lemos o Novo Testamento e em seguida os escritos dos chamados pais apostólicos é impossível não perceber as diferenças. Embora citem Paulo e os demais apóstolos em profusão, percebemos que pelo menos a ênfase fui mudada. E práticas simples foram corrompidas por superstições no mínimo bizarras, como os rituais de exorcismo antes do batismo. Por isso, nem tudo que os Pais da Igreja fizeram e ensinaram deve ser aceito sob a premissa de que eles as receberam diretamente dos apóstolos e as conservaram inalteradas.

Os Pais da Igreja não desenvolveram uma doutrina ou teoria da expiação e o fato é que a posição de muitos deles permanece indeterminada. Até os dias de Anselmo, os pais da igreja não se preocuparam em apresentar um entendimento sistematizado da expiação . Suas referências à morte de Cristo se dão num contexto devocional, usando a linguagem da escritura, sem se preocupar em comentar e menos ainda oferecer uma explicação para os textos citados.

Quando os Pais Apologistas mencionavam a morte de Cristo, sua ênfase era apresentá-la como cumprimento das profecias do Antigos Testamento. Já o interesse de Clemente de Roma era ético e prático. Pela Sua morte, Cristo nos deu um grande exemplo a ser seguido de humildade e deve nos constranger à gratidão a Deus, ao amor ao próximo e ao auto sacrifício. A apresentação de aspectos doutrinários da morte de Jesus era feito de forma débil e não era livre de distorções. A questão da extensão da expiação jamais foi levantada por eles. Afirmar que defenderam a expiação universal é impor a eles uma conclusão a que não chegaram, simplesmente por não refletirem sobre.

Os Pais da Igreja criam numa teoria fantasiosa da expiação. Mesmo não tendo elaborado um entendimento estruturado sobre a doutrina da expiação, e talvez por causa disso, os Pais da Igreja adotaram uma teoria muito estranha sobre a morte de Cristo. Esta teoria assume que por causa do pecado de Adão Satanás tinha o direito e a posse sobre os homens e que para libertá-los Deus deveria pagar uma indenização ao Diabo.

Uma variação dessa teoria dizia que Deus enganou o Diabo, pois sua humanidade era uma isca e sua divindade um anzol. A implicação clara de Deus usar de um engodo foi justificada pelos pais com a explicação de que Satanás merecia ser enganado. Esta visão da expiação, em suas variações e nuanças, perdurou na igreja até os dias de Anselmo.

Como podemos ver, apelar aos antigos Pais para decidir a respeito de questões teológicas que foram desenvolvidas posteriormente pode não ser a melhor saída. Nenhum deles elaborou um sistema completo. Não se trata de desprezar seus ensinos ou ignorar seus exemplos de fé, e sim de compreendermos o contexto em que viveram e não esperar mais de suas obras do que eles pretendiam com elas.

Soli Deo Glória

10 de dezembro de 2014

Quem é atraído pela cruz de Cristo?


A extensão da expiação é um dos temas mais debatidos pelos interessados em teologia. Duas posições são defendidas fervorosamente, uma delas afirmando que Jesus morreu para tornar possível a salvação do mundo inteiro e outra que Jesus morreu para tornar certa a salvação dos eleitos somente. O texto acima geralmente é apresentado contra esta última posição, com a suposição de que todos significa "todas as pessoas do mundo, sem exceção".

Consideremos, primeiro, quem está falando. O início do verso 30, "Então, explicou Jesus", deixa claro que o "eu" e "a mim mesmo" do versículo se referem a Jesus. Os pronomes eu e mim são enfáticos, uma vez que a forma verbal indica o sujeito e torna dispensável o uso de pronomes. Certamente a intenção de Jesus é fazer um forte contraste entre a Sua pessoa e o "príncipe deste mundo" mencionado no verso anterior, e que seria expulso pela Sua morte.

Para saber com quem Jesus estava falando, precisamos recorrer ao contexto. Voltando para o versículo 20 lemos que “entre os que subiram para adorar durante a festa, havia alguns gregos; estes, pois, se dirigiram a Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e lhe rogaram: Senhor, queremos ver Jesus” (Jo 12.20–21, RA). É importante destacar que esses gregos eram gentios e não judeus helenistas, nascidos na Diáspora. E foi no momento que estes estrangeiros foram apresentados a Jesus por André e Filipe que Jesus se referiu à Sua morte e aos resultados dela. É fundamental ter em mente que o discurso de Jesus foi provocado pela presença dos gregos e dirigido a um auditório misto, composto por judeus e gentios.

Estando claro quem diz e para quem o faz, podemos nos concentrar no que é dito. Jesus faz duas afirmações envolvendo Sua pessoa e vamos considera-las separadamente. Primeiramente Ele diz “e Eu, quando for levantado da terra”. Ser “levantado” é uma referência à sua morte, como o narrador interpreta as palavras de Jesus: “Isto dizia, significando de que gênero de morte estava para morrer” (João 12.33, RA). A mesma linguagem é utilizada em Jo 3:14. É interessante que a voz do verbo levantar é passiva, o que indica que neste caso Jesus não realiza, mas sofre a ação descrita. Convém observar, também, que a palavra “quando” é um advérbio condicional, que indica que a ação seguinte depende do evento ou ação descritos, e por isso o sentido é de “e se, no caso de”.

A declaração de Jesus que está no centro da controvérsia é “atrairei todos a mim mesmo”. O verbo atrair está na voz ativa, significando que é Jesus quem toma a iniciativa e realiza a ação e no modo indicativo, que é utilizado quando quem fala descreve uma ação como sendo real, em oposição a algo que é apenas possível, contingente ou intencional. Compare com a declaração do verso anterior, em que Jesus diz “...agora o seu príncipe será expulso” (João 12.31, RA). O mesmo modo verbal é utilizado, logo dizer que Jesus apenas tentará atrair as pessoas para Si, sem a certeza de que isto ocorrerá de fato, implica reconhecer que Ele apenas tentará expulsar a Satanás, uma vez que as duas coisas, a expulsão de um e a atração de outros são expressas da mesma maneira, e como resultados da mesma ação: a morte de Jesus.

Além disso, quando considerado teologicamente, o termo atrair implica mais que meramente exercer influência moral. Não é como se o Senhor se tornasse atraente na cruz, o pecador olhando-O ali fosse até Ele. Jesus já havia dito que “ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia” (João 6.44, RA), e a palavra traduzida por trazer e atrair é a mesma nos dois casos. O termo aponta tanto para o fato de que é Deus quem atrai como para a realidade de que o homem por si mesmo não pode ir a Cristo. Mais, indica que o homem resiste a esta atração divina, contudo o Senhor vence esta resistência em seus escolhidos. Em vários lugares encontramos indicações de que esta atração não é passiva, pelo contrário, é ativa e poderosa. Os autores bíblicos utilizam-se dela para descrever o puxar redes cheia de grandes peixes (João 21:6,11), o arrastar pessoas ao tribunal (Atos 16:19; Tg 2:6) e o sacar uma espada da bainha (João 18:10).

Mas se considerarmos que essa atração é tanto iniciativa de Deus quanto invencível, como evitar a conclusão de que todas as pessoas serão salvas, uma vez que Jesus diz que atrairá a todos? Chegamos ao cerne do problema. A saída fácil é ignorar o que foi dito até agora e fazer do Crucificado apenas atraente e não Aquele que por Sua morte efetivamente atrai aqueles por quem deu a vida e salva de fato. Nem sempre o caminho fácil e agradável é o correto a seguir.

Examinemos com atenção a expressão todos. Notemos, inicialmente, que “pessoas” ou “homens” não constam do original, como aparece em algumas traduções, e inclusive há quem sugira que o termo se refira a todas as coisas, tudo. Portanto, se a palavra todos for tomada em sentido absoluto, forçosamente teremos que incluir os anjos caídos e os seres inferiores como objetos da atração de Cristo. Ou seja, algum tipo de limitação não expressa é admitida mesmo por universalistas.

O Novo Testamento apresenta diversos lugares em que a palavra todos não pode significar todos os indivíduos sem exceção.  Por exemplo, quando se diz que “ia ter com ele Jerusalém, e toda a Judéia, e toda a província adjacente ao Jordão” (Mt 3:5, RA) e “toda aquela cidade saiu ao encontro de Jesus” (Mt 8:34, RA), obviamente as cidades citadas não ficaram abandonadas enquanto cada homem, mulher e criança iam ver João Batista e Jesus. O mesmo quando lemos que “toda a cidade se ajuntou à porta” (Mc 1:33, RA). E quando Jesus diz que “todos quantos vieram antes de mim são ladrões e salteadores" (Jo 10:8, RA) não pode significar, por exemplo, que Abraão, Jó e Daniel eram assaltantes. Por falar em Abraão, quando seu servo partiu “levando consigo de todos os bens dele” (Gn 24:10, RA), é claro que não deixou Abraão na miséria e a promessa de Joel, “derramarei o meu Espírito sobre toda a carne” (Jl 2:28, RA), não implica que cada indivíduo sobre a terra é batizado com o Espírito. Quando lemos que Jesus percorria a Judéia “curando todas as enfermidades” (Mt 4:23, RA) devemos lembrar que houve lugar em que “não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles” (Mateus 13.58, RA). Assim também, quando lemos que os discípulos “tendo partido, pregaram em toda parte” (Mc 16:20, RA), não devemos pensar que pregaram em todos os lugares do mundo, mas em toda parte a que foram. Em cada caso, o contexto nos esclarece quando todos significa todos sem exceção, a maior parte, todos os tipos e classes, etc.

Agora podemos voltar a falar do contexto em que a declaração de Jesus está inserida. Lembramos que o Seu discurso foi feito na presença e motivado pelos não judeus que queriam vê-lo. Portanto, o todos significa que não apenas judeus, mas também gentios seriam atraídos, ou seja, todos sem distinção e não todos sem exceção. Vemos isso de forma recorrente no quarto evangelho. A salvação não depende de laços familiares ou de raça (1:13; 8:31-59), Jesus é o Salvador não apenas dos judeus, mas também dos samaritanos e em consequência, do mundo (4:42), Ele tem outras ovelhas que não são do redil dos judeus, mas do mundo gentio (10:16), morrerá não só pela nação, mas para reunir num só os filhos de Deus que estão dispersos (11:51). Entendemos, então, que por todos o Senhor estava dizendo “não apenas os judeus, mas também os gentios”.

É o que também entende a maioria dos comentaristas e eruditos. Robertson diz que todos “não significa cada homem individual, pois alguns, como Simeão disse (Lc 2:34) são repelidos por Cristo”. Bartley diz que a expressão é uma “referência ao alcance universal do evangelho, que inclui os gentios”. Wiersbie afirma que "Cristo menciona os gentios quando fala em ser "levantado" na cruz. Em Mateus 10:5 e 15:24, Cristo ensinou seus discípulos a evitarem os gentios; todavia, agora ele diz que os gentios também serão salvos pela cruz. (...) Cristo tinha que ser levantado para que 'todos' (v. 32, judeus e gentios) fossem atraídos a Ele. Isso não significa todas as pessoas, sem exceção, mas todas as pessoas, independente da raça". Para Hernandez, todos significa “tanto gregos (ali presentes, v. 20) como judeus, como pessoas de todo povo e nação. Isto enfatiza a composição multinacional e racial do povo de Deus”. Lembrando que “um momento antes os gregos pediram para ver Jesus”, Hendriksen, diz que “Jesus promete atrair a todos os homens a si mesmo. Este todos os homens, neste contexto que coloca gregos junto aos judeus, deve significa homens de toda nação”, acrescentando que “estes gregos representam as nações – os eleitos de todas as nações – que chegariam a aceitar a Cristo com fé viva, através da graça soberana de Deus”.

Matthew Henry também diz que “o grande desígnio do Senhor Jesus é atrair a si todos os homens, não só os judeus, mas também os gentios de toda raça, língua, nação e povo”. Luiz Palau também entende que “a cruz é como um ímã ao qual tanto judeus como gentios são atraídos”. Walvoord, interpretando o ser atraído como ser salvo, afirma que “aqueles que serão salvos não virão apenas dos judeus, mas também de toda tribo, língua, linhagem e nação (Ap 5:9)”. Cabal é firme ao declarar que “isto não é universalismo (salvar a todos), mas o evangelho é oferecido a todos sem distinção – atraindo pessoas de todos os tipos para Si mesmo”. Finalmente, para Dockery, todos significa “todas as pessoas sem distinção de sexo, raça, posição social ou nacionalidade”.

Concluindo, a interpretação de que Cristo atrai redentivamente todos os homens a si mesmo, a menos que se advogue o universalismo, impõe que a atração referida por Cristo seja meramente potencial, e não real. Longe de glorificar a Deus e exaltar a obra de Seu Filho na cruz, tal tentativa acaba por anular a eficácia intrínseca de Seu sacrifício, fazendo-a depender, ao final, da vontade do homem e não da intenção divina.

 Soli Deo Gloria