29 de junho de 2011

Dos calvinistas que comem “despacho” de macumba e bebem vinho

Esse foi um texto que escrevi no Google Buzz, com ligeiríssimas alterações aqui. Por isso mesmo é que ele soa assim, meio solto e com maneirismo de rede social. Risos.

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Hoje discuti com um irmão aqui do trabalho, enquanto almoçávamos, acerca dos alimentos sacrificados a ídolos. Bem, não lembro como começamos, mas o fato é que a conversa tomou rumos inesperados, pelo menos para mim. Ele ficou escandalizado porque eu lhe disse que, numa situação desértica e extrema, faminto, eu comeria um "despacho" de macumba sem problema, desde que eu estivesse sozinho. Argumentei como Paulo, no sentido de que os ídolos não são absolutamente nada, e que Deus há somente um (1 Co 8.4-6). Mas se eu estivesse acompanhado de alguém que não tivesse esse entendimento e que se escandalizasse com minha atitude, eu não comeria por amor a essa pessoa, visto que entendimento desprovido de amor serve somente para inflar o ego ("o saber incha, mas o amor edifica" - 1 Co 8.1)*. Ainda assim, esse irmão disse que o problema era meu, visto que "para Deus não há distinção de pecado", e que Deus era poderoso para suprir sua necessidade, e que por isso jamais se submeteria a comer um despacho de macumba.

Eu sei que depois o papo chegou no vinho, e ele prometeu que ia me provar, mediante estudo do termo grego, que o vinho de que a Bíblia fala, e que Jesus bebeu na Ceia, era vinho não-fermentado; um suco de uva, na realidade. Novamente, tentei argumentar com ele, dizendo que o que a Escritura proíbe é a embriaguez. Inútil. Citei o caso de Noé, que pecou por embriagar-se (não por beber) com vinho, e esse irmão disse que não queria saber da "Velha Aliança". Se o irmão está certo, então será que os fariseus estavam acusando Jesus de ser um “bebedor de suco de uva não fermentado” (cf. Lc 7.34)? Bom, deixa pra lá…

Para coroar a discussão, ele disse que eu cria dessa maneira porque sou calvinista. Perguntou até (em tom de sarcasmo) se eu cria na reencarnação, vejam só! Depois ele se virou para a predestinação, dizendo que ela não é bíblica e todo o papo que vocês já conhecem. Disse que há diferença entre predestinação e eleição. Disse também que meu problema é que eu fui doutrinado pela Igreja Presbiteriana, a qual ele disse conhecer muito bem, e que por isso mesmo está onde está, visto que não foi por ela convencido. Eu falei para ele que não dava pra discutir com uma pessoa que parte dos pressupostos errados. Sugeri-lhe que estudasse os termos gregos (já que ele gosta tanto dos originais!) para eleição e predestinação. Perguntei-lhe também se ele consegue encarar textos como Romanos 9 assim, "numa boa". "Seu problema é que você se baseia em textos isolados"... "Não sirvo a Calvino, sirvo a Deus"; gritou ele quando eu já distava uns cinquenta metros. Sim, deixei ele falando sozinho.

Infelizmente, esse irmão é somente mais um dentre tantos que confundem liberdade cristã com libertinagem (“licença” para pecar) – o que acaba se tornando um dos argumentos preferidos dos não-calvinistas contra o calvinismo, uma vez que somos acusados de nos esconder na predestinação e na perseverança dos santos, usando-as como pretexto para o pecado. Nada mais longe da verdade. É nessas horas que devemos exercitar o amor para com os fracos (cf. Rm 14). E eu diria que deixar ele falando só naquele momento foi, em alguma medida, uma prova de amor. Procurá-lo depois para esclarecê-lo e ajudá-lo pode ser outra ainda maior. Espero que assim seja.

Soli Deo Gloria!
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* Muito embora eu tenha certeza de que, mesmo sem entender a liberdade cristã, meu acompanhante ignoraria sua própria ignorância e mataria logo sua fome. =p

27 de junho de 2011

O novo nascimento e o ato de crer


“Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus” (1Jo 5:1)

Duas coisas são absolutamente necessárias à salvação: a regeneração e o ato de crer em Jesus Cristo. Quanto à primeira, Jesus disse “em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo 3:3). E sobre a segunda, Paulo assegura “se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10:9). Portanto, não há que discutir sobre a importância fundamental, tanto da fé quanto da regeneração. Importa-nos, então, analisar como se dá o ato de crer e o novo nascimento, bem como a relação que existe entre eles.

O que são fé e regeneração?

De acordo com a obra Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal, “fé é a atitude de nossa dependência confiante e obediente em Deus e na sua fidelidade”. Assim, crer em Jesus é confiar plenamente em Sua pessoa e depender unicamente de Sua obra para a salvação. Nos aspectos da salvação, a fé é parte da conversão, pois “arrependimento e fé são os dois elementos essenciais da conversão” (Idem).

A mesma obra diz que “regeneração é a ação decisiva e instantânea do Espírito Santo, mediante a qual Ele cria de novo a natureza interior”. O professor Antonio Gilberto explica que “regeneração é o ato interior da conversão, efetuada na alma pelo Espírito Santo. Conversão é mais o lado exterior e visível da regeneração. Uma pessoa verdadeiramente regenerada pelo Espírito Santo é também convertida” (Teologia Sistemática Pentecostal). Concluímos que nascer de novo é ser vivificado, passar da morte espiritual para a vida no Espírito.

O que vem primeiro: fé ou regeneração?

Que a regeneração precede a fé fica claro pela simples leitura atenta do verso bíblico que encabeça este artigo. O texto não diz algo semelhante a “todo aquele que crê... nasce de Deus”, mas afirma que “aquele que crê... é nascido de Deus”. O verbo nascer está no tempo perfeito, que no “grego corresponde ao perfeito na língua portuguesa, e descreve uma ação que é vista como tendo sido completada no passado, uma vez por todas, não necessitando ser repetida” (Strong). O verbo crer, por sua vez, está no presente, sendo que “o tempo presente representa uma simples declaração de um fato ou realidade, observada como algo que ocorre neste momento” (Idem).

No verso 4, novo nascimento e fé são novamente colocados nesta ordem. “Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5:4). Outras ocorrências de “nascido de Deus” podem ser examinadas, para mostrar que o novo nascimento precede a todas as outras virtudes e ações mencionadas (1Jo 3:9; 4:7:5:18).

E se lermos atentamente as definições dadas pelos teólogos pentecostais para regeneração e fé, a conclusão natural é que esta sucede aquela. Segundo as obras citadas, a conversão é o aspecto exterior e visível da regeneração operada pelo Espírito, e portanto a conversão segue logicamente a regeneração. E a fé, segundo os mesmos autores, é um aspecto da conversão, sendo assim, a fé tem suas raízes na regeneração, pois somente “um coração novo” (Ez 36:26 cf. Dt 30:6) pode amar e crer no Senhor.

Quem opera o novo nascimento e dá a fé?

Quando o evangelho chega aos homens, encontra-os “mortos em suas transgressões e pecados” (Ef 2:1 NVI). A já mencionada Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal declara que “os não salvos vivem na morte espiritual”. Um morto não pode crer, para isso precisaria antes voltar a viver. Mas um morto tampouco pode reviver a si mesmo. Resumindo, um morto não pode fazer nada, senão permanecer morto. Depende inteiramente de outro alguém para trazê-lo de volta à vida e dar-lhe capacidade de crer. E esse alguém é Deus.

Paulo escreve “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo” (Ef 2:5). O agente do novo nascimento é “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança” (1Pe 1:3). Por ser uma obra soberana, não exercício da vontade humana nesse processo, pois os nascidos de novo “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1:13). De fato, “segundo o Seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas” (Tg 1:18).

O homem tampouco é capaz de crer por si mesmo. Jesus disse “ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer” (Jo 6:44). Com isto concorda a Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal ao dizer que “não podemos exercer a fé salvífica à parte da capacitação divina”. Isto por devido a questão bem simples: a fé não é inerente ao homem, é dom de Deus. “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2:8). A fé é gerada pelo Espírito quando somos “regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus” (1Pe 1:23), “de sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela Palavra de Deus” (Rm 10:17).

Conclusão

Do exposto podemos concluir que o homem, estando morto e incapacitado pelo pecado, não é capaz de fazer nada por si mesmo, mas o Espírito Santo abre os seus ouvidos para ouvir e renova o seu coração para crer, mediante a pregação do evangelho. Desse modo, a salvação é, toda ela, atribuída ao Senhor, único a receber glória pela redenção de todos quantos crêem.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

20 de junho de 2011

Quando a perseguição chega


E Saulo assolava a igreja, entrando pelas casas; e, arrastando homens e mulheres, os encerrava na prisão. Mas os que andavam dispersos iam por toda a parte, anunciando a palavra. At 8:3-4

Perseguição é uma palavra quase sem sentido para uma igreja ufanista, mais habituada a termos como vitória, prosperidade, sonhos e sobre ser cabeça e não cauda. Quando eventualmente se fala de perseguição, logo se diz "despreze e zombe do inimigo enquanto ele foge" e assegura-se que "quem jogou pedras nem se lembra de você, quem te viu e quem te vê, está na plateia de camarote, aplaudindo você vencer".

Perseguição é a realidade de 100 milhões de cristãos, segundo a missão Portas Abertas. Em muitos países muçulmanos, budistas e ateístas, crer em Jesus é a maneira mais segura de ser expulso e denunciado pela família, ser espancado e morto ou ser jogado numa prisão. Tais pessoas desconhecem um tal evangelho da saúde e prosperidade, vivem um evangelho de provação e testemunho, não raro ao custo da própria vida.

Perseguição é um catalizador da evangelização e da vida cristã genuína. A comodidade leva à acomodação. A perseguição força a ação. Foi assim quando Paulo ainda era Saulo. Foi assim ao longo da história da igreja. É assim hoje. Sempre que a igreja é dispersada, os dispersos falam da Palavra de Deus por onde passam.

Perseguição é uma coisa que faz falta à igreja brasileira. Uma igreja perseguida não perde tempo com coisas deste mundo, mas se apega à esperança da volta de Jesus. Em uma igreja sob perseguição, a teologia da prosperidade não vinga. E se algum Gondim convidasse pastores para ouvir sobre a volta de Jesus como "um horizonte utópico", não encontraria audiência alguma.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

15 de junho de 2011

Jesus, Paulo e os mortos do “Horizonte Utópico”

Em minha última postagem (aqui) fui duramente criticado pelos defensores de um certo herege tupiniquim que há muito descambou (se no corpo ou fora do corpo eu não sei) para o liberalismo teológico. Disseram que me faltou amor em lidar com ele (e com quem a ele se alinha), e eu precisei explicar que é justamente por amar – novamente digo: a Deus primeiramente, e consequentemente ao próximo – que eu disse o que disse, e não me arrependo de assim tê-lo feito. Ora, Jesus chamou os fariseus de nada menos do que “raça de víboras”; Paulo chamou os hereges de sua época de “lobos vorazes”; e Pedro os chamou de cães e porcos, somente para citar uns poucos exemplos. Sobre essa questão do amor, recomendo aos leitores o excelente post do Rev. Augustus Nicodemus (aqui). Daqui a pouco volto com uma interessante colocação de Calvino sobre essa questão.

Voltando ao herege, alguns amigos me recomendaram a deixá-lo pra lá; que não vale a pena ficar discutindo sobre ele, pois isso só lhe aumenta a popularidade (é o tal do “falem bem, falem mal, mas falem de mim”). Inclusive um mais chegado me recomendou a deixar os mortos enterrarem seus próprios mortos, conselho que eu vinha seguindo meio que à risca. Só que meus dedos e meu estômago (principalmente este) se inquietaram diante de um vídeo no qual o herege que rima com tupiniquim destila um veneno mais mortal ainda, em sua aberta negação da segunda vinda de Cristo como fato histórico – o que, no fim, das contas, é uma negação da parousia em todos os aspectos. Se alguém duvida, clique aqui. Mas só clique se realmente você tiver estômago para ouvir o que ele diz lá.

Visto que mal de estômago é algo que realmente incomoda aqueles que amam a Verdade (cf. Timóteo, hehe!), vou poupar meus queridos leitores de verem o vídeo na íntegra. Abaixo, transcrevo algumas falas heréticas do nosso herege nacional.

- Eu não creio na volta de Cristo do tipo “eu creio que Jesus vai voltar hoje”; mas eu creio na volta de Cristo como um modelo motivador das ações da igreja para que se cumpra o reino de Deus entre os homens.

Aos 5min e 25ss. Negrito meu.

- O que é a mensagem da volta de Cristo? É tirar a gente desse conforto de que Cristo volta e resolve todos os problemas do mundo e nos jogar na direção da construção do reino de Deus entre os homens.

Nesse momento alguém o interrompe e diz: “em vez de ser um anestésico passa a ser um estimulante?”, ao que ele responde: “Estimulante. Por que Paulo combate isso na igreja dos Tessalonicenses. Ora, se Cristo vai voltar, pra que eu vou trabalhar? Se Cristo vai voltar, pra que que eu tenho que lutar contra a escravatura?” [etc.]…

Dos 8min e 30ss em diante. Negritos meus.

Devo parar por aqui. Se quiserem embrulhar seus estômagos por si mesmos, fiquem à vontade e vejam lá o vídeo. Mas selecionei as falas supracitadas para justificar o título do post, e também para dar uma breve satisfação aos colegas que sugeriram que fizéssemos críticas mais específicas ao herege, pelo que segue uma breve.

O herege lança mão de um expressão usada por Jurgen Möltmann, um teólogo alemão liberal do século XX, para embasar sua interpretação da parousia. A expressão é “horizonte utópico”, que, como o próprio nome sugere, afirma ser mera utopia as promessas de Cristo quanto a uma segunda vinda literal e histórica – algo que lembra e muito a tal “demitologização” proposta por Bultmann (com a diferença de que Bultmann, em minha opinião, sabia ser herege). O “único” problema com essa perspectiva é que ela simplesmente não é bíblica. Não preciso ler a Teologia da Esperança de Möltmann para me certificar de que nada existe de esperançoso em sua proposta, que o nosso herege nacional abraçou. Fico até consternado em ter que provar biblicamente o desvario desse irresponsável teológico, mas aqui seguem alguns textos em que o próprio Jesus afirma sua segunda vinda literal (versão da NVI):

    • Mt 16.27: Pois o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos, e então recompensará a cada um de acordo com o que tenha feito.
    • Mc 8.38: Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras nesta geração adúltera e pecadora, o Filho do homem se envergonhará dele quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos.
    • Lc 21.33-35: O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão. Tenham cuidado, para que os seus corações não fiquem carregados de libertinagem, bebedeira e ansiedades da vida, e aquele dia venha sobre vocês inesperadamente. Porque ele virá sobre todos os que vivem na face de toda a terra.
    • Jo 14.1-3: Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar. E se eu for e lhes preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver.
    • Ap 22.12: Eis que venho em breve! A minha recompensa está comigo, e eu retribuirei a cada um de acordo com o que fez.

Ora, se o horizonte que Jesus estabeleceu ao falar da sua segunda vinda é mesmo “utópico”, como querem os hereges alemão e brasileiro (e tantos outros ao redor do mundo), então o próprio Cristo ficará fora do reino que ele mesmo construiu, uma vez que, como ele mesmo afirma, “fora ficam os cães, os que praticam feitiçaria, os que cometem imoralidades sexuais, os assassinos, os idólatras e todos os que amam e praticam a mentira (Ap 22.15). Logo, seja Deus verdadeiro e mentiroso todo homem – especialmente esses hereges (cf. Rm 3.4).

Mas o que mais me espantou de fato foi que o herege não foi apenas herege, mas um baita de um mau leitor (pra não dizer outra coisa!). Ele resolveu apelar para Paulo, como se o apóstolo fosse mesmo trair Seu Mestre em prol de um falso mestre. Ele diz que Paulo tinha em mente o tal “horizonte utópico” quando combateu o ócio dos tessalonicenses (em 2 Ts 3.10), que estavam, segundo o herege, se fiando na expectativa do retorno (literal) de Cristo. Só que o engano dos tessalonicenses não foi o de que Cristo ainda vai voltar, e sim o de que a parousia já havia ocorrido (cf. 2 Ts 2.1-11). Será que seria pedir demais ao herege que ele leia antentamente o contexto mais amplo da passagem, ainda que dele não venha tirar nenhum proveito para suas monstruosidades teológicas? E mais: se Paulo realmente pregou um “horizonte utópico” ele deverá fazer companhia ao “Cristo” mentiroso, que nos deu utopias para crer.

É por essas e outras que repito: não posso amar esses hereges, porque eles insultam violentamente o Deus das Escrituras. Não dá para ter paz com quem promove a confusão dentro da igreja. E aqui termino com o que disse Calvino sobre essa questão do amor, conforme prometido supra. Trata-se de um trecho do seu comentário a Rm 12.18 (“se possível, quanto a depender de vós, tende paz com todos os homens”):

Que não nos esforcemos por conquistar o favor humano de maneira tal que nos esquivemos de incorrer no ódio de alguém por amor a Cristo, como às vezes se faz necessário. [...] É conveniente que toleremos muito, perdoemos as ofensas e voluntariamente suportemos o extremo rigor da lei por amor à paz, contanto que estejamos preparados para lutar corajosamente, como às vezes nos é requerido. Os soldados de Cristo não podem gozar de perene paz com o mundo, porque este é governado por Satanás.

Não somente não quero, como também não posso gozar de perene paz com os hereges, porque estes são governados por Satanás, e não por Cristo. Mas devo me prontificar em suportar, no temor do Senhor e por Sua Graça, a sanha daqueles que vivem a bajular os que propagam a mentira, ainda que se trate de gente morta.

Que Deus nos ajude!

Soli Deo Gloria!

10 de junho de 2011

O herege e seus discípulos (ou, como fui salvo de Ricardo Gondim)

A mais recente carta que a liderança do Jovens da Igreja Betesta em São Paulo escreveu em apoio ao seu pastor, Ricardo Gondim (aqui), me deixou assustado. A influência que um falso mestre pode exercer no seio de uma igreja é algo realmente assustador; um verdadeiro câncer que, paulatina e silenciosamente, corrói a alma dos desavisados. Mas antes de destilar mais críticas, preciso fazer uma confissão. Volto já.

1RICARDO-Gondim-0001Por um bom tempo o Gondim foi o meu escritor/pensador evangélico favorito. Conheci sua pena através da Revista Ultimato (da qual ele foi recentemente convidado a “des-continuar” um trabalho que já durava vinte anos), e não quis mais parar de lê-lo. Aliás, minha motivação maior em ler a referida revista era por causa dos artigos de sua autoria. “Inspiradores”, era o que eu pensava dos seus textos. Li muitos dos seus livros, dentre os quais eu destaco É proibido: o que a Bíblia permite e a igreja proíbe (um marco na vida de muitos crentes); Artesãos de uma nova história; e Orgulho de ser evangélico. Aliás, foi dele o primeiro livro evangélico que comprei: Fim de Milênio: Os perigos e desafios da pós-modernidade na igreja (Abba Press, 1996). Eu também ouvia diariamente pregações suas numa rádio (não lembro qual), e as gravava em fita cassete. Eu gostava tanto do Ricardo Gondim que dois amigos meus passaram a me chamar de RG. “RG? Do que esses caras estão falando, hein?”. É, demorou pra cair a ficha. Até que, como diria Cazuza, “a emoção acabou”…

Voltei (ufa!). Por pura Providência, a época em que a emoção esmaecia coincidiu (eu falei “coincidiu”? Mercy, oh Lord!) com a época em que eu estava descobrindo a teologia reformada. E foi exatamente aí que eu passei a desconfiar de certos apelos que o Gondim fazia em seus textos – seus termos melosos, sua argumentação puramente emotiva e todo o resto que vocês já sabem. Como a tarefa de linkar todas as heresias que já li dele seria por demais hercúlea, contento-me em citar apenas um artigo de sua lavra que me abriu os olhos para o terreno movediço em que eu estava pisando. Trata-de do artigo Proposta de um credo, publicado em uma das edições de Ultimato (aqui), onde ele endossa aquilo que mais tarde eu conheceria por Teologia Relacional. Aproximei-me do texto como admirador, e voltei dele estarrecido com o que lia – mesmo não sendo esse o seu texto mais tortuoso. “Creio que Deus soberanamente decidiu abrir mão de parte de sua onipotência quando criou seres à sua imagem e semelhança”, dizia ele. Alguns dias depois, Gondim escreveria um polêmico texto sobre o tsunami que devastou o leste asiático no final de 2004 (clique aqui, porque este aqui, curiosamente, não funciona), onde não somente a onipotência, mas também a onisciência divina seria negada. Só que desse texto eu só tomei conhecimento muito tempo depois de ter sido escrito.

Quando li um artigo que o Augustus Nicodemus escreveu para a mesma Ultimato sobre a Teologia Relacional (aqui), logo passei a associar as denúncias dele às propostas do Gondim. Eu dava os meus primeiros passos na fé reformada, e aquele era um tema crucial. Um Deus que não é soberano? Estranho isso… Finalmente, fui alertado por um amigo que Gondim era adepto da Teologia Relacional. E foi exatamente isso o que eu ouvi mais tarde da boca do próprio Augustus, numa ocasião em que ele pregou na igreja em que eu passei a congregar (saí de uma batista e fui pra uma presbiteriana) – uma exposição na 2ª carta de João, que trata exatamente de como os falsos mestres devem ser tratados. Aquilo que muitos chamariam de “anti-ético” da parte do Augustus eu definiria como amor: amor pela Igreja de Cristo, a qual foi comprada com Seu sangue. Amor que anda em conformidade com a Verdade, como somos ensinados por Paulo (Ef. 4.15).

Aquela escada por trás dele... onde será que vai dar, hein?

Aí me vem esses jovens da Betesta em defesa de um cara que precisa negar a Verdade para afirmar o amor! “Não temos medo de pensar. Temos medo de não amar”, disseram eles na primeira defesa, em 2007 (aqui). Pergunto aos tais: “não amar” o que? O deus limitado do Gondim? Um deus que se faz menor que suas criaturas? Pois saibam que a este deus eu não amo e nunca temerei não amar! “Não terás outros deuses diante de mim”, diz o primeiro mandamento. Isso mesmo! Que dizer do deus do Gondim senão que ele é outro, e, portanto, um ídolo? Ah, o “não amar” se refere ao próximo, é isso? Tanto quanto pior! Pois se eu não possuo uma visão adequada de Deus eu também não posso ter uma visão adequada do homem (e vice-versa), a quem pretendo tomar como próximo. Por isso é que eu também afirmo que não tenho medo de não amar ninguém!

E mais uma vez esses jovens resolveram adotar o discurso autocomiserado do seu mestre. “O Gondim virou o herege da vez. O inimigo da vez. Nada mais mesquinho e estranho ao Evangelho - que nos convida a amar os inimigos, mas parece que o universo evangélico se especializou em produzir inimigos para odiá-los em comunhão”, dizem. Aliás, relativizar a verdade em prol de um amor que só existe na cabeça deles é praxe nesses grupos. Segundo eles, “heresia pressupõe uma verdade absoluta. Na fé cristã essa verdade é o Amor, não uma doutrina ou um dogma”. E este é o motivo pelo qual eles não consideram seu mestre um falso mestre: a “não relativização” do amor. “Por isso não consideramos o Ricardo Gondim um herege, pois nunca o vimos relativizar a revelação que Deus é Amor”. Para justificar o porquê disso eles apelam para a vida corporativa (ou seria vegetativa?) da igreja onde, dominicalmente, Gondim destila seu veneno.

Quem conhece a Betesda e o Gondim sabe que ele prega todos os domingos na [sic] Bíblia e que proclama em alto e bom som a fé cristã: Jesus é Deus encarnado, nascido de uma virgem por meio do Espírito Santo, morreu na cruz por amor de nós, a fim de nos salvar, e ressuscitou no terceiro dia vencendo a morte, estendendo a ressurreição a todos os homens e mulheres por meio da fé.

Notem que nada é dito sobre, por exemplo, a soberania de Deus, porque este é um conceito que eles e os demais relacionais, liberais e et ceteras e tais! detestam. Isso pode ser facilmente explicado pela postura de Esquerda (socialista) assumida por eles. “Heresia”, dizem, “é uma palavra criada para tentar invalidar ideias opostas às ideias vigentes. Criar hereges é fonte de alianças maquiavélicas, para calar a boca de quem incomoda as maiorias, sempre poderosas”. E aqui eles alinham Gondim a Martin Luther King, dizendo que este “também já foi acusado de herege pelos pastores poderosos de sua época - e libertou um povo oprimido, dando a eles direito à cidadania”. Talvez se eles conhecessem um pouco mais da “vida privada” do tal revolucionário seriam mais cautelosos na comparação. Somente para fazer justiça, apesar da minha aversão à postura do Gondim eu não creio que ele, a exemplo do Luther King, plagiou teses na universidade e tem relacionamentos extra-conjugais (leia aqui) – embora teologicamente eles se pareçam. Mas o desvario desses jovens é tanto que resolveram alinhar seu mentor e Luther King a Lutero, os apóstolos e Jesus!

Ele [Gondim] é um herege apenas para quem considera alguma doutrina e lei absolutas. Mas nesse caso, King, Lutero, os apóstolos e o próprio Jesus também eram, então o Gondim está em ótima companhia, e seguindo um excelente caminho.

Quanta cegueira, meu Deus! Será que não percebem que defendendo seu mestre dessa forma tão estúpida estão indo contra o Mestre? Será que não percebem que alinhar Cristo e seus apóstolos a alguém que abertamente relativiza a Verdade e destrona a Jesus do seu patamar de Glória é blasfêmia? Será que não percebem que estão seguindo alguém que está imerso em sua própria incredulidade; um cego, guia de cegos?

Entendam, meu caros. Não é por pedantismo ou arrogância (ah, palavrinha mal entendida!) que digo essas coisas, mas por amor. Inicialmente, por amor a Deus e à Verdade; e também por amor àqueles que estão sendo levados por esse engodo chamado Gondim. Novamente apelando para a experiência comunitária, seus discípulos ainda alegam que “a maior parte de seus acusadores e perseguidores nunca leu um livro que ele escreveu, ou um artigo, uma entrevista, nunca foi à um culto na igreja Betesda do Jardim Marajoara, em São Paulo – onde ele é pastor e prega todos os domingos – não conhece os membros da Betesda e não sabe quase nada sobre a história de vida do Gondim nem da Betesda. Apenas repete o discurso inflamado de seus líderes e pastores que vêem no livre-pensar do Gondim uma ameaça”. Bom, eu realmente nunca fui num culto da Betesda (nem quero ir) e não conheço os seus membros (a não ser pelo que escrevem, agora). Mas já li livros, artigos e entrevistas suficientes do Gondim para querer distância de suas ideias, e a história de vida dele – bem como a de qualquer um de nós – não tem poder algum para testemunhar contra ou a favor da Verdade, visto que, como dizia Calvino, ela sozinha pode manter-se de pé. Não escrevo de uma “torre-de-marfim calvinista”, como alguns podem me acusar. Também vim do pó e ao pó voltarei; sou humano e pequeno. Por isso mesmo é que me reconheço fraco e incapaz; sujeito à minha própria fraqueza. Não obstante, creio firmemente que o Cristo das Escrituras é poderoso para me guardar de todo tropeço e para me apresentar com exultação, imaculado diante da sua glória (Jd 24). É por esse motivo que, embora eu discorde frontalmente dos que defendem esse herege, devo dizer que ainda assim tenho compaixão por eles, no sentido de que oro para que Deus, em sua inaudita Graça, os livre desse laço, assim como um dia eu mesmo fui liberto das trevas e da ignorância a respeito dos atributos e da Pessoa do Eterno. Não posso crer que alguém que diminua tanto a Deus possa ser considerado alguém que O ama em Espírito e em Verdade. Não posso admitir genuína adoração e amor onde a Verdade não impera.

Por isso, se aqui cabe um conselho aos jovens da Betesda (e aos demais enfeitiçados), aqui vai:

Jovens, eu vos escrevi, porque sois fortes, e a palavra de Deus permanece em vós, e tendes vencido o Maligno. 1 Jo 2.24.

De todos os autores neotestamentários, João talvez seja aquele que mais tenha tratado do tema amor e verdade. Para ele esses são conceitos que não podem ser contrapostos nem divorciados, mas juntos dão todo o sentido à existência humana. Opiniões erradas sobre Deus, Jesus e o mundo não podem ser tomadas como “alternativas” à fé, e sim como afronta a ela. Por este exato motivo é que eu rechaço a proposta relacional do Gondim, visto que ela é, na realidade, toatalmente anti-relacional, no mais puro sentido redentivo da palavra. E, assim como um dia Deus me libertou de despencar nesse abismo, oro para que os jovens da Betesda também tenham os seus olhos abertos, antes que seus caminhos tomem um rumo totalmente irreversível.

Que Deus nos ajude!

Soli Deo Gloria!

7 de junho de 2011

Depravação: total, antiga e profunda

O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. (Gn 6:5)
O texto bíblico apresenta o triste diagnóstico da humanidade nos dias de Noé. O pecado havia tomado proporções tais que “o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra; e isso cortou-lhe o coração” (Gn 6:6). A iniquidade se multiplicara grandemente. Porém, a maldade manifesta nada mais era que a consequência de algo que estava no íntimo de cada indivíduo, a depravação total, a qual afeta a todos os descendente de Adão. Do verso em destaque podemos aprender que:

A depravação humana é antiga, tanto historicamente quanto na experiência individual. Gênesis é o primeiro livro da Bíblia e apresenta os primórdios da humanidade. E nessa época já descrevia a situação do homem como sendo afetada drasticamente pelo pecado. Outro livro, talvez mais antigo que Gênesis avalia o homem dizendo “que é impuro e corrupto, e que bebe iniqüidade como água” (Jó 15:16). Desde que nossos primeiros pais pecaram, nossa natureza foi corrompida e sempre nos inclinamos para o que é contrário à vontade de Deus. Na história individual, não é diferente. A depravação se manifesta precocemente: “o seu coração é inteiramente inclinado para o mal desde a infância” (Gn 8:21). O que Davi diz do ímpio pode ser dito dos homens em geral: “erram o caminho desde o ventre; desviam-se os mentirosos desde que nascem” (Sl 58:3).

A depravação humana é total. A totalidade da depravação é explicitada pelos termos “toda” e “sempre” e “somente”. Sempre refere-se ao tempo, o homem pensa o mal o dia todo.Todo inclui todos os desígnios de seu coração como sendo maus. E somente exclui qualquer capacidade de que ele outra coisa senão pecar. Depois de passar em revista todos os homens, Deus conclui que “todos se desviaram, igualmente se corromperam; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer” (Sl 14:3). Nenhum filho de Adão escapa dessa avaliação negativa, Paulo demonstra “que tanto judeus quanto gentios estão debaixo do pecado” (Rm 3:9).

A depravação humana é profunda. O texto descreve a maldade dos contemporâneos de Noé como incluindo casamentos mistos e violência. Mas isso era a ponta do iceberg. A depravação lança suas raízes no mais íntimo das pessoas. Os pensamentos de seu coração é que eram maus e determinavam o comportamento iníquo. O coração representa a essência do homem e dele é que procedem as atitudes e comportamento humanos. O problema consiste em que “o coração é mais enganoso que qualquer outra coisa e sua doença é incurável” (Jr 17:9) e é dele que “saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as imoralidades sexuais, os roubos, os falsos testemunhos e as calúnias” (Mt 15:19). Sendo o coração a sede da depravação, todas as faculdades do homem são por ela afetadas, de modo que nenhum aspecto da natureza humana foge da corrupção que a assola.

Sendo afeta a todos os homens, de todos os tempos e idades, a depravação torna o evangelho necessário, pois somente ele “é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego” (Rm 1:16). Uma reforma exterior ou uma mudança de atitude é ineficaz, além de impossível. “Será que o etíope pode mudar a sua pele? Ou o leopardo as suas pintas? Assim também vocês são incapazes de fazer o bem, vocês que estão acostumados a praticar o mal” (Jr 13:23). É preciso mais que auto-determinação. É necessária uma transformação que comece no interior, no coração.

Porém, essa mesma depravação que requer um poder atuante para que o homem seja tirado dela é, ela própria, um obstáculo à aceitação do evangelho. Pois a pregação precisa ser ouvida, entendida e recebida no coração. Mas o homem, a priori odeia o conteúdo e rejeita a loucura da pregação. Seus coração está indisposto às coisas espirituais, seu ouvidos surdos para os convites do evangelho, seus olhos cegos para perceber sua triste realidade e suas mãos travadas para que não possa estendê-la a Deus. Estando o homem neste estado, ou Deus faz tudo o necessário para salvá-lo ou ele não se salvará de modo algum.

E é isso que Deus faz. “Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo em vocês” (Ez 36:26) é a promessa feita. Essa renovação do coração é imprescindível, pois “com o coração se crê para justiça, e com a boca se confessa para salvação” (Rm 10:10). Essa renovação do coração também é chamada de novo nascimento e “ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo” (Jo 3:3). Mas o novo nascimento é operado exclusivamente por Deus, sem o concurso da vontade humana, pois os nascidos de novo “não nasceram por descendência natural, nem pela vontade da carne nem pela vontade de algum homem, mas nasceram de Deus” (Jo 1:13).

Temos assim que a depravação é total por abranger todas as faculdades, de pessoas e em todas as épocas. Sua sede está no coração do homem e por isso ele é incompletamente incapaz de se livrar dela e fazer o bem aceitável diante de Deus. O único remédio para o homem é nascer de novo e isto somente é possível pelo poder de Deus, cuja operação é pela graça e antecede qualquer ato da vontade humana. Assim, toda glória pela transformação de um depravado num santo é devida unicamente a Deus!

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.