19 de outubro de 2011

O que uma banda de rock pode acrescentar à sua vida?

Publicado originalmente no Reforma e Carisma.
O que uma banda de rock pode acrescentar de bom na vida de uma pessoa? (Joel Parreira Neves, no meu Facebook)
Não, meus caros, desta vez a pergunta que abre o post não é minha. Na verdade, o autor do questionamento quis saber por que eu coloquei em meu Facebook um clipe da música "Nothing else matters", do Metallica. Pouco tempo antes, um comentário anônimo (e, por esta razão, não publicado) colocado no blog 5 Calvinistas, questionava como eu podia ouvir músicas da Katy Perry, sendo que ela teria "vendido a alma ao diabo" e que o rock era uma música de origens demoníacas.

Eu realmente fico espantado em ver o quão "estreita" é a mente de muitos evangélicos. Perguntas como essa são motivos de piada entre aqueles que não são evangélicos e criam barreiras para que muitos se disponham a ouvir a Palavra. E, embora eu já tenha respondido, acho que vale a pena dar uma nova resposta, mas por um ângulo diferente.

A origem da música
Já que muitos recriminam o rock por sua origem rebelde e "pecaminosa", gostaria de analisar a origem bíblica da música. Afinal, uma arte tão celestial e inspirativa só poderia ter sido criada por piedosos filhos de Deus, não é mesmo? Especialmente um instrumento tão "espiritual" como a harpa. Nunca pessoas que são condenadas pelo Senhor poderiam ser responsáveis pela criação de algo tão bom e que leva tantas pessoas a adorarem a Deus!

É mesmo? Vamos ler um texto bíblico então:
Então Caim afastou-se da presença do Senhor e foi viver na terra de Node, a leste do Éden. Caim teve relações com sua mulher, e ela engravidou e deu à luz Enoque. Depois Caim fundou uma cidade, à qual deu o nome do seu filho Enoque. A Enoque nasceu-lhe Irade, Irade gerou a Meujael, Meujael a Metusael, e Metusael a Lameque. Lameque tomou duas mulheres: uma chamava-se Ada e a outra, Zilá. Ada deu à luz Jabal, que foi o pai daqueles que moram em tendas e criam rebanhos. O nome do irmão dele era Jubal, que foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. Zilá também deu à luz um filho, Tubalcaim, que fabricava todo tipo de ferramentas de bronze e de ferro. Tubalcaim teve uma irmã chamada Naamá. (Gênesis 4:16-22)
Caim é o primeiro filho de Adão e o primeiro assassino da Bíblia, responsável pela morte de seu irmão Abel. Por causa deste assassinato, Caim é amaldiçoado e a sua descendência é colocada em Gênesis como sendo a linhagem daqueles que se afastaram de Deus. Os descendentes de Caim seriam opostos aos de Sete, o filho que Deus deu em lugar de Abel, o símbolo da linhagem que permaneceu fiel ao Senhor.

No entanto, curiosamente, os grandes avanços tecnológicos e artísticos da Antiguidade são atribuídos à família de Caim! A primeira cidade do mundo foi fundada por ele. Jabal tornou-se o pai da pecuária nômade em um estágio mais avançado. Abel criava ovelhas, Jabal tinha rebanhos. Tubalcaim foi o pai da metalurgia, sendo apontado como o primeiro a usar o bronze e o ferro. E, veja só, o primeiro músico da Bíblia era Jubal, um cainita.

Se os cristãos não podem aproveitar nada do rock porque ele seria fruto de rebeldes pecadores "que venderam a alma ao diabo"...então, todos nós precisamos voltar para a Idade da Pedra. Afinal, a Idade do Bronze foi inventada por homens perversos, descendentes de um assassino, pelo filho do malvado Lameque, o primeiro bígamo da História! Pelo argumento da origem, teríamos que rejeitar não só o rock, mas toda a música, incluindo aquelas tocadas na harpa e que emocionam os mais idosos...sem falar, é claro, da pecuária comercial, das cidades e de todos os avanços tecnólogicos decorrentes da manipulação de metais.

A graça comum
Fica claro que o argumento da "origem" é estúpido. Com certeza, as cidades, a criação de rebanhos ou a invenção de instrumentos musicais não foi feita com o objetivo de glorificar a Deus. Provavelmente são fruto do esforço e da engenhosidade dos caimitas para tornarem sua vida mais confortável, glorificarem o próprio nome ou até mesmo cultuarem a um outro deus. Desta maneira, a motivação dessas realizações seria pecaminosa, porque a ordem bíblica é a de que:
Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus. (1 Coríntios 10:31)
Todavia, a verdadeira fonte da criatividade caimita não era o pecado, mas sim aquilo que a teologia chama de graça comum. É graça porque são bênçãos que nenhum ser humano merecia possuir, e é comum porque é distribuída livremente entre todos os seres humanos, independente da fé ou de outras características. Como está escrito:
Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, que não muda como sombras inconstantes. (Tiago 1:17)
Creio que, na maioria esmagadora das vezes, o simples uso dessa graça já glorifica a Deus, apesar de nossas intenções pecaminosas. Ao meu ver, a análise exegética de Gênesis deixa claro que os caimitas foram condenados ao inferno, pois permaneceram distantes de Deus, seguindo o exemplo de Caim. Mas isso não muda o fato de que eles abençoaram, e muito, o mundo com seus inventos. Eles ajudaram a diminuir a fome, facilitaram o progresso, prolongaram a vida de muitas pessoas e até ajudaram na divulgação do Evangelho (quantos não se converteram ouvindo músicas que falavam sobre Jesus?).
Como seria a fome no mundo sem os rebanhos?

Desta maneira, não é porque um ritmo ou uma música não falam especificamente sobre Deus que devemos condená-los. Tais coisas são neutras, só se tornam más dependendo do uso que fazemos delas. Um dia alguém pegou a harpa e resolveu tocar uma música sacra, assim como, um dia, alguém fez o mesmo para adorar uma divindade pagã. E, se nós nos valemos livremente de invenções tecnológicas e até mesmo de filosofias e sistemas legais concebidos por corações pecaminosos...por que não podemos fazer o mesmo com a arte?

Mas e a banda de rock?
Sim, mas o que isso tem a ver com o Metallica, alguém deve estar imaginando. Eu diria que tudo a ver. "Ah, mas isso não tem utilidade, não edifica a vida de ninguém". Será?

Justificar a arte é um exercício inútil para mim. Ela é útil porque ela é bela. Ponto, pra mim basta. Mas a arte também toca os corações humanos. Ela influencia as nossas histórias, a forma como vemos o mundo, pode aumentar ou diminuir as emoções, é uma das mais formas mais sublimes de expressão do nosso espírito. A arte não é uma bênção menor do que a ciência ou a filosofia. Se as últimas nos ajudam a pensar e a conhecer, a primeira é uma forma legítima de nos autoconhecermos e expressarmos quem nós somos.

Sim, a ordem bíblica é que algo tão sublime deve ser vivido apenas para a glória de Deus, da mesma forma que deveríamos fazer quando vamos ao banheiro fazer nossas necessidades fisiológicas. Afinal, é tudo para a glória d'Ele, do mais sublime ao mais desonroso. Contudo, isso não significa que só possamos ler livros, ver filmes, cantar músicas ou inventar coisas que façam referências explícitas a Deus.

Como provo isso? A poesia é a mãe das artes, porque ela foi a primeira a surgir. E o primeiro poema, meio simplista, foi de amor, e não sacro. Quando Adão viu a Eva, ele disse:
Disse então o homem: "Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada" (Gênesis 2:23)
Uma banda de rock pode me ajudar a cantar o amor pela mulher amada. Pode me ajudar a cantar, a entender e a expressar sentimentos do meu coração. Pode ser uma forma de ver que eu não sou o único a sentir aquelas coisas, de me ligar a outras pessoas, de me sentir parte de um grupo. Pode até ser usada para levar outras pessoas a adorarem a Cristo, assim como eu.

Mas, acima de tudo, eu ouço Metallica e outros porque eu acredito que posso sim glorificar ao Senhor fazendo isso.

E com vocês, "Nothing else matters": 



Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro

7 comentários:

  1. Caro Helder concordo veemente contigo, pois fui roqueiro antes de me converter, e quando isso aconteceu entrei por essa desinteligência de condenar o que era secular e não clerical.
    Hoje curto meu rock, inclusive Metallica, Literatura e outros mais, sabendo que tudo me é licito, mas nem tudo convém. Isto é, sem peso na consciência, mas crendo que o meu Deus me libertou e por isso tenho direito de escolher, e diferente do nosso inimigo que tenta distorcer tudo que o Criador fez, o nosso Deus é quem nos dá poder de criar.
    Graça e Paz!

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  2. A segunda vez que entro no teu blog, e a primeira que vou concordar com você.Ouvir Rock não é pecado, pecado é o que muitos pastores fazem aí de cobrar além dos dízimos e ofertas de pessoas que não tem nem condição de comprar o que comer direito. Gosto muito de ouvir AC/DC, e muitos falam que é uma banda satânica, só porque em algumas letras eles falam de inferno, não tem nada haver.

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  3. Este texto é uma obra de arte! Sublime.

    Quanto aos cristãos, parece que somos cada dia menos... cristãos. Somos supersticiosos: acreditamos no poder sobrenatural das coisas naturais; somos contraditórios: dizemos que Deus é todo-poderoso, mas atribuímos ao Diabo poderes fantásticos; tentamos nos separar do mundo quando deveríamos nos separar do pecado.

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  4. Caro Helder,

    Compreendo o argumento da graça comum, mas você acredita mesmo que os apóstolos, profetas, ou mesmo nosso Senhor Jesus cantariam a plenos pulmões "I'm on the highway to hell" apesar de toda a harmonia, musicalidade, impressividade do som dos instrumentos se complementando, e toda a "boa arte" envolvida no processo?

    Dizer que "justificar a arte é um exercício inútil" não seria uma reflexão demasiadamente simplista para esse assunto? Posso dizer que existem filmes pornôs altamente conceituais e altamente artísticos, com ótimo trabalho de sonorização, paisagens belíssimas, fotografia sublime, tudo isso em uma imensa suruba totalmente repleta de imoralidade sexual e tudo que Deus abomina.

    Não sei se você entende a aplicação da graça comum como os reformadores a conceberam, mas tenho certeza que a graça comum é obviamente submissa ao seguinte princípio bíblico:

    "Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas". Filipenses 4:8

    Como posso cantar "I'm on the highway to hell" tendo esse princípio em mente e buscando cheguar à maturidade, para atingir a medida da plenitude de Cristo (Efésios 4.13)?

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  5. Caro Ronaldo,
    O Helder não cita AC/DC ou Highway to Hell, pelo que sua crítica, num primeiro momento, não se aplica. E embora isto seja citado em comentário, o tom é de "aproveitemos o que é bom". Pelo que também a crítica não se aplicaria.
    Isto dito, eu chamo a atenção para dois pontos:
    1) A graça comum fala do que pode haver de verdade na boca de ímpios. E isto inclui a arte, quando verdadeiramente arte, pelo talento de ímpios. E ninguém se engane: tais talentos têm uma única Fonte. Isto em nada implica em cantar "I'm on the highway to hell", se a letra, que não conheço, ficar só nisso.
    2) Por outro lado, há músicas cristãs que falam do contraste entre condições. Nestas, a letra afirma o caminho ao inferno, para depois falar da alegria da salvação. Talvez as letras não digam as mesmas palavras, mas elas estão dizendo e o cristão cantando que vai ao inferno sem Deus. Pelo que o contexto pode permitir cantar o caminho ao inferno.
    Mas, talvez voltando ao que realmente interessa, alguém já perguntou e faço coro: por que só o diabo deveria ter música boa?
    Sim, eu ouviria AC/DC, se gostasse. Reteria o que fosse bom e dispensaria o que fosse dispensável.
    A Deus seja a glória em tudo!
    Roberto

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  6. A propósito, a arte é muitas vezes subversão. Diferentemente de outros tipos de texto que precisam se comunicar com precisão unívoca, a poesia, escrita ou cantada, permite ao leitor ir onde o autor não tinha a mínima intenção. Experimente ler "Nothing else matters" como louvor a Deus. Subverta razão e razões, recebendo tudo com ações de graças ao Logos!

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  7. Caro Roberto,

    Meu ponto ficou claro logo na introdução de sua resposta, se concordamos que a graça comum deve ser submissa a Fp 4.8 então minha dúvida foi esclarecida, ou seja, nem toda arte é útil ou glorifica a Deus, não estou aqui separando arte "cristã" de arte "secular", mas apenas de arte que glorifica ou não a Deus (seu ser e as obras de suas mãos).

    Cordialmente,
    Ronaldo

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