27 de abril de 2010

A melhor farda para Deus

Em todos os quarteis em que passei a história sempre se repete: visita (inspeção) de general, seja ele de Brigada, Divisão ou Exército, é sinônimo de muita, mas muita correria. Afinal de contas, trata-se de recepcionar o mais alto posto* do Exército. As instalações ganham pintura nova; a grama é aparada; o mato é arrancado; a documentação das seções é atualizada – ou seja, toda uma marcha frenética para deixar tudo nos trinques e causar uma ótima impressão no chefe, impressão esta que é confirmada com uma formatura digna de uma tropa adestrada, vibrante e de refinada ordem unida. Inclusive a farda do pessoal tem que estar em perfeitas condições, principalmente para a guarda-do-quartel, que é a primeira a receber a autoridade que ora chega. Costumamos alcunhar a referida guarda de “o cartão de visitas” do batalhão. Recentemente, comandei uma dessas guardas por ocasião da visita de um general-de-exército ao quartel onde sirvo. Os soldados receberam, cada um, uma farda nova somente para a ocasião. “É que, para o general, tem que ser a melhor farda” – diziam alguns dos oficiais do batalhão. “Até parece que o general é Deus [sic]” – rebatiam algumas praças indignadas.

Não quero discutir se a razão está com os oficiais ou com as praças, mas aproveitar a deixa deles para uma reflexão: será que estamos sempre preocupados em colocar “a melhor farda” para Deus? Ou será que deixamos isso apenas para as ocasiões que consideramo s “especiais” (momento de oração, culto dominical, etc.)?

Se formos pensar em “farda” com sendo nossa justiça própria, é certo que não nascemos com uma que seja suficiente para merecermos o favor de Deus. De acordo com o profeta Isaías, até mesmo nossas ações mais respeitáveis não passam de “trapos de imundícia” aos olhos dAquele que é Santo, Santo, Santo (Is 64.6 – cf. cap. 6). As folhas de figueira (justiça própria) confeccionadas pelo casal edênico não foram suficientes para encobri-lo de sua nudez – foi necessário que o próprio Deus lhes providenciasse a vestimenta (Gn 3.7-21). A única forma possível de se agradar a Deus é, pois, vestir-se com a “farda” que Ele mesmo oferece: a justiça de Jesus Cristo, seu Filho, que cobre nossos pecados e nos torna aceitáveis diante do Pai; não por nossos próprios méritos, mas exclusivamente por Sua Soberana Graça.

Uma vez, pois, revestidos da justiça de Cristo, cabe a nós andarmos em novidade de vida (Rm 6.4), despojando-nos do nosso “velho homem” (a “velha farda”) e revestindo-se do “novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4.22-24). Esta é a “farda nova” com a qual devemos sempre andar diante do nosso General, o Senhor dos Exércitos. Uma vez que chegamos à situação de “nova criatura” (2Co 5.17), nosso Criador espera que vivamos como tal. E, assim como no exército terreno o soldado não pode usar uma peça que não esteja prevista no regulamento de uniformes, assim também o soldado de Cristo não pode inventar a sua própria “indumentária espiritual”. Paulo mesmo é quem diz que nossa justiça e retidão são procedentes única e exclusivamente “da verdade”. Não podemos buscar o padrão requerido por Deus em outra fonte. Qualquer disciplina espiritual que fuja dos padrões estabelecidos por Ele redundar-se-á em desobediência (indisciplina) e fanatismo (cegueira). Portanto, exercícios como penitências, ascetismo religioso e vida monástica, por exemplo, para nada servem se não estiverem respaldados pelo “Regulamento de Deus” – a Escritura Sagrada.

Mas que isto não sirva de evasiva para aqueles que querem esquivar-se de suas responsabilidades! Todo quartel deveria sempre estar com sua faxina, instalações e documentação em dia, mesmo que não esteja prestes a ser inspecionado por algum general. E um bom soldado é exatamente aquele que faz o que é certo mesmo sem estar diante de seu superior. Tal atitude é responsabilidade de cada um. É o que chamamos aqui no Exército de “disciplina consciente”. O que deve motivar um filho de Deus, entretanto, não é exatamente o fato de ele saber que os olhos do Senhor estão em absolutamente em todos os lugares, perscrutando minuciosamente nossas mais “insignificantes” imperfeições (cf. Sl 139), mas o fato de que ofender a Deus é algo tão monstruoso que ele deve odiar tal coisa do fundo de sua alma. Assim como o bom soldado não busca agradar a seu senhor somente para se ver livre do peso de sua mão, o soldado de Cristo não deve agradá-lo somente para escapar do terror porvir – o Juízo Final. Como bem disse Calvino, “visto que o fiel ama a Deus como seu Pai e o teme como seu Senhor, mesmo que não existisse inferno, ofender a Deus lhe causaria horror”. E aí, podemos dizer o mesmo? Ou melhor, podemos viver o mesmo? Se o nosso General viesse agora, você estaria em condições de ser arregimentado ao Exército Celestial? A propósito, você já escolheu a sua “melhor farda” hoje?

Soli Deo Gloria!

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* O posto mais alto do Exército, na realidade, é o de marechal. Mas no Brasil tal posto só é ocupado em caso de guerra.

21 de abril de 2010

Que é o homem?

Que é o homem mortal para que te lembres dele?
e o filho do homem, para que o visites? Sl 8:4

O conhecimento correto da natureza humana só é possível depois de se olhar para Deus. A teologia moderna comete erro referencial ao olhar para o homem para compreender a divindade. Como o homem é criação de Deus, que lhe comunicou alguns de Seus atributos mas não outros, conhecer a Deus como revelado nas Escrituras nos ajuda a ter um compreensão mais preciso do que o homem é, e do que não é.

As tentativas da biologia, filosofia e psicologia em definir o homem sempre resultam em distorções que, quando não enfatizam um aspecto de sua natureza em detrimento de outro, corrompem a totalidade do homem. Igualmente erradas e talvez mais danosas que as visões atéias são as concepções religiosas sobre a humanidade que não derivam do que Deus revelou em Sua Palavra. Para saber o que o homem é, devemos perguntar a quem o criou.

Físico e espiritual

O relato do Gênesis dá conta de que "formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente" (Gn 2:7). O homem é tanto um ser natural, biológico e mortal como também é espiritual, supranatural e feito imortal. Apesar de sua natureza dual, o homem apresenta uma unidade. O homem não é um corpo com alma, nem uma alma num corpo, mas a união de corpo e alma é que o faz homem. As ações do homem não são apresentadas como atos do espírito, alma ou corpo humano, mas da pessoa como um todo.

A ênfase da filosofia moderna é numa antropologia naturalista, que nega o elemento espiritual do homem, quando muito reduzindo-o ao que se chama de mente. Esta visão da natureza humana fundamenta-se nos princípios humanistas do anti-sobrenaturalismo, na ética centrada no homem, no compromisso com a razão crítica e preocupações humanitárias. Há uma confiança exagerada nos seres humanos, em cuja experiência e necessidades encontra-se a base para a moralidade. E tudo o que a ciência tem para dizer do homem não o descreve por completo, fica faltando o elemento humano. Não vai além de classificar o homem como sendo um mamífero do gênero homo e espécie sapiens. Ou de descreve-lo como um amontoado de órgãos, tecidos e células, composto de carbono,  água e minerais com uma mente consciente, com poder mental, emocional e volitivo.

Apesar de todo esforço da filosofia humanista e dos defensores da evolução biológica em libertar o homem do sobrenatural, a humanidade experimenta um florescimento do espiritualismo, onde uma ênfase distorcida do elemento não físico do homem é supervalorizada como sendo uma centelha divina. Na verdade, o que se apregoa é que os homens são deuses ou pelo menos possuem uma identidade com a divindade. Esta antropologia não é nova, no início da igreja já se fez presente pelo gnosticismo, cujo melhor representante moderno é o Movimento da Nova Era. O espírito do homem é uma emanação de Deus, e portanto bom, aprisionado num corpo material, que como toda matéria, é mau.

Os dois pontos de vista apresentado são danosos, o primeiro excluir Deus da história do homem, ou pelo menos torná-lo sem significado. Além de promover uma ética hedonista e utilitarista, que quando infiltrada na igreja resulta no pragmatismo religioso, onde Deus é o servo e o homem é servido. O segundo, porém, é mais prejudicial ainda, pois espiritualismo é facilmente confundido com espiritualidade, oração é confundida com magia e atos proféticos tornam-se meios de liberação de energia cósmica, mesmo se chamada de poder espiritual. Curiosamente, este espiritualismo acaba a serviço do materialismo próprio da filosofia humanista.

Imagem de Deus

A Bíblia nos relata ainda que "disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra" (Gn 1:26). Discussões à parte do que seja a imagem e semelhança de Deus, ou mesmo se imagem e semelhança referem-se a aspectos distintos, o fato é que a Bíblia afirma que de alguma forma o homem espelha a Deus.

O fato de que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança aponta para arealidade de que originalmente o homem era essencialmente bom. Aliás, esta é a conclusão do próprio Deus ao contemplar Sua obra concluída. Contrariando o postulado gnóstico de que a matéria é essencialmente má, do homem feito do pó da terra se diz que "pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste" (Sl 8:5). Não é desprovido de motivos que se diz do homem ser ele a coroa e glória da criação, pois Deus o trouxe à existência de maneira especial, colocou nele sua imagem, soprando-lhe o espírito para que vivesse e dominasse sobre a criação.

Pecador

Uma antropologia nunca seria bíblica se não considerasse no homem os terríveis efeitos da queda. Deus havia ordenado ao homem "da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás" (Gn 2:17), porém ele desobedeceu, comeu do fruto proibido e "o SENHOR Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado" (Gn 3:23). Esta morte experimentada pelo homem foi primeiramente espiritual, mas leva à morte física e o sujeita ao dano da segunda morte.

Não devemos diminuir as trágicas consequências do pecado na natureza humana. Antes da queda o homem era essencialmente bom, depois porém, tornou-se completamente depravada. Isto não significa que a imagem de Deus no homem foi perdida, mas que todas as suas faculdades estão tão arruinadas que nada nele o recomenda para Deus. Aliás, em sua condição de alienação, o homem sequer deseja ser aceito por Deus, embora condicionado por uma cultura cristã e motivado por um hedonismo mais que egoísta, deseje "ir para o céu" e tema "ir para o inferno". Mas não pode desejar e deleitar-se em Deus na sua condição arruinada.

A situação descrita anterioriormente não é própria de algumas pessoas, mas refere-se a todos os filhos de Adão. Existe o que podemos chamar de pecaminosidade universal, na medida em que todos nascemos com uma natureza corrompida e herdamos a culpa de nossos pais. Nós não apenas somos pecadores porque pecamos, mas sobretudo pecamos porque somos pecadores. E a justiça de um Deus santo requer que nosso pecado seja castigado e a culpa expiada. Sendo o salário do pecado a morte, todos morremos em Adão e todos somos culpados diante de Deus.

A condição do homem caído é trágica, haja vista que ele encontra-se num estado de depravação total. Porém isto não significa que ele seja tão mau quanto poderia, mas que não é bom como deveria ser. E o que limita o pecado humano é a graça comum de Deus, pela qual a verdade e a moral são preservadas entre a raça caída. Existe um senso comum do que seja verdadeiro, bom e belo, e isso se deve à graça geral de Deus. Essa mesma graça, contudo, torna os homens indesculpáveis diante de Deus, na medida que testemunha de Sua existência, bondade e poder.

Remido

Todo o que foi dito anteriormente sobre a natureza pecaminosa aplica-se a todos os homens, sem exceção outra a não ser Jesus. Este, além de viver uma vida impecável em dos eleitos, por estes também morreu na cruz, cumprindo a promessa feita no dia da Queda: "porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gn 3:15). Deus lançou sobre Jesus nossas dívidas e em nossa conta a justiça perfeita de Seu Filho. Não apenas isso, mas pelo Seu Espírito regenera a todos os que são chamados pelo poder do evangelho, fazendo-os novas criaturas, dando-lhe uma natureza renovada. A imagem de Deus outrora quase totalmente apagada, agora passa a ser recuperada até refletir de forma mais perfeita a imagem de Seu Filho, o que se completará na volta dEle para Sua igreja. Então entraremos na glória, onde não sabemos como seremos, mas sabemos que como Ele é, seremos nós também.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras vezes na quarta-feira.

20 de abril de 2010

Corpo: o “cárcere” da alma? Calvino e a antropologia platonista

[Em minha última postagem expus brevemente o que Calvino pensava de Platão. Agora, nosso objetivo é averiguar até que ponto o reformador francês foi influenciado pelo filósofo grego no tocante à doutrina do homem (antropologia), particularmente no que se refere à polêmica relação corpo/alma. O texto está mais extenso do que eu pretendia, mas consideremos que as citações a Calvino, que ocupam a maior parte do presente artigo, foram indispensáveis à nossa exposição e pesquisa].

***

Recentemente estive discutindo com alguns amigos sobre o que Calvino pensava da máxima platônica de que o corpo é o “cárcere” da alma. Todos eles se mostraram surpresos quando lhes mostrei trechos das Institutas em que Calvino explicitamente usa a terminologia platônica. “É. É platonismo mesmo!” – exclamavam eles à medida em que liam. Eu lhes disse que escreveria algo para tentar esclarecer essa questão, o que comecei a fazer em minha postagem anterior. É óbvio que para um calvinista não é fácil escrever discordando de Calvino; não que Calvino seja perfeito, mas o fato é que muitos de nós, os reformados, sofremos de um tipo muito suspeito de “miopia” quando alguma tarefa exige que enxerguemos os desacertos do reformador. No meio da conversa com um deles, cheguei até mesmo a suplicar (humoristicamente, é óbvio!) para que Deus afastasse de mim esse “cálice”, mas este amigo me disse (com muita propriedade, diga-se de passagem) que expor tal questão será bom para demolir certas ideias que muitos nutrem a respeito de nós, a saber, que somos “mais discípulos de Calvino do que de Cristo”, que consideramos Calvino infalível, etc. As palavras que se seguem, portanto, são uma tentativa de desmistificar umas coisas (que somos “calvinistas fanáticos e cegos”), esclarecer outras (se Calvino era ou não platônico) e reafirmar mais algumas (que, a despeito de suas falhas, ele continua sendo um grande teólogo; e que o Sola Scriptura subjuga a qualquer escrito humano).

[PLATÃO E O “CÁRCERE”]

A ideia de que o corpo é o “cárcere” da alma remonta ao filósofo grego Platão (427-347 a.C.), um dos mais influentes pensadores de todos os tempos. Em um trecho de Fédon, uma de suas obras mais conhecidas, esse pensamento se torna flagrante:

É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma, quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão, através da qual ela devia forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por seus próprios meios e através de si mesma; que, enfim, ela estava submersa numa ignorância absoluta.

Fédon, 82d.

Platão cria que as almas são eternas (preexistentes) e habitam no mundo das ideias. Antes de encarnarem, elas passam por uma espécie de “esquecimento”, e nascem (encarnam) esquecidas de tudo. Desde então, tudo o que querem é voltar ao mundo das ideias (o “hiperurânio”), livrando-se da “prisão” da carne (do corpo). “A libertação desta prisão pode ser conseguida mediante cerimônias báquicas, através da graça dos deuses que providenciam a redenção, ou mediante a renúncia ascética da existência terrestre. Hermes leva as almas imortais ao outro mundo. Ali, para os não iniciados, os amyetoi e os atelestoi, aguarda a lama (borboros) do hades (Platão, Phaedo 60c)” [TDNT, p. 71].

Para Platão, quem tem a função de trazer à memória da alma (Teoria da Reminiscência) o conhecimento que ela tinha no mundo das ideias é a filosofia, que assume, no contexto platônico, a identidade própria da piedade (religião). Os desdobramentos do platonismo podem ser encontrados tanto na filosofia gnóstica, que rejeitava a carne como sendo inferior e até mesmo “má”, quanto no neoplatonismo, que foi uma tentativa de interpretar o platonismo clássico em termos do misticismo.

[CALVINO E O “CÁRCERE”]

Para evitar prolixidade demasiada, vou procurar ser o mais específico possível.

Calvino julgou como “verazes”, “agradáveis de se conhecer” e “proveitosas” certas coisas que os filósofos ensinaram sobre a alma. Referindo-se às faculdades desta, Calvino diz que

Quanto, porém, às próprias faculdades da alma, relego aos filósofos que dissertem com mais sutileza. Para que a piedade seja edificada, nos será suficiente uma definição singela. Confesso que as coisas que ensinam são realmente verazes, não apenas agradáveis de se conhecer, como também são proveitosas e por eles habilidosamente coligidas, nem tampouco proíbo de seu estudo aqueles que estão desejosos de aprender.

Institutas. I.15.6.

Embora Calvino não tenha citado nomes, penso que o filósofo que ele tem em mente é mesmo Platão, visto que, no parágrafo seguinte, ele o cita. Além do mais, o reformador ainda diz, nesta mesma seção, que

Seria estulto buscar definição de alma da parte dos filósofos, dos quais quase nenhum, excetuando Platão, tem plenamente afirmado ser sua substância imortal.

Institutas. I.15.6.

Calvino ainda parece concordar com o que Platão fala acerca dos cinco sentidos, aos quais, diz o reformador, “mais agrada a Platão designá-los de órgãos, mediante os quais todas as coisas postas diante de nós se instilam no senso comum, como em uma espécie de receptáculo” (Institutas. I.15.6).

Assim como o filósofo, o reformador também cria na imortalidade da alma, porém não do mesmo modo que Platão, que cria na imortalidade desta em termos de sua preexistência. Para Calvino, a alma não é imortal por si mesma, mas sua imortalidade foi-lhe comunicada por Deus, o único Ser imortal por Si mesmo. Sobre a passagem de 1 Timóteo 4.16, onde Paulo se refere a Deus como “o único que possui imortalidade”, Calvino comenta que

[…] Paulo não está negando que Deus confira imortalidade a algumas de suas criaturas como lhe apraz; mas é ainda verdade que unicamente Ele a possui. É como se o apóstolo dissesse que Deus não é só o único ser inerentemente e por sua própria natureza imortal, mas também que Ele tem a imortalidade em seu poder, de modo que ela não pertence às criaturas, senão até ao ponto em ele lhes comunica energia e poder.

As pastorais. Ed. Fiel, 2009. p. 177.

Até aqui tudo bem; nada de tão comprometedor assim. O “problema” começa quando o corpo entra em cena, e Calvino resolve usar conceitos e terminologias platônicas para designá-lo.

Penso que a assertiva mais comprometedora do reformador no que se refere ao assunto que estamos considerando é a que segue:

E Cristo, encomendando o espírito ao Pai [Lc 23.46], como também Estêvão o seu a Cristo [At 7.59], não entendem outra coisa senão isto: quando a alma é liberada do cárcere da carne, Deus lhe é o perpétuo guardião.

Institutas, I.15.2.

Se Calvino tivesse omitido a Cristo e a Estêvão, menos mal. Mas o problema está justamente no fato de ele usar tais exemplos para apoiar seu parecer. A pergunta que devemos fazer é: será mesmo que Cristo ansiava por libertar-se do “cárcere” da carne quando entregou seu espírito ao Pai (Lc 23.46)? Será que era isto mesmo que Ele tinha em mente? E Estêvão (At 7.59), idem? Penso que o que Calvino fala aqui, infelizmente, não pode se sustentar diante de uma exegese firme e sadia.

Assim como Platão, Calvino também entendia que a alma é mais sublime que o corpo:

Afinal, que o ser humano consta de alma e corpo, deve estar além de toda controvérsia. E pela palavra alma entendo uma essência imortal, contudo criada, que lhe é das duas a parte mais nobre.

Institutas. I.15.2.

E não somente isto, mas também que a alma é essenciada, enquanto que o corpo não o é:

Ora, se a alma não fosse algo essenciado, distinto do corpo, a Escritura não ensinaria que habitamos casas de barro e que na morte migramos do tabernáculo da carne, despojamo-nos do que é corruptível para que, por fim, no último dia recebamos a recompensa, em conformidade com o que, enquanto no corpo, cada um praticou.

Institutas. I.15.2.

Todavia, os textos da Escrituras que Calvino usa para apoiar sua ideia (a de que a alma é essenciada) não a justificam, a menos que neguemos que nossa ressurreição será, de fato, corpórea. Ora, incorruptibilidade não significa imaterialidade (cf. Lc 24.39; Jo 20.27).

Parece que Calvino cria, assim como Platão, que uma alma não regenerada igualava-se ao corpo mortal. Notemos a semelhança entre um trecho de Fédon e o comentário de Calvino à passagem de Romanos 7.24 (“quem me livrará do corpo desta morte?”):

Platão:

“Todo prazer e todo sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim, com que ela se torne material e passe a julgar a verdade das coisas conforme as indicações do corpo” (Fédon, 83d – negrito meu).

Calvino:

“O termo corpo significa o mesmo que homem exterior e membros […] . Ainda que ele exceda os brutos, sua verdadeira excelência foi-lhe arrebatada, e o que resta está saturado de infindas corrupções, de modo que, enquanto sua alma não for regenerada, pode-se dizer com razão que ela se converteu em seu corpo” (Romanos. Ed. Parakletos, p. 262 – negrito meu).

Realmente, o posicionamento de Calvino aqui é muito estranho. A menos que ele esteja se referindo ao estado insolúvel daqueles que não hão de se converter e parecerão, de corpo e alma (literalmente), no inferno, sua sentença até que poderia ser considerada. Contudo, o próprio contexto deixa claro que não era isto que o reformador tinha em mente.

Mas antes que façamos julgamentos precoces acerca de Calvino, dizendo que ele é um “platônico moderado” (ou mesmo, “inveterado”) e coisas do tipo, é bom atentarmos para uma coisa: qualquer intérprete sagaz perceberá que o reformador, muitas vezes, interpretava Platão nos termos da fé cristã.

Por exemplo, quando ele concorda com o filósofo sobre a correta forma de orar, ele não está sugerindo que oremos ao deus Júpiter, mas que peçamos ao nosso Deus somente aquilo que Ele mesmo nos instrui a pedir.

Como visse a imperícia dos homens na apresentação de seus rogos a Deus, os quais, se concedidos, muitas vezes lhes seria prejudicial, Platão declara que a melhor forma de orar é esta, apropriada de um poeta antigo: “Ó Rei Júpiter, confere-nos as coisas melhores, quer as desejemos, quer não; as coisas más, porém, ordena que fiquem longe de nós, ainda quando as peçamos”. E esse homem, na verdade pagão, nisto é sábio, porque sentencia quão perigoso é buscar do Senhor o que nossa cabeça haja ditado; ao mesmo tempo, põe à mostra nossa infelicidade, visto que, na realidade, nem podemos abrir a boca diante de Deus, sem grave perigo, a não ser que o Espírito nos instrua sobre a norma certa de orar [Rm 8.26].

Institutas. III.20.35.

Ora, Paulo não fez o mesmo quando se apropriou de um poema pagão para mostrar aos gregos que “dele [de Deus] também somos geração” (At 17.28)? Não estou expondo isso para “livrar o pescoço” do reformador, mas para que sejamos imparciais e desapaixonados ao máximo em nossa abordagem. Essa tendência em Calvino pode ser encontrada mais uma vez numa rara passagem das Institutas, onde o “cárcere” e Platão aparecem ali, juntinhos. Calvino, novamente, vale-se do filósofo, agora para ilustrar a incessante busca do crente pela santificação:

Portanto, enquanto habitamos no cárcere de nosso corpo, temos de lutar continuamente com as imperfeições de nossa natureza corrupta; na verdade, com nossa alma natural. Platão diz algumas vezes que a vida do filósofo é a meditação da morte. Com verdade maior, podemos dizer que a vida do cristão é um contínuo esforço e exercício para a mortificação da carne, até que, morta inteiramente, o Espírito de Deus obtenha em nós o reino.

Institutas. III.3.20.

Seria no mínimo insensato de nossa parte não admitirmos isto. O que para Platão era um ascetismo sem fim, Calvino traduziu em uma contínua busca (do crente) pela santidade que Deus requer de seus filhos. Este mesmo princípio analógico utilizado pelo reformador também pode ser encontrado na seguinte frase:

Tampouco nos deixemos afastar pelo temor ou nos subtraiamos à sua instrução porque prescreve uma santidade muito mais estrita do que haveremos de experimentar enquanto carregarmos conosco o cárcere de nosso corpo.

Institutas. II.7.13.

Nesse caso, Calvino está se referindo ao próprio padrão de retidão que Deus estabeleceu para nós – a sua Lei. Outras passagens em que o reformador expõe a dificuldade da nossa peregrinação valendo-se da ideia do “cárcere”:

“Mas, uma vez que não sobeja a ninguém tanta força, neste cárcere terreno do corpo, que se possa avançar com a justa celeridade da corrida, ao contrário tão grande fraqueza oprime a grande maioria que, vacilando e claudicando, até mesmo rastejando no solo à frente se movem com dificuldade, avancemos, cada um segundo a medida de sua reduzida capacidade, e prossigamos a jornada iniciada. Ninguém vagueará tão desafortunadamente que não avance cada dia ao menos um pouco de caminho” (Institutas. III.6.5);

“Pois uma vez que esperamos coisas que não se vêem [Rm 8.25], e, como se diz em outro lugar, “a fé é a demonstração de coisas invisíveis [Hb 11.1], enquanto estivermos encerrados no cárcere da carne, somos “peregrinos longe do Senhor” [2Co 5.6]. Por essa razão, o próprio Paulo diz em outro lugar que “já morremos e nossa vida está escondida com Cristo em Deus, e quando ele próprio, que é nossa vida, se manifestar, então também nos manifestaremos com ele em glória” [Cl 3.3, 4]. Esta, pois, é nossa condição: “que vivamos sóbria, justa e piedosamente neste mundo, aguardando a bendita esperança e a vinda da glória do grande Deus e nosso Salvador, Jesus Cristo” [Tt 2.12, 13]” (Institutas. III.25.1).

Em seu comentário sobre o texto de 2 Coríntios 5.4, onde Paulo fala algo acerca das angústias que sofremos em nossa presente vida (“neste tabernáculo”), Calvino parece endossar algo parecido:

[…] Ademais, ele explica a metáfora, dizendo: a fim de que a mortalidade seja absorvida pela vida. Visto que carne e sangue não podem herdar o reino de Deus [1Co 15.50], o que é corruptível em nossa natureza precisa morrer, para que sejamos completamente renovados e restaurados a um estado de perfeição. Esta é a razão porque nosso corpo é tido como uma prisão (carcer) da alma.

2 Coríntios. Ed. Fiel, 2009, p. 137 – 2Co 5.4.

A isto podemos agregar o que ele disse sobre a perfeita liberdade que haveremos de gozar por ocasião da nossa glorificação:

Se ser libertado do corpo é ser lançado à perfeita liberdade, que outra coisa é o corpo senão um cárcere? Se fruir da presença de Deus é a suprema síntese da felicidade, porventura não é miserando carecer dela? Com efeito, até que nos tenhamos evadido do mundo, peregrinamos longe do Senhor [2Co 5.6].

Institutas. III.9.4.

Calvino ainda fala do “cárcere” para se referir ao meio que Deus, por sua “admirável” Providência, estabeleceu para que nos achegássemos a ele – a sua santa Igreja:

Ora, visto que, encerrados no cárcere de nossa carne, ainda não chegamos ao grau angélico, Deus, acomodando-se a nossa capacidade, por sua admirável providência, prescreveu um modo pelo qual, por mais longe estejamos afastados, a ele nos achegássemos.

Insitutas. IV.1.1 (vd. contexto).

Calvino também associava a ideia do “cárcere” ao pecado. Sobre o fato de o batismo não nos livrar de pecar, Calvino diz que

O batismo, na verdade, nos promete ter sido afogado nosso faraó [Ex 14.27, 28] e a mortificação de nosso pecado; entretanto, não a um tal grau que não mais exista, ou que não nos cause dificuldade, mas somente que não mais nos sobrepuje. Porque, por todo o tempo que passarmos enclausurados neste cárcere de nosso corpo, em nós residirão remanescentes do pecado; mas, se em fé mantivermos a promessa a nós dada por Deus no batismo, sobre nós não dominarão, nem reinarão.

Institutas. IV. 15.11.

Calvino também falou em “cárcere” com relação a Jesus. O reformador se defende contra as acusações de que ele estaria “confinando” (limitando) o logos de Deus à natureza humana de Cristo:

Também, o que nos lançam em rosto como sendo absurdo, a saber, se a Palavra de Deus vestiu a carne, logo foi ela confinada ao cárcere estrito de um corpo terreno, é puro descaramento, pois embora a essência infinita do Verbo se unisse com a natureza de um homem em uma pessoa única, no entanto não imaginamos haver qualquer confinamento.

Institutas. II.13.4.

É provável que os acusadores de Calvino tenham se valido dos próprios ditos do reformador para acusarem-no de tal blasfêmia.

Em outro trecho das Institutas, onde Calvino habilmente refuta a doutrina romana da transubstanciação, mais uma vez o “cárcere” aparece, mas (penso eu) não com a concepção platônica. E mais uma vez o assunto envolve a pessoa de Cristo:

A menos que o corpo de Cristo possa estar em toda parte a um mesmo tempo, sem qualquer limitação de lugar, não será crível estar ele escondido sob o pão na Ceia. Por esta necessidade foi por eles [os escolásticos] introduzida a monstruosa noção de ubiqüidade [onipresença]. Mas, à luz de sólidos e claros testemunhos da Escritura, demonstrou-se que o corpo de Cristo está circunscrito pela medida de um corpo humano; além disso, por sua ascensão ao céu, ficou claramente manifesto que ele não está em todos os lugares; ao contrário disso, quando ele passa a um lugar, deixa o anterior. […] Desta maneira, o Filho do Homem estava também no céu, porque o mesmo Cristo que, segundo a carne, como Filho do Homem habitava na terra, como Deus estava no céu. Razão por que nessa própria passagem se diz que ele desceu segundo a divindade, não que a divindade deixasse o céu para esconder-se no cárcere do corpo, mas porque, embora a tudo enchesse, contudo na própria humanidade de Cristo habitava corporalmente [Cl 2.9], isto é, segundo a natureza, e de certo modo inefável.

Institutas. IV.17.30.

Além do mais, precisamos cuidar para que não desloquemos as frases do reformador do contexto em que foram ditas. Por exemplo, Calvino estava se referindo à divindade de Jesus quando disse que

[…] a não ser que as almas liberadas dos cárceres dos corpos continuassem a existir, seria absurdo Cristo representar a alma de Lázaro a desfrutar de bem aventurança no seio de Abraão, e a alma do rico, por outro lado, destinada a horrendos tormentos [Lc 16.22, 23].

Institutas. II.13.4

É interessante o fato de que, sobre as passagens bíblicas em que Calvino mais deveria expor esse seu parecer, ele simplesmente nem toca no assunto. Por exemplo, sobre passagem em que Paulo diz que nosso corpo é o “santuário” (templo) do Espírito Santo (1Co 6.19), Calvino observa que

Há uma ênfase implícita no uso do termo templo, pois, visto que o Espírito de Deus não pode permanecer num ambiente impuro, só nos tornamos sua moradia quando nos consagramos como seus templos [Sl 132.14]. Que grande honra Deus nos confere em habitar em nós! Portanto, devemos viver em pleno temor a fim de não o expulsarmos, e ele, por sua vez, nos abandone, irado com nossos atos sacrílegos.

1 Coríntios. Ed. Parakletos, p. 195.

Também sobre o texto de Romanos 7.24, onde o apóstolo Paulo pergunta quem o livraria “do corpo desta morte”, Calvino comentou que

Pela expressão o corpo desta morte ele quer dizer a massa de pecado, ou as partes constituitivas que pervadem o homem todo, exceto que em seu caso só ficou um resquício de pecado, que o mantém cativo.

Romanos. Ed. Parakletos, p. 262.

Sobre Filipenses 1.23, onde Paulo expressa seu desejo de “partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor”, Calvino comenta apenas que se alguém desejar a morte, que seja para estar ao lado de Cristo. Ele vê esse tipo de desejo como absolutamente legítimo, diferenciando os crentes daqueles que não tem nenhuma esperança:

Pessoas profanas falam da morte como a destruição do homem, como se ele fosse completamente extingui-se. Paulo aqui nos lembra que a morte é a separação da alma do corpo. E isto ele expressa imediatamente depois, explicando com que condição esperam os crentes depois de morrerem – de estarem com Cristo.

Commentary on the Epistle to the Philippians. Books for the Ages. AGES Software, Albany, EUA, 1998. p. 34 – tradução minha.

[CONCLUSÃO]

Seria bem mais confortável para um calvinista concordar com as ideias de Platão somente para isentar Calvino de suas incongruências. Todavia, não foi este o caminho que resolvemos adotar aqui. O homem não é uma entidade bi ou tripartida (dicotomia x tricotomia), mas uma unidade psicossomática. Quando ressuscitarmos em glória, é certo que teremos um corpo incorruptível, porém material. Sendo assim, não posso concordar, por exemplo, que a alma é “mais nobre” que o corpo, somente porque ela é uma “substância incorpórea”, ao passo que o corpo não o é.

Como todo homem mortal, Calvino também laborou em erros. Mas isso não denigre de forma alguma a imagem de grande teólogo e homem de Deus que ele foi. Precisamos, como bons leitores, reconhecer ambas as coisas e estarmos sempre atentos ao fato de que somente as Escrituras é que são nossa regra de fé e prática. E que assim seja sempre.

Soli Deo Gloria!

15 de abril de 2010

Antropologias distorcidas e o ministério da igreja

Já escrevi que a nossa visão antropológica define o modo como lidamos com o homem - não apenas em termos "eclesiásticos". Uma adolescente deveria sempre lembrar da Queda quando o cara da cadeira ao lado na escola a convida para "ir à casa dele depois da aula" (ele continuaria: "meus pais estão viajando e lá podemos conversar em paz..."). Mas estou fugindo do assunto. Voltemos.

O foco aqui está na ação da igreja e na produção que vem do púlpito. Os pastores estão pregando e as igrejas continuam seus trabalhos de evangelização, ação social, etc. A questão é: sobre que bases a pregação contemporânea e a agenda da igreja está estabelecida?

Não poucos pregadores revelam pressupostos antibíblicos em sua abordagem. Muitos decidiram se aventurar pelas "antropologias políticas", outros cederam à psicologização do ministério e adotaram uma visão terapêutica do homem. Há quem, embriagado pela academia e cobiçando a relevância científica, tenha se rendido diante de uma antropologia naturalista. Todas estas perspectivas alteram significativamente o modo de ministrar.

O erro geral destas abordagens antropológicas é negar a criação histórica, a Queda histórica, e a redenção em Jesus. As antropologias políticas - quer de esquerda, quer de direita - identificam outro tipo de queda, outro problema com o homem, de modo que a sua solução para a humanidade é completamente diversa da Escritura.

No âmbito da esquerda, por exemplo, o problema do homem é a opressão capitalista-burguesa sobre o proletariado. A resposta "evangélica" para isso seria atuar contra os instrumentos opressores, dando dignidade ao oprimido.

Na direita a queda acontece com a invasão nas liberdades individuais. Uma dos maiores vilões nesse caso é o Estado, que interfere na vida dos cidadãos e age como o grande opressor. A resposta nesse contexto também seria resgatar a dignidade e liberdade dos indivíduos, lutando por um Estado menor.

Se você é defensor de alguma dessas correntes, percebeu que eu trabalho com um esquema bastante limitado. Não caberia aqui uma análise mais precisa do assunto, por não ser este um texto de política.

Os cristãos que cederam a tais perspectivas antropológicas abandonaram o pecado como problema fundamental do homem, e adotaram uma nova agenda de pregação: ou contra os opressores capitalistas e seus comparsas (provalmente os militares, os direitistas, a rede globo, etc.), ou contra o Estado opressor.

Quem adotou uma visão psicologizada do ministério cedeu diante de uma visão terapêutica do homem. Novamente, o pecado foi excluído da jogada. A pregação, nesse contexto, tem o objetivo de fazer o homem "se sentir bem consigo mesmo", ou "ficar livre do sentimento de culpa que perturba muitos". Para tais pregadores, não interessa se existe culpa real - o pecado. O importante é livrar o homem da opressão de sua consciência. (Percebem como todas as abordagens pretendem livrar o homem de algum tipo de opressão?)

A visão naturalista é o fundamento de perspectivas anteriormente destacadas. A base do edifício marxista, por exemplo, é materialista, e exclui o âmbito sobrenatural da vida humana. Algumas das correntes psicológicas adotadas por pregadores - conscientemente ou não - têm por base a consideração exclusiva dos comportamentos e fenômenos observáveis e cientificamente comprovados. Quando apenas o observável é alvo de conhecimento, não há mais trato com uma boa parcela da vida humana.

Os pastores que cederam diante desta visão abandonaram a Escritura, e, se a usam no púlpito, é com o apoio de manuais sociológicos que, se não a contradizem diretamente, interpretam-na de maneira bem diversa do sentido original pretendido pelo escritor bíblico.

Adotar fundamentos errôneos para o ministério cristão nos fará atacar outros problemas como se fossem o ponto fundamental da humanidade. Concentraremos nossos esforços na rede globo, no Estado, no sentimento de culpa, ou nos baixos índices de qualidade de vida, deixando de lado a rebelião do coração humano contra Deus, e a necessidade de arrependimento. Esqueceremos Jesus, enquanto solucionamos "o problema do homem". Buscaremos uma redenção sem o Redentor - placebo para uma vida em crise.

* * *

Allen Porto é blogueiro do BJC e escreve às quintas no 5C.

14 de abril de 2010

Eu acredito em zumbis!

Eles estão em todos os lugares: nos filmes, nos livros, nas histórias em quadrinhos e até mesmo em joguinhos de computador. Uma vez por ano, eles até fazem uma caminhada para se mostrarem a todos, dando mais uma prova cabal de sua existência. Não há como negar: zumbis existem!


O que você talvez não saiba é que estamos cercados de zumbis por todos os lados. Eles podem ser seus vizinhos, seus parentes, seus amigos ou colegas de trabalho. Talvez você mesmo seja um deles e não o saiba! Sim, zumbis não apenas existem, eles são muitos e estão em todo o lugar! Na verdade, é quase impossível que você não se encontre com um deles todos os dias.

Diz a cultura popular que zumbis são pessoas mortas que foram reanimadas. Embora mortos, eles andam, falam e, claro, amam as trevas e aborrecem a luz. São criaturas malignas e, normalmente, usadas por alguém.

Essa definição não é distante da realidade. Afinal, ela descreve exatamente como são as pessoas que não se submeteram à vontade de Deus.

Sem Deus, estamos mortos
Os seres humanos acham que a morte é um evento único, que só enfrentaremos quando a nossa existência física terminar. Na verdade, a morte é algo que todos nós enfrentamos enquanto estamos distantes de Deus. É o que diz o apóstolo Paulo:
Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados (Efésios 2:1)
Você pecou? Já olhou alguma mulher que não fosse a sua e cobiçou-a? Teve inveja de alguma amiga por causa do marido dela? Mentiu para não apanhar em casa? Xingou alguém ou falou mal dos outros sem razão? Então, para Deus, você morreu.

O pecado não é um capricho divino ou algo sem importância, que não machuca ninguém. Ele prejudica os outros, traumatiza vidas, ofende a Deus...e mata aquele que o comete:
porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 6:23)
E este problema é universal:
pois todos pecaram e carecem da glória de Deus. (Romanos 3:23)
Segundo a Bíblia, o pecado é a raiz de todos os males que acometem a criação. É graças a ele que adoecemos, envelhecemos e morremos. É por causa dele que produzimos comida suficiente para todos e milhões morrem de fome; que governantes enganam a sociedade ao invés de servi-la e maníacos sexuais matam e estupram adolescentes. O pecado transformou a humanidade em zumbis.

Zumbis são maus e odeiam a luz
Mas o mundo não é habitado por zumbis simpáticos, que só ficam gemendo e vagando por aí sem fazer mal a ninguém. Os homens são maus. E o que é pior: odeiam a luz.
O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más. Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem argüidas as suas obras. (João 3:19-20)
A grande verdade é que ninguém suporta a verdade. Ou você conhece alguém que sente prazer quando os seus defeitos são expostos, que ama receber uma bronca quando erra? Não: escondemos a nossa maldade, os nossos erros, as nossas imperfeições. Queremos que todos nos considerem bons e, se possível, perfeitos.

E é por isso que os homens amam mais as trevas do que a luz. As trevas escondem, a luz revela. Ela mostra quem somos de verdade: pecadores miseráveis, mortos espirituais, zumbis horríveis, e não seres humanos em sua plenitude. Depois que a luz nos ilumina uma única vez, jamais seremos os mesmos: ou somos transformados ou mergulhamos de vez nas trevas, tentando esquecer quem somos de verdade.

Deixando de ser zumbi
Contudo, é possível que um zumbi se torne, enfim, um ser humano completo. Trata-se de um processo longo, que leva uma vida inteira e que só será concluído no fim dos tempos. E é muito simples: venha para a luz.

Mas que luz é essa: a do Sol, a elétrica...? Não, eu falo da verdadeira luz: Jesus Cristo.
Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz, a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem. (João 1:3-9)
Encontrar-se de verdade com Jesus não é uma experiência agradável no início. Ao irmos na direção daquele que é realmente Santo, tomamos consciência do quanto somos imperfeitos. Cristo nos confronta acerca do nosso pecado, questiona as nossas obras e mostra a nossa maldade, mesmo quando não fala nada. Não é à toa que, quando Pedro entendeu quem era Jesus, atirou-se aos pés do Mestre dizendo: "Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador" (Lucas 5:8).

Ainda bem que Jesus não ouviu a Pedro. A luz resplandece nas trevas, por isso o Senhor lhe disse: "Não temas; doravante serás pescador de homens". (Lucas 5:10). Jesus veio ao mundo para salvar os zumbis, desde que eles creiam n'Ele:
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. (João 3:16-17)
Jesus salvou o mundo quando sofreu o castigo do pecado no lugar daqueles que creem n'Ele:
Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. (Romanos 5:8)
Por causa do pecado, somos mortos-vivos. Andamos, respiramos, comemos, até nos reproduzimos...mas estamos mortos para Deus e sujeitos ao poder da morte. Jesus veio ao mundo, não para fazer curas e milagres ou belos discursos; Ele veio morrer, sofrer em nosso lugar o justo castigo pelos nossos pecados.

Mas Jesus morreu...e ressuscitou! E nós também vamos ressuscitar, não mais para sermos como zumbis. Seremos homens de verdade.
Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo. (1 Coríntios 15:21-22)
Contudo, nem todos querem experimentar essa realidade. Nem todos creem em Cristo e acreditam que Ele é o Senhor de todos, o Filho de Deus que morreu pela humanidade. Preferem permanecer zumbis. E aí, fica a advertência divina:
Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus. (João 3:36)
Luz ou escuridão: qual caminho você irá seguir?

13 de abril de 2010

Calvino e Platão – da relação entre o reformador e o filósofo

[No meu próximo post, esclarecerei o motivo deste de agora.]
Se algum tempo atrás alguém me dissesse que Calvino era simpático a algumas ideias de Platão, eu simplesmente não acreditaria. Isto porque, como a maioria dos evangélicos em nosso país, incluindo alguns reformados, fui orientado (para não dizer educado) a encarar com desprezo certos ensinos oriundos dos pensadores da antiguidade, especialmente dos “subversivos” e “perigosos” filósofos gregos.  E, mesmo crendo que “toda verdade é a verdade de Deus” (Agostinho), ainda que dita por boca de ímpios, sempre que podia eu procurava algum pretexto para condená-los em suas próprias teorias.

O fato, porém, é que Calvino era, sim, simpático a alguns pareceres de Platão. Mas isso equivale a dizer que Calvino era platônico, ou que sua teologia foi erigida sobre os pressupostos da filosofia grega, e não das Escrituras, como querem alguns? Nosso objetivo, aqui, é tentar esclarecer tais questões. Longe de ser exaustiva, minha breve pesquisa resumir-se-á aos escritos do reformador (das Institutas e seus comentários à Sagrada Escritura, basicamente), particularmente aos trechos em que ele faz alusões diretas ao referido filósofo.

Antes de tudo, porém, é interessante sabermos que grau de relevância Calvino dava aos pensadores não cristãos de um modo geral. Sobre a famosa citação que Paulo faz a Epimênides, poeta cretense (Tito 1.12: “Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos”), Calvino comenta que

“Desta passagem podemos inferir que é supersticioso recusar-se a fazer qualquer uso de autores seculares. Porque, visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porque o mesmo procede de Deus”.

(As pastorais. Ed. Fiel, 2009. pág. 318).

Depois de tal parecer, Calvino, de modo instigante, ainda indaga: “Além disso, visto que todas as coisas procedem de Deus, que mal haveria em empregar, para sua glória, tudo quanto pode ser corretamente usado dessa forma”? Ele não só defende o uso apropriado de autores seculares, mas vai além quando diz que toda verdade deve ser usada para a glória de Deus.

Como é evidente, Calvino via algum valor na filosofia e literatura seculares. Na própria Academia de Genebra, fundada por ele, estudavam-se autores gregos e latinos, dentre os quais encontram-se Homero, Heródoto, Xenofonte, Políbio, Demóstenes, Plutarco, Platão, Cícero, Virgílio e Ovídio, por exemplo. É bom lembrarmos também que Calvino era um humanista, tal qual Erasmo de Roterdã e Lutero, no que se refere a esse retorno aos clássicos gregos e latinos.  Isto explica porque ele era tão versado nesse tipo de literatura, e porque dominava tão bem as línguas consideradas clássicas – o grego e o latim. Aliás, antes mesmo de se converter, seu primeiro trabalho (publicado em 1532) foi um comentário ao livro De Clementia, de Sêneca, filósofo romano contemporâneo de Paulo, onde Calvino, escrevendo em latim, faz cerca de  oitenta citações a autores gregos e latinos[1].

Tendo, pois, averiguado brevemente o que Calvino pensava dos escritores pagãos de um modo geral, voltemo-nos, agora, à sua relação com Platão.

Há algumas coisas com as quais Calvino concorda com Platão. Sobre a imortalidade da alma, por exemplo, o reformador endossa o parecer do filósofo:

“Seria estulto buscar definição de alma da parte dos filósofos, dos quais quase nenhum, excetuando Platão, tem plenamente afirmado ser sua substância imortal. Certamente que também outros socráticos a abordam, todavia em moldes que ninguém claramente ensine de que ele próprio não foi persuadido. Por isso é que Platão tem opinião mais correta, já que contempla a imagem de Deus na alma”.

(Institutas – I.15.6).

Sobre como se deve orar, Calvino também apoia Platão:

“Como visse a imperícia dos homens na apresentação de seus rogos a Deus, os quais, se concedidos, muitas vezes lhes seria prejudicial, Platão declara que a melhor forma de orar é esta, apropriada de um poeta antigo: “Ó Rei Júpiter, confere-nos as coisas melhores, quer as desejemos, quer não; as coisas más, porém, ordena que fiquem longe de nós, ainda quando as peçamos”. E esse homem, na verdade pagão, nisto é sábio, porque sentencia quão perigoso é buscar do Senhor o que nossa cabeça haja ditado; ao mesmo tempo, põe à mostra nossa infelicidade, visto que, na realidade, nem podemos abrir a boca diante de Deus, sem grave perigo, a não ser que o Espírito nos instrua sobre a norma certa de orar [Rm 8.26]”.

(Institutas – III.20.35).

Em seu comentário à Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, Calvino mais uma vez cita positivamente o filósofo. O assunto agora é sobre o poder da música:

“[…] todos sabemos, pela própria experiência, quão tremendo é o poder da música para agitar as emoções do ser humano; como corretamente ensina Platão, que de uma forma ou outra a música é da maior importância para moldar o caráter moral do Estado”.

(1 Coríntios. Ed. Parakletos, 2003. Pág. 419 – 1Co 14.7).

Contudo, não era sempre de forma simpática que Calvino tratava as ideias de Platão. Em certas ocasiões, Calvino o elogiava somente para, em seguida, apontar-lhe os erros. Por exemplo, referindo-se à miséria a qual todos nós estamos sujeitos, Calvino disse que

“Neste particular, quão prodigamente toda a ordem dos filósofos tem sua fatuidade e inépcia! Ora, para que poupemos aos demais, os quais muito mais absurdamente engendram despautérios, Platão, entre todos o mais religioso e particularmente sóbrio, também ele próprio se perde em seu globo esférico”.

(Institutas – I.5.11).

Em outras ocasiões, Calvino o critica direto, sem rodeios ou elogios, como por exemplo sobre o fato de Platão atribuir a pecaminosidade do homem à sua ignorância:

“Portanto, como foi Platão merecidamente censurado acima, uma vez que imputara à ignorância todos os pecados, assim também se deve repudiar a opinião daqueles que ensinam que em todos os pecados permeiam deliberadamente a maldade e perversidade”.

(Institutas – II.2.25).

Calvino chega até mesmo a falar explicitamente que Platão era, no fim das contas, um mero pagão; perdido; sem Deus.

“Os filósofos disputaram outrora, ansiosamente, sobre o supremo fim das boas coisas, e até entre si contenderam, contudo, ninguém, exceto Platão, reconheceu que o sumo bem do homem é sua união com Deus. De que natureza, porém, fosse esta união, nem sequer tênue gosto pôde ele sentir. Nem é de admirar, uma vez que nada aprendera do sagrado vínculo dessa união”.

(Institutas – III.15.2).

Para Calvino, o fato de Platão ter falado coisas fantásticas e até mesmo doutrinariamente coerentes com o todo da Verdade revelada nas Escrituras não foi suficiente para uni-lo a Deus. Note que Calvino não fala de união com Cristo, e sim, de união com Deus, uma vez que Cristo e Platão não foram contemporâneos. Quando Calvino fala sobre a “natureza” dessa união, penso que ele esteja se referindo a Cristo como nosso mediador, visto que, para o reformador, a união mística de Cristo com a sua Igreja é o fundamento da real e verdadeira comunhão com o Pai. É por isso mesmo que o reformador não alivia: de tudo que escreveu e ensinou, e de todas a suas divagações filosóficas, ainda que louváveis em alguns aspectos, Platão “nada” aprendeu da genuína união com o Criador. Penso que esta declaração de Calvino é suficiente para derrubar de uma vez por todas as acusações de que ele era um admirador cego do filósofo grego.

No fim das contas, verifica-se que o que Calvino entendia ser o supremo e fidedigno depósito da Verdade, bem como o único livro capaz de nos fazer despertar de nossa letargia espiritual, era mesmo a Sagrada Escritura, por mais valor tivessem os escritos dos sábios da antiguidade.

“Admito que a leitura de Demóstenes ou Cícero, de Platão ou Aristóteles, ou de qualquer outro da classe deles, nos atrai maravilhosamente, nos deleita e nos comove ao ponto de nos arrebatar. Mas quando deles nos transferimos para a leitura das Escrituras Sagradas, queiramos ou não, elas nos despertam tão vivamente, penetram de tal modo o nosso coração e de tal maneira se fixam em nossa medula, que toda a força dos retóricos e dos filósofos se evapora, em comparação com a eficácia das Escrituras no sentimento que nos infundem. […] De longe essa qualidade [das Escrituras] supera todas as virtudes da criatividade humana”.

(As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, [I.24] Vol. I. pág. 74).

Penso que nossa breve pesquisa mostrou-se suficiente para constatarmos uma coisa: que o pensamento teológico de Calvino não se estruturou a partir da obra de Platão nem de qualquer outro pensador profano, como pretendem alguns, mas unicamente da Palavra de Deus. Se o que Platão falava se coadunava com as Escrituras, Calvino o apoiava; se não, como vimos, o rejeitava. A Verdade não depende do endosso humano. Como bem atesta o reformador, “a verdade está livre de toda dúvida, visto que, sem nenhuma ajuda, ela é suficiente para manter-se” (Institutas. Ed. Especial. pág. 74). Que Deus nos ajude a pensar o mesmo.

Soli Deo Gloria!


[1] O livro, entretanto, não deu a Calvino o feedback que ele esperava. Usando um linguajar moderno, praticamente não saiu das prateleiras.

8 de abril de 2010

Por que também não sou de esquerda

Este texto reflete uma opinião pessoal que não é, necessariamente, a dos outros articulistas deste blog.
 
Nenhum sistema de governo ou de organização sociopolítico e econômico é de Deus. Essa afirmação é praticamente unânime nos meios evangélicos e é usada por muitas pessoas para dizer que não são nem capitalistas nem socialistas. Mas há duas ressalvas que precisam ser feitas.

A primeira é que isso não significa que todos os sistemas sejam igualmente bons aos olhos do Senhor. Há sim sistemas melhores do que outros. O fato de não existir um que seja perfeito não significa que não existam opções boas e ruins.

A segunda é que essa afirmação é um "praticamente" porque, na verdade, vários evangélicos agem como se certas bandeiras políticas fossem, de fato, o cumprimento do Reino de Deus na Terra. E quando esses modelos são criticados, a boca dos críticos é amordaçada.

Foi o que muitos esquerdistas fizeram com a articulista Norma Braga, que escreveu o artigo Por que não sou de esquerda, publicado na revista Ultimato. A teologia pode ser livre, desde que você não critique a esquerda. E aí começa, lá e em alhures, um rosário de acusações:

1) Que a autora foi simplista;
2) Que criticar a esquerda significa aceitar tudo o que vem da direita;
3) Que esquerda e direita se equivalem.

Não é possível mesmo responder a tudo em um artigo de revista que deve caber em uma página. O jornalismo não é para profundidades, não há espaço para isso. Blogs também não. Mas há espaço para mostrar algumas razões que explicam por que não sou de esquerda:

1) O direito de propriedade é bíblico
O socialismo marxista defende o fim da propriedade individual, que deve ser coletiva. Até que cheguemos a um comunismo utópico, o Estado deve distribuir os bens entre os cidadãos. Vários cristãos citam a igreja de Jerusalém como um modelo desta utopia:
Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum. (Atos 4:32)
O que parece escapar aos socialistas cristãos é que esse dividir era um ato voluntário e nunca foi uma exigência no Novo Testamento. É o que mostra a condenação de Pedro a Ananias:
Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido, não estaria em teu poder? (Atos 5:4a)
Na verdade, Jesus não tinha problema algum em ser sustentado pelas ofertas de mulheres que possuíam bens, provavelmente pessoas consideradas ricas na sociedade de seu tempo:
Aconteceu, depois disto, que andava Jesus de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o evangelho do reino de Deus, e os doze iam com ele, e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios; e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Suzana e muitas outras, as quais lhe prestavam assistência com os seus bens. (Lucas 8:1-3)
Logo, fica claro que não é e nem nunca foi o plano de Deus para este mundo a instituição da propriedade coletiva. Seja no Antigo ou no Novo Testamento, a Bíblia sempre reconheceu o direito de cada pessoa ter os seus bens e não condena a posse de riquezas.

Agora, claro, isso não significa endossar o capitalismo selvagem: a riqueza construída em cima da pobreza de outros. Contudo, o rico tem sim uma oportunidade de santificação (sim, santificação!), se fizer bom uso de seus bens:
Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento; que pratiquem o bem, sejam ricos em boas obras, generosos em dar e prontos a repartir; que acumulem para si mesmos tesouros, sólido fundamento para o futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida. (1 Timóteo 6:17-19)
Não há problema em ser rico! O problema é confiar nas riquezas e não em Deus, é não usar os seus bens para glorificar ao Senhor, servindo o próximo. Quando um rico dá emprego a outros, ele está fazendo isso. Quando ele faz obras de caridade, ele faz isso. Quando ele dá ofertas à Igreja e sustenta missionários (imagine o privilégio de assistir a Jesus!), ele faz isso.

Apenas este argumento seria suficiente para desmontar o projeto da esquerda. Mas há mais.

2) O Estado não é responsável pela sua felicidade
A esquerda confia muito no governo. Espera que ele sustente a todas as pessoas, crie cotas para os mais pobres, dê o Bolsa Família, gás, renda mínima, casa própria e tudo o mais para as pessoas. Pelo menos no Brasil é assim: os mais pobres querem bolsa-família, tem escola pública, querem lotes com casa do Governo, gás, leite...em Cuba é um pouco pior. O Estado decide o quanto de manteiga você pode comprar, o que você pode ler e que opiniões são ou não defensáveis e podem ser pensadas naquele país (não só lá...vide Google vs. China e nuestro amigo Chávez).

Na prática, o ideário de esquerda transporta em maior ou menor grau as responsabilidades dos indivíduos para o Governo. Contudo, o ensino bíblico é o de que, em condições normais (e isso inclui Império Romano e os reinados de Israel no AT), a prosperidade das pessoas depende delas, e não do Estado. Fatores como preguiça, trabalho e retidão contam para alguém enriquecer ou não:
O que trabalha com mão remissa empobrece, mas a mão dos diligentes vem a enriquecer-se. O que ajunta no verão é filho sábio, mas o que dorme na sega é filho que envergonha. (Provérbios 10:4-5)

O alongar-se da vida está na sua mão direita, na sua esquerda, riquezas e honra. (Provérbios 3:16)

Um pouco para dormir, um pouco para tosquenejar, um pouco para encruzar os braços em repouso, assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua necessidade, como um homem armado. (Provérbios 6:10-11)
Sim, existem pecados "estruturais" que provocam injustiça social e os profetas estão recheados de denúncias a isso. Não ser de esquerda não significa endossar essas injustiças. Mas significa sim, reconhecer que, em circunstâncias normais, as pessoas empobrecem ou enriquecem, prosperam ou definham por seu próprio mérito.

Vou além: se não existir um regime totalitário, mesmo em condições difíceis, as pessoas prosperam ou não independente dos tais pecados estruturais. José prosperou mesmo sendo um escravo no Egito. Jacó chegou sem nada e saiu rico trabalhando como assalariado de Labão. Neemias era copeiro e virou governador. Jefté era o filho de uma prostituta e virou juiz de Israel. E isso em sociedades onde a mobilidade social era bem mais difícil que nos regimes capitalistas do século XXI.

Repare: a Bíblia não joga sobre o Governo a responsabilidade de dar bem-estar material. O sucesso ou fracasso das pessoas depende muito mais delas mesmas do que do Estado.

3) A igualdade absoluta não existe
A igualdade parece ser o valor supremo da esquerda para a construção de uma sociedade. No entanto, esse ideal é utópico.

Basta mostrar um fato: nem mesmo no céu há igualdade.
Se permanecer a obra de alguém que sobre o fundamento edificou, esse receberá galardão; se a obra de alguém se queimar, sofrerá ele dano; mas esse mesmo será salvo, todavia, como que através do fogo. (1 Coríntios 3:14-15)

Ora, o que planta e o que rega são um; e cada um receberá o seu galardão, segundo o seu trabalho. (1 Coríntios 3:8)

Acautelai-vos, para não perderdes aquilo que temos realizado com esforço, mas para receberdes completo galardão. (2 João 8)
A salvação é pela graça e não envolve mérito. Mas nem todos receberão a mesma coisa. Uns terão galardão completo. Outros, parece que só serão salvos, como que pelo fogo. Cada um receberá de acordo com o seu trabalho.

Se é assim no céu, naquilo que a Bíblia coloca como o Reino de Deus em plenitude...por que esperar uma igualdade tão grande neste mundo? Nem Jesus ensinava isso:
A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua própria capacidade; e, então, partiu. (Mateus 25:15)
Isso não é injustiça. Uma vez dada a salvação, as pessoas devem receber segundo a sua dedicação, capacidade, mérito. E este não é o pensamento da esquerda.

4) O Estado não deve patrulhar o pensamento
Reconheço que restringir ou censurar a liberdade de imprensa, de expressão e de opinião não é uma exclusividade da esquerda. Mas é inegável o fato de que ela recai muito mais neste pecado do que a direita ou o centro.

Sei que muitos cristãos, reformados inclusive, gostariam de um Estado teocrático, confessional, onde as leis de Deus fossem as leis da nação. Dar as pessoas a liberdade de pensarem e opinarem o que quiserem, mesmo que sejam pecados aberrantes, como o aborto, parece mais satânico do que santo.

Contudo, a esperança da vinda completa do Reino de Deus não é para este mundo. Como bem diz a Bíblia, aguardamos uma pátria diferente:
Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se na verdade, se lembrassem daquela onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade. (Hebreus 11:13-16)
A sociedade ideal não será alcançada aqui. E todo regime político ou econômico deve levar em consideração que vivemos em um mundo caído de pessoas imperfeitas que jamais se curvarão espontaneamente a Cristo. E não tem jeito: trigo e joio devem crescer lado a lado até o fim. Não há como separar aqui.

Talvez por isso Jesus e os apóstolos jamais pediram ao Império Romano que o Estado apoiasse a Igreja. Nem condenaram os romanos por permitirem a idolatria. Na verdade, o que parece transparecer em Atos é que o desejo dos cristãos era o de pregarem livremente a Palavra. Quando Paulo apela ao direito romano (e Atos mostra favoravelmente Paulo usando a sua cidadania), o que ele busca (e de certa forma consegue) é a liberdade de pregar, enquanto os judeus querem calá-lo.

Considerando que os judeus queriam uma uniformidade judaica e que os pagãos queriam uma uniformidade pagã (por isso odiavam judeus e cristãos), os cristãos deveriam ser os primeiros a defender a liberdade de ação, de opinião, de pensamento, de expressão. O Império Romano não é o baluarte da democracia, mas deu uma liberdade aos seus cidadãos maior que a de impérios anteriores, tanto que tornou possível que Paulo usasse o Estado para preservar o pescoço e continuar pregando.

Quando o Império Romano perseguiu os cristãos ou mesmo matou a Jesus, apenas se desviou do alvo, feriu as suas próprias regras, corrompeu o que havia de belo em seu governo. Mas nada disso não muda o fato de que, quando Roma se aproximou da liberdade, o cristianismo encontrou defesa, apesar de ser uma minoria.

No totalitarismo isso não é possível. E não há comunismo sem ele, porque você só consegue produzir a igualdade de modo artificial: calando os descontentes, os diferentes, preservando a unidade às custas do indivíduo.

E, se os cristãos percebessem melhor o que Jesus e os apóstolos ensinaram sobre o Estado e conhecessem melhor a própria história, jamais aceitariam o totalitarismo. E como ele é indispensável à esquerda (como provam Chávez, os chineses, os norte-coreanos e, em certa medida, o PT), eu não entendo como os cristãos podem ser de esquerda.

Encerro aqui o meu texto. Não é exaustivo, não trata de tudo, talvez nem seja muito profundo. Mas creio que é suficiente.

6 de abril de 2010

Entre ler sobre Calvino e ler Calvino

O que me levou a escrever sobre o presente tema foi o fato de ter chegado hoje às minhas mãos dois comentários de Calvino que comprei pela internet: o volume I de Salmos, que estava esgotado pela Edições Parakletos e foi reeditado recentemente pela Editora Fiel, e os vols. I e II de Daniel, ainda pela Parakletos. ABRE PARÊNTESE. Na realidade, estou escrevendo somente para minha terça não passar em branco. Mas penso que meu “testemunho” pode interessar a algum meio-leitor de Calvino, como o Leonardo Galdino de antes… FECHA PARÊNTESE.

Até pouco tempo atrás eu nunca havia lido nada escrito por Calvino. Nenhuma obra, nenhum comentário – apenas citações. Na realidade, para quem não está disposto a ir direto à fonte, as citações bastam. Um autor reformado citando Calvino aqui, outro acolá, e pronto: eis a receita para se ter uma colcha de retalhos completa de ditos do reformador. E acho que descobri por que eu achava mais graça em ler citações sobre Calvino do que ele próprio: é que Calvino não cita Calvino!

Contudo, essa situação mudou quando decidi comprar algumas de suas obras publicadas em língua portuguesa. A primeira delas foi o seu comentário em 1 Coríntios (Edições Parakletos). Foi nesse dia que eu descobri porque ele foi considerado o maior exegeta e teólogo da Reforma. Daquele dia pra cá, não parei mais de lê-lo – agora, não somente em citações e notas de rodapé, mas in loco. Adquiri, mais tarde, As Institutas, sua magna opus.

Hoje, dos comentários disponíveis em língua portuguesa, só me falta o de Hebreus. Estou esperando a Editora Fiel reeditá-lo, como ela havia prometido. E não apenas isso, mas o de lançar outros comentários inéditos desse grande vulto da história do Cristianismo. Espero que isso não demore para acontecer, porque, parafraseando Boanerges Ribeiro (no seu prefácio ao vol. I de Salmos), “escritos de calvinistas são interessantes; escritos de Calvino são inestimáveis”.

Deus seja louvado!

Soli Deo Gloria!

1 de abril de 2010

Que é o homem?


Quando o salmista perguntava "que é o homem para que Te lembres dele?", a pergunta retórica indicava uma compreensão profunda do lugar do homem diante de Deus.

A pergunta sobre o "lugar" do homem no espaço e no tempo define uma série de outros pontos do nosso modo de viver. Alguém com uma concepção por demais pessimista sobre a humanidade é levado ao niilismo, existencialismo, ou qualquer abordagem que cede ao desespero. Do outro lado, quem desenvolve uma visão exageradamente otimista do ser humano, acaba vivendo em uma ilusão ineficaz para explicar os problemas e crises humanas.

João Calvino afirmava que o conhecimento de Deus produziria auto-conhecimento na medida correta. Partindo desta premissa, já observamos os atributos de Deus e percebemos pontos importantes de Sua Palavra. Agora, então, é a hora de concentrarmos o foco no que a Bíblia diz a respeito de nós.

Longe das fórmulas prontas e psicologizadas, buscamos uma abordagem acima de tudo fiel à Palavra de Deus, e consoante com a tradição Reformada. Entendemos que muitos dos problemas nas comunidades cristãs atuais, brota de uma antropologia confusa nestes aspectos: ou é (1) "psicologizada" demais, conhecedora de todas as teorias e postulados das várias escolas da psicologia enquanto desconhece ou minimiza a perspectiva bíblica sobre o assunto; ou (2) falha na fidelidade à Escritura, às vezes rejeitando a psicologia, mas ainda assim se apegando a tradições teológicas que rejeitam aspectos fundamentais da antropologia bíblica; ou (3) rejeita a produção do período da Reforma, considerando-a severa ou pessimista demais, bem como o ensino reformado a respeito do homem.

O Dr. Michael Horton sugeriu que, se você tem uma visão inadequada do problema, a sua solução para o problema será compatível com a sua percepção, e também será indequada para a dificuldade em evidência. A partir disso, ele utilizou a pesquisa de um sociólogo norte-americano - Christian Smith - e chegou à conclusão de que muito da teologia dos evangélicos naquele país (e não só lá) se tornou uma nova religião: o Deísmo Moralista e Terapêutico. Essa solução contemporânea parte de noções erradas sobre Deus, o homem, e sua relação. Quando você desconhece o problema, surgirá com soluções ineficazes problemáticas.

A mentalidade terapêutica se fundamenta na percepção de que, em última análise, o problema do homem é psicológico. Podemos confiar nesta percepção?

Neste mês de Abril os 5 calvinistas analisarão o homem. Uma antropologia bíblica será o nosso foco. Acompanhe-nos nessa jornada!

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Allen Porto é blogueiro do BJC, e escreve às quintas no 5 Calvinistas.