28 de junho de 2009

Um vôo para bem além do nada

Shakespeare coloca bem o dilema nas palavras de Hamlet. Diz ele:
Ser ou não ser? Eis a questão. O que é mais nobre para a alma: o deixar-se morrer ou o lutar por sobreviver? Ah, morrer, dormir... Imaginar que um sono põe fim aos sofrimentos do coração e aos males infindáveis que constituem a herança da carne! Essa é uma solução desejável. Ah, morrer, dormir... Talvez até mesmo sonhar... Mas é justamente aí que está o ponto: o não sabermos que sonhos o sono da morte poderá nos trazer. Pois quem suportaria o mal do mundo se estivesse em suas mãos o poder de obter a paz eterna com um punhal?[1]
Quem quer que já tenha se debruçado a pensar na morte há de ter passado por este dilema. Por um lado ela se apresenta como desejável. Uma solução e um alívio para os males que inevitavelmente enfrentamos neste mundo. Por outro ela se apresenta como temível. Como sofrer suas dores? Que há de nos esperar do outro lado? Ah, o terrível temor do desconhecido!
Claro que a proposta de uma solução para o dilema dependerá da cosmovisão do pensador. Algumas serão propostas mais esperançosas, outras desesperadoras. A maioria delas, eu diria. Pois não faltam propostas seculares que proponham um “carpe diem”, um aproveitar intensamente a vida, pois esta é breve e ao fim dela o que resta é nada. Há outras propostas, com outros finais (ou recomeços), por certo, mas fiquemos com esta proposta em mente: o fim da vida é o nada.
Mas e a nós, cristãos, qual proposta cabe fazer? Qualquer que seja a tentativa em se propor algo, ela bem poderá passar por este mesmo dilema. Pois a morte para o cristão é desejável. E, embora o desconhecido tenha sido revelado e seja manifesto, ainda permanece algo de temível. Mas como tudo no Cristianismo, o significado do desejo e do temor diverge do que há na proposta secular.
Antes de tudo, a morte, para o cristão, não possui uma conotação assim tão negativa. Ao contrário, a esperança inclusa nesta conotação subverte a própria maneira de se falar dela. Tal como num estranho conselho que eu li certa vez: “Esteja muitas vezes ao lado dos leitos de morte”. Num primeiro momento, isso soa macabro e deprimente. Mas não por quem deu o conselho. Não por quem passou pelo mesmo que o conselheiro. Este que assim fala é Spurgeon, e assim ele explica a razão para tão improvável recomendação: os leitos de morte…
São livros iluminados. Ali você lerá a poesia autêntica da nossa religião e aprenderá os seus segredos. Que gemas esplêndidas são levadas à praia pelas ondas do Jordão! Que lindas flores crescem em suas ribanceiras! Os mananciais sempiternos do país da glória lançam para o alto os seus jatos, e as gotas de orvalho gotejam deste lado da estreita corrente! Tenho ouvido humildes homens e mulheres na hora da sua partida falarem como inspirados, proferindo estranhas palavras, resplandecentes de superna glória. Não as aprenderam dos lábios de ninguém debaixo da lua; só podem tê-las ouvido quando estavam sentados nos subúrbios da Nova Jerusalém. Deus sussurra em seus ouvidos em meio às suas dores e fraquezas, e depois eles nos contam um pouco do que o Espírito lhes revelou. Largarei todos os meus livros, se puder ver os Elias do Senhor subirem em seus carros de fogo.[2]
A vida cristã é mesmo tão cheia de paradoxos! Pois é esta mesma esperança pelo porvir que faz o cristão desejar tão ardentemente tanto a morte quanto a vida. A morte é desejável não para acabar com tudo, não como num salto para o nada, mas é desejável para que tudo continue. Não como era, mas em uma transformada, uma glorificada plenitude. O desejo pela morte se revela um desejo pela vida, um desejo por ser. Como no mártir de Chesterton, que ele contrasta com o suicida:
O suicídio não só constitui um pecado, ele é o pecado. É o mal extremo e absoluto; a recusa de fazer um juramento de lealdade à vida. O homem que mata um homem, mata um homem. O homem que se mata, mata todos os homens; no que lhe diz respeito, ele elimina o mundo. (…) 
Obviamente um suicida é o oposto de um mártir. Um mártir é um homem que se preocupa tanto com alguma coisa fora dele que se esquece de sua vida pessoal. Um suicida é um homem que se preocupa tão pouco com tudo o que está fora dele que ele quer ver o fim de tudo. Um quer que alguma coisa comece, o outro, que tudo acabe. 
Em outras palavras, o mártir é nobre, exatamente porque (embora renuncie ao mundo ou execre toda a humanidade) ele confessa esse supremo laço com a vida; coloca o coração fora de si mesmo: morre para que alguma coisa viva. O suicida é ignóbil porque não tem esse vínculo com a existência: ele é meramente um destruidor. Espiritualmente, ele destrói o universo. E depois me lembrei da estaca e da encruzilhada[3], e o estranho fato de que o cristianismo mostrara esse rigor incomum para com o suicida. Pois o cristianismo mostrara um ardente incentivo ao martírio.[4]
Com tal esperança e com tal desejo, que tipo de temor há de ter o cristão em relação à morte? Não, o cristão não romanceia assim a morte, como se não houvesse temor algum. Ela é expressa consequência do pecado (“mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá”, Gn 2.17, NVI) e carrega em si todo o peso e a lembrança da queda. Desde um natural instinto de sobrevivência até ao medo das dores e enfermidades de quem parte e ao sofrimento dos amados que permanecem, todo o evento da morte está cheio de tristezas.
Uma belíssima passagem da mitologia de Tolkien reflete essas tristezas de forma poética. Eu lamento não poder expressar aqui toda a poesia que encontrei na citação que seguirá. Apenas quem tem alguma intimidade com a obra de Tolkien poderá me compreender com alguma exatidão. Mesmo assim, considero que a citação vale a pena. O trecho revela a avaliação de uma outra raça, os elfos imortais da mitologia, em relação aos homens mortais. Quando Aragorn, um homem, devolve a dádiva de sua longa vida a Eru Ilúvatar, sua bela rainha élfica, Arwen Undómiel, “provou o gosto amargo da mortalidade que assumira para si”[5].  Aragorn então lhe diz:
Senhora Undómiel, a hora é realmente difícil, mas ela foi feita no mesmo dia em que nos encontramos sob as bétulas brancas no jardim de Elrond, por onde agora ninguém caminha. E sobre a colina de Cerin Amroth, quando rejeitamos tanto a Sombra como o Crepúsculo, foi este o destino que aceitamos. (…) 
Não lhe direi palavras de consolo, pois não há consolo para uma dor assim nos círculos do mundo. A escolha suprema se coloca diante de você: arrepender-se e ir para os Portos, levando para o oeste a lembrança dos dias que passamos juntos, que lá serão sempre verdes, embora não passem de um lembrança, ou então conformar-se com o Destino dos homens”.
Não, querido senhor – disse ela. – Essa escolha há muito não existe mais. Agora não há um navio que pudesse me levar para lá, e devo de fato me conformar com o Destino dos homens, quer queira quer não: a perda e o silêncio.  Mas digo-lhe, Rei dos Niúmeronianos, só agora entendo a história de seu povo e de sua queda. Desprezei-os como tolos miseráveis, mas por fim sinto pena deles. Pois, se realmente esta for, como dizem os eldar, a dádiva do Um concedida aos homens, é uma dádiva amarga de receber.
Assim parece – disse ele. – Mas não nos deixemos derrotar no último teste, nós que há muito tempo renunciamos à Sombra e ao Anel. Devemos partir com tristeza, mas não com desespero. Veja! Não estamos para sempre presos aos círculos do mundo, e além deles há muito mais que lembrança. Adeus!
A tristeza de Arwen durou o restante de sua vida mortal, “a luz de seus olhos se apagara, e seu povo teve a impressão de que ela se tornara fria e cinzenta como o cair de uma noite de inverno, que chega sem uma estrela”[6]. 
Sim, o cristão compreende e passa por toda essa tristeza. Uma grande tristeza. Mas não maior que sua esperança. Embora a morte da mitologia seja uma dádiva e a morte real seja a consequência e um castigo pela desobediência da queda, fica clara no termo “dádiva” a esperança cristã do católico Tolkien no porvir. A dádiva mitológica de não estar preso aos círculos do mundo e esperar por algo mais que a lembrança é a mesma dádiva que o outro lado do Jordão nos reserva: ser! 
O significado do desejo e do temor cristãos diverge do que há na proposta secular, eu disse. De que forma? O pensador secular seguirá Hamlet e se chamará covarde por temer a morte e refrear seu desejo por ela. E mesmo quando seu anseio vence o temor não lhe resta esperança em seu vôo para o nada[7]. O cristão também refreará seu desejo pela morte. Mas não por um temor maior que seu instinto por sobrevivência, e sim por sua ânsia, ainda maior que seu desejo pela morte, em servir ao seu Senhor enquanto Ele o mantiver neste mundo. Seu desejo pela morte é ao mesmo tempo um desejo pela vida! Porém, se tiver que passar por ela, contra seus instintos e em Seu nome, sua esperança o fará cantar: “para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Fp 1.21, NVI). Alçará seu último vôo neste século. Aquele vôo para bem além do nada, ao encontro do Ser que lhe prometeu ser em bem aventurança eterna!
Para eterna honra e glória dEle somente! Amém!
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[1] Esta é uma paráfrase minha, bem resumida, do monólogo de Hamlet (Ato III, Cena I de A trágica história de Hamlet, Príncipe de Dinamarca, de William Shakespeare), com o objetivo de enfatizar o dilema que se propõe. Procure pela obra completa. 
[2] SPURGEON, C.H. Lições aos meus alunos, volume 2. São Paulo: PES, 1982. 
[3] “Estaca x encruzilhada”, “martírio x suicídio”. Ao mencionar a encruzilhada, Chesterton se refere a um antigo costume cristão em que o suicida não poderia ser enterrado no cemitério. A estaca é referência ao instrumento usado para o martírio.  
[4] CHESTERTON, G.K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. 
[5] Na mitologia de Tolkien, os elfos são imortais. Não que não morram, mas que quando morrem, não saem dos círculos do mundo, e descansam em uma espécie de “salão do mortos”. Já os homens são mortais e a morte é considerada uma dádiva dada aos homens por Ilúvatar (Deus). Arwen renuncia à sua imortalidade em favor do seu amor por Aragorn. 
[6] TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: o retorno do Rei. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 
[7] Retomo e encerro aqui a proposta a manter em mente neste artigo: “o fim da vida é o nada”. Não nego que o que se faz aqui é uma generalização bastante simplista “com-Deus x sem-Deus”, ou mesmo “cristianismo x não-cristianismo”. Não se fará justiça à história do pensamento humano nem se faz menção às várias outras propostas de outras religiões. Mas não pretendo discutir ou comparar pensamento por pensamento em relação ao Cristianismo em espaço tão curto. (Quem quiser que o faça, se for capaz!) Entretanto, cabe ressaltar que a resposta cristã não considera um nada como o que virá após a morte, o foco e o contraste feito aqui. A posição cristã considera uma eternidade de bem aventurança contra um tormento eterno, o que é ainda bem pior que o nada. E, enfim, qualquer seja a resposta não-cristã, este tormento é o que de fato lhe espera.