6 de março de 2012

Que será dos que nunca ouviram? Uma breve confissão

Esse é um assunto que sempre me incomodou bastante, a saber, o destino eterno daqueles que nunca ouviram falar de Cristo. Deixando de lado se os tais ainda existem hoje (particularmente, penso que haja) e outras questões parecidas, bem como as várias perspectivas sobre o assunto, vou logo resumir a minha posição: todos os eleitos, fatalmente, ouvirão acerca de Cristo por meio da pregação da Sua Palavra. Nem todos os que ouvem são eleitos, obviamente, mas todos os eleitos ouvirão. Ainda que digamos que cabe somente a Deus julgar tais pessoas, não somos autorizados, pelas Escrituras, a pensar que poderá ser salvo quem nunca ouviu de acerca de Cristo, uma vez que "a fé vem pelo ouvir" (Rm 10.17), sendo esta mesma fé um dom de Deus exclusivamente para os Seus eleitos (cf. Tt 1.1). Estes, por sua vez, vem a Cristo pela pregação (cf. 2 Ts 2.13, 14).


Há de se questionar em que consiste essa "pregação". De pronto, rejeito a perspectiva segundo a qual a revelação geral (criação, cultura, moralidade, etc.) é suficiente para a salvação, pois, se assim fosse, a fé em Cristo seria necessária apenas para alguns (sinceramente, não creio na revelação geral nem como meio salvífico extraordinário). Nesse quesito, penso em Cornélio, centurião romano sobre o qual se diz ter sido "piedoso e temente a Deus" (At 10.2), mas que precisou ouvir explicitamente acerca de Cristo por intermédio do apóstolo Pedro para ser salvo (ver todo o capítulo 10 de Atos). Rejeito, também, a noção segundo a qual a pregação pode ser entendida como o exemplo de vida dos cristãos ("conversão pelo exemplo", tão propagada pelos pietistas e místicos medievais), pois nossas vidas não podem ser melhores do que a pregação viva da Palavra de Deus.


Há, ainda, um equívoco a ser corrigido, e este tem a ver com a relação entre Decreto e Providência. Novamente citando o caso de Cornélio (somente para não citar todos os eleitos), não podemos dizer que ele já era salvo antes de ouvir a Palavra. Pelo decreto, sim, ele já constava entre os eleitos, mas não pela Providência, haja visto não ter chegado ainda o tempo da concretização do decreto. E o que é a Providência, senão os meios que Deus usa para alcançar aquilo que Ele decretou? Nesse caso, Cornélio precisou, na História, ouvir a Palavra, sendo regenerado pelo Espírito para que pudesse, então, crer e ser salvo.


Assim sendo, creio ser a pregação o meio providencial responsável por infundir fé no coração do eleito. Só a pregação? Bem, como já falei acima, se há exceções elas não são especificadas pelas Escrituras, pelo que me reservo ao direito de me ater apenas àquilo que nos é afirmado pela Revelação como regra, em vez de especular sobre a exceção. E me valho, aqui, do pertinente comentário de Calvino a Romanos 10.14 (..."e como ouvirão, se não há quem pregue?"). Ele diz que "o que Paulo está descrevendo aqui é somente a palavra pregada, pois este e o modo normal que o Senhor designou para comunicar sua Palavra. E se se argumenta, à luz desse fato, que Deus não pode dar-se a conhecer entre os homens só por meio da pregação, então negaremos que isto era o que o apóstolo pretendia transmitir. Ele estava transferindo somente a ordinária dispensação divina, e não pretendia escrever uma lei à sua graça" (ênfase minha). E me é muito claro, ainda na Escritura, que Deus sempre envia Seus arautos para os lugares em que há eleitos Seus para serem alcançados (cf. At 18.10; 13.48; Jonas e os ninivitas, etc.). Novamente citando o reformador francês (agora em seu comentário a Romanos 10.15 - "e como pregarão se não forem enviados"), "quando alguma nação é agraciada com a pregação do evangelho, tal fato é uma garantia do amor divino".


Por último, não penso que este seja o típico assunto que deva ser relegado apressadamente ao "mistério", como se as provas bíblicas acerca dele fossem insuficientes ou inexistentes. O máximo que posso dizer quanto aos que nunca ouviram é que cada um será julgado de acordo com a resposta que deu à luz que teve, mas não para uma possível absolvição. Para o quê, então? Bem, embora eu tenda a crer aqui em possíveis níveis de sofrimento no inferno (cf. passagens como Mt 11.22, 24; Lc 12.47, 48; 20.17), prefiro não arriscar ir além daquilo sobre o que a Escritura não lança senão faíscas.


Soli Deo Gloria!


 

28 de fevereiro de 2012

Quantas bicicletas Deus tem?

Já é o segundo domingo consecutivo que estamos estudando sobre a doutrina da predestinação na escola dominical em nossa congregação. E, apesar de se tratar de uma congregação presbiteriana, as dificuldades em torno da doutrina ainda persistem nos corações e mentes de alguns – tanto a dificuldade em entendê-la quanto (principalmente!) em aceitá-la. Conversando sobre o assunto com minha esposa em casa, ela me lembrou de um ex-pastor nosso, o qual gostava de explicar a eleição da seguinte maneira: imagine que eu tenho uma bicicleta, e vejo dois garotos na rua. Resolvo, então, dar minha bicicleta a um deles. Alguém poderia me questionar por que eu dei a um e não ao outro, ao que eu responderia dizendo que a bicicleta é minha, e a dou a quem quiser. Não levei em conta quaisquer méritos ou deméritos nas crianças, simplesmente escolhi uma para ser agraciada. Assim, pois, é com a salvação: Deus a dá a quem Ele quer e ninguém pode reclamar disso, pois é algo que pertence a Ele. Fiz questão de levar a ilustração para a classe, mas com a seguinte pergunta: tudo bem, mas... teria Deus apenas uma bicicleta? Na realidade, levantei a questão como que me colocando no lugar de alguém que não aceita a doutrina da eleição incondicional tal como é explanada pela fé reformada. E, com isso, acabei aguçando ainda mais a polêmica que já estava sendo travada ali, mas com a intenção de dar uma resposta depois, obviamente.

Respostas? Há, se levarmos em conta, dentre outras coisas, a relação suficiência-eficiência. Encontramos um bom exemplo disso nos Cânones de Dort, no capítulo que trata sobre a morte de Cristo e a salvação do homem por meio dela:

Esta morte do Filho de Deus é o único e perfeito sacrifício pelos pecados, de valor e dignidade infinitos, abundantemente suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro.

Cânones de Dort, II.3. Ênfase minha.

Ou seja, embora a morte de Cristo seja “abundantemente suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro”, ela é eficiente apenas nos eleitos, como o próprio documento diz em seguida:

Pois este foi o soberano conselho, a vontade graciosa e o propósito de Deus o Pai, que a eficácia vivificante e salvífica da preciosíssima morte de seu Filho fosse estendida a todos os eleitos. Daria somente a eles a justificação pela fé e por conseguinte os traria infalivelmente à salvação. Isto quer dizer que foi da vontade de Deus que Cristo por meio do sangue na cruz (pelo qual Ele confirmou a nova aliança) redimisse efetivamente de todos os povos, tribos, línguas e nações, todos aqueles e somente aqueles que foram escolhidos desde a eternidade para serem salvos, e Lhe foram dado pelo Pai.

Idem, II.8. Ênfase minha.

Isto posto, podemos voltar à nossa ilustração da bicicleta: Deus até teria mais para dar, mas resolveu não fazê-lo. E por que não o fez, sendo Ele mesmo bom? Penso ser justamente aí que reside boa parte do problema quando falamos da exclusiva soberania de Deus na salvação do homem. Aliás, a própria pergunta em si já apresenta um grave problema de perspectiva. Já disse algumas vezes que todo e qualquer queixume contra a doutrina da eleição incondicional reside no fato de que o homem se acha bom por natureza e, por conseguinte, merecedor da graça (a “bicicleta”) de Deus. Na realidade, Cristo morreu por mim porque eu merecia ser salvo. É quando o homem passa, então, a confundir a justiça de Deus com a sua própria.

Minha resposta à pergunta por que Deus, mesmo sendo bom não quis Se valer da suficiência da Sua graça para alcançar a todos os que jazem nas trevas é justamente porque a Sua justiça seria ofuscada pelo seu amor, visto que não seria manifesta. Ora, o pecado não poderia passar impune. Se passasse, Deus, que odeia o pecado, deixaria de ser justo e santo. Assim sendo, o amor de Deus não pode ser dissociado do seu corolário, que é a Sua ira, a qual Paulo diz que "se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça" (Rm 1.18). E quando o amor sacrifica a justiça, o que temos não pode ser o amor bíblico e divino, mas um amor defeituoso e totalmente incapaz de redimir aquilo a que se propõe. Poderíamos afirmar, ainda com base nessa passagem paulina, que privar Deus de Sua ira santa é suprimir a verdade (justiça) para que a mentira (injustiça) prevaleça.

Acho que deveríamos pensar duas vezes antes de querermos sobrepor nossos "trapos de imundícia" (Is 64.6) à pureza do Senhor. E antes de reclamar qualquer "bicicleta" a Deus, que déssemos uma atenção especial às palavras do profeta Jeremias: "por que, pois, se queixa o homem vivente? Queixe-se cada um dos seus próprios pecados" (Lm 3.39). Mas isso, quantos querem?

Soli Deo Gloria!

27 de fevereiro de 2012

Três perguntas para você

Pois, quem torna você diferente de qualquer outra pessoa? O que você tem que não tenha recebido? E se o recebeu, por que se orgulha, como se assim não fosse? (1Co 4:7 NVI)

Paulo dirige três perguntas aos orgulhosos coríntios, que consideravam-se superiores aos outros, seja por serem discípulo deste ou daquele apóstolo, seja por terem este ou aquele dom. Mas as perguntas não são cabíveis apenas à igreja corintiana, precisamos considerá-las como se dirigidas diretamente a cada um de nós. Ainda que não as respondamos publicamente.

Quem torna você diferente de qualquer outra pessoa? Não há diferença essencial entre duas pessoas. E espiritualmente falando, todos nascemos na mesma condição. "Como o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram" (Rm 5:12), todas as pessoas se encontram na mesma situação,"não há diferença entre judeus e gentios" (Rm 10:12), pois "todos pecaram e separados estão da glória de Deus" (Rm 3:23). Não importa o gênero, não interessa a idade, classe socio-econômica ou raça não distingue uma pessoa diante de Deus quanto à aceitação ou capacidade, melhor dizendo, incapacidade de agradá-lo.

Porém, a pergunta do apóstolo pressupõe uma diferença. Toda a humanidade divide-se em classes: os perdidos e os salvos, sendo que estes últimos pertenciam anteriormente ao primeiro grupo. "Anteriormente, todos nós também vivíamos entre eles, satisfazendo as vontades da nossa carne, seguindo os seus desejos e pensamentos. Como os outros, éramos por natureza merecedores da ira" (Ef 2:3). Portanto, existe "diferença entre o justo e o ímpio, entre os que servem a Deus e os que não o servem" (Ml 3:18). Essa diferença que não existia antes passou a existir. Iguais em pecado e culpa, tornam-se diferentes e justificados, num dizer, os salvos sobressam-se do contingente de perdidos. A diferença resultante não é negada, mas o causador dela é que se investiga.

O que você tem que não tenha recebido? Da pergunta conclui-se que a diferença não se deve a nada essencial ou inerente a você. Não é algo que você ou contém em sua natureza, mas algo que você passa a possuir. O que diferencia o salvo do perdido não é nada em sua constituição, mas a fé depositada na pessoa e obra de Jesus Cristo. Mas mesmo essa mesma fé não é própria de todos os homens, nem mesmo de alguns homens, mas é recebida como presente. "Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus" (Ef 2:8). A fé, e tudo o mais que precisamos para nossa vida na terra e felicidade no céu nos é dada pelo Senhor, pois o "Seu divino poder nos deu todas as coisas de que necessitamos para a vida e para a piedade, por meio do pleno conhecimento daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude" (2Pe 1:3).

Tampouco é o caso de dizermos que Paulo está enfatizando o fato de você ter recebido e que este ato que te diferencia. Fosse assim, o seu esforço para corrigir o orgulho espiritual seria anulado pela própria afirmação e sua pergunta seguinte perderia sentido. O motivo pelo qual a fé e tudo o mais que compõe a salvação é um dom de Deus é exatamente "para que ninguém se glorie" (Ef 2:9). Isto nos leva para a próxima pergunta:

E se o recebeu, por que se orgulha, como se assim não fosse? Recapitulemos. Como pecador, você era exatamente igual aos filhos da ira, na verdade, era um deles. Então Deus te deu o Espírito Santo e a fé, e assim você foi diferenciado dos demais, passando a ser filho de Deus. O perigo agora é que você, olhando para a sua nova posição diante de Deus, venha a se orgulhar, como se de alguma forma tivesse contribuído para estar onde e como está. Paulo está mostrando o absurdo disso, uma vez que você era tão pecador quanto os demais e que não foi aceito como justo diante de Deus devido à sua vontade boa, inteligência superior ou bom uso de seu arbítrio. Não foi nada que você tivesse ou que viesse a ter de si mesmo que te diferenciou dentre os pecadores, mas Deus te fez diferente por meio daquilo que te deu.

Sendo assim, "onde está, então, o motivo de vanglória? É excluído. Baseado em que princípio? No da obediência à lei? Não, mas no princípio da fé" (Rm 3:27). Duas coisas contribuem para que todo motivo de orgulho seja aniquilado. Negativamente, o fato de que você não era capaz, nem mesmo potencialmente capaz, de obedecer a Lei. Nisto, você era tal e qual o pior dos pecadores. Positivamente, a fé que te diferencia diante do tribunal de Deus é um dom, que lhe foi dado incondicionalmente, portanto, conta crédito para Deus e não para você. Você é humilhado por falhar na obediência da Lei e Deus é glorificado por te salvar mediante a fé, como presente imerecido Dele.

As respostas às três perguntas são as seguintes. A primeira questão deve ser respondida afirmando-se que é Deus quem nos diferencia. A resposta da segunda é que não temos nada que Deus, graciosamente não nos tenha dado. E finalmente, a última pergunta não pede resposta. Mas reconhecimento que do Senhor é a salvação, por Jesus Cristo que é o Autor e Consumador da fé que nos salva.

Soli Deo Gloria
 
Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.
 
 

20 de fevereiro de 2012

O que acontece com crianças que morrem na infância?

O destino eterno dos que morrem na infância suscita debate sempre que a questão é levantada. Porém, as diferenças de opinião não são assim tão grandes. Deixando de lado os pelagianos, os demais cristãos diferem mais em nuanças. Alguns dizem que todos os que morrem na infância serão salvos. O restante diz que não podemos ter certeza de que todos os infantes que morrem na infância serão salvos. Quase ninguém, se é que há alguém, defende com certeza que alguns bebês serão condenados se falecerem nessa idade. E diante da escassez da dados bíblicos sobre o tema, não é prudente causarmos divisão por causa disso. O que não impede de assumirmos uma posição e defende-la. 

A discussão começa com o estado das crianças. Os pelagianos negavam o pecado original, logo, todas as crianças nascem puras e se morrem na infância vão para o céu. Para os arminianos todas as crianças, ainda que herdem o pecado original, nascem em estado de graça e se morrerem vão para o céu, mas perderão esse estado na idade de discrição. Os romanistas (e os luteranos e anglicanos, com modificações) creem que todas as crianças nascem condenadas, permanecendo assim até o batismo. Se morrem batizadas, vão para o céu. Se não forem batizadas, não vão. Os reformados creem que todas as crianças nascem contaminadas pelo pecado, e se forem eleitas, são regeneradas e salvas. Mas se dividem em dois grupos. Um deles, acho que a maioria, acredita que não há diferença entre filhos de pais crentes e descrentes, e outro que os filhos de pais crentes gozam de uma posição privilegiada. Esta última é a minha posição e será fra(n)camente defendida neste artigo.

Minha posição pode ser expressa em três afirmações, feitas e explicadas, sem pretensão de serem absolutas. 

1. As crianças que morrem na infância, se forem eleitas, serão salvas. Esta minha convicção decorre da relação que a Bíblia estabelece entre eleição e salvação. O decreto da eleição é de tal forma infalível que nenhum eleito jamais irá perecer, mas será levado inevitavelmente à salvação em Cristo. E ninguém que venha a se salvar está fora do grupo dos eleitos. Por isso, todos os bebês que morrem e são salvos haviam sido eleitos na eternidade. 

2. Não sei se todas as crianças que morrem na infância são eleitas. Creio que há um silêncio escriturístico a respeito dessa questão, sendo que as posições assumidas geralmente partem de inferências feitas de textos indiretos. O máximo que chego neste ponto é ter esperança de que todos os infantes que morrem sejam salvos. Mas não tenho base bíblica para fazer afirmações categóricas. 

3. Os filhos de pais crentes serão salvos, se forem chamados pelo Senhor antes de uma decisão pessoal. E este ponto pede uma fundamentação um pouco melhor, pois creio que temos elementos bíblicos para isso. Quando Deus estabeleceu sua aliança com Abraão, incluiu seus filhos nela. “Estabelecerei a minha aliança como aliança eterna entre mim e você e os seus futuros descendentes, para ser o seu Deus e o Deus dos seus descendentes” (Gn 17:7). E complementa com a promessa, referindo-se aos seus filhos, “e serei o Deus deles” (Gn 17:8). No Novo Testamento temos a promessa “Creia no Senhor Jesus, e serão salvos, você e os de sua casa” (At 16:31). Por isso, os filhos dos crentes são chamados de “descendência santa” (Ed 9:2), “semente consagrada” (Ml 2:15), “semente santa” (Is 6:13), “povo abençoado” (Is 61:9; 65:23) e “santos” (1Co 7:14). 

Não é o caso de se dizer, nem que os filhos de crentes não precisam ser regenerados, ou que são automaticamente salvos. O meio ordinário de Deus salvar é a pregação do evangelho. No caso de Abraão, lemos de Deus considerando “Pois eu o escolhi, para que ordene aos seus filhos e aos seus descendentes que se conservem no caminho do Senhor, fazendo o que é justo e direito, para que o Senhor faça vir a Abraão o que lhe havia prometido" (Gn 18:19). A promessa realiza-se pela pregação do evangelho. Daí a ordem “Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração. Ensine-as com persistência a seus filhos. Converse sobre elas quando estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar” (Dt 6:6-7). O mesmo padrão se observa na casa do Centurião, de onde lemos “E pregaram a palavra de Deus, a ele e a todos os de sua casa” (At 16:32).

Porém, havendo a promessa e faltando a oportunidade de se pregar para que os filhos creiam, nada deve levar a pensarmos que os pequeninos filhos de crentes não sejam salvos se morrerem. E isso se dá pela regeneração, pois a eles se aplica igualmente as palavras de Davi: “Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51:5). Alguém talvez pergunte, como pode ser regenerado sem fé? Para o arminiano talvez essa seja uma pergunta embaraçosa. Mas para o calvinista, que crê que a regeneração precede a fé, não há dificuldade alguma em que uma criança seja regenerada sem crer.

Concluindo, reafirmo que creio que somente os eleitos que morrem na infância serão salvos, que não sei se todos os infantes que morrem são eleitos mas, que tenho convicção de que todos os bebês filhos de crentes que morrem são eleitos, portanto, salvos.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

2 de fevereiro de 2012

Um post pelo centenário do nascimento de Francis Schaeffer

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[ Francis Schaeffer nasceu no dia 30 de Janeiro de 1912. Nesta semana se fizeram 100 anos do seu nascimento]

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Provavelmente mais do que qualquer outro autor, teólogo, filósofo ou apologeta, Francis Schaeffer tem contribuído para moldar o meu pensamento e prática ministerial. Este é, sem dúvida, o nome mais comentado no BJC - não por idolatria, mas por respeito e para conceder os devidos créditos a quem me ajudou a entender muitas coisas.

Vocês verão escritos sobre Schaeffer direta ou indiretamente pelo menos nestes posts: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22.

Em 2009 escrevi algo sobre o legado de Schaeffer e o seu impacto sobre mim. Eu praticamente repetiria o texto se o escrevesse hoje.

Assim, prefiro ser menos redundante, indicar os textos já escritos, e mencionar poucas contribuições recentes de minhas leituras do e sobre o autor.

1 Tenho aprendido que existem lutas que precisamos encarar como parte de nosso ministério. Schaeffer lutou contra a dislexia, a depressão, a ira, e muitas vezes com a falta de apoio e crítica de outros cristãos. Ele lidou com isso corajosamente, e sou estimulado ao perceber o seu exemplo. Aprendo que não devo fugir de minhas lutas, mas encará-las e vivê-las com a seriedade de um servo de Deus, entendendo que o Senhor está cuidando de  mim. A experiência de L'Abri em termos dos desafios financeiros, e a vivência da fé de Schaeffer e da equipe são desafiadoras e estimulantes.

Schaeffer (1912 - 1984)
2 Tenho aprendido sobre o binômio santidade e amor. Schaeffer ressalta bem em suas obras a necessidade de sermos firmes e amorosos. O caráter de Deus expressa sua santidade e justiça, ao mesmo tempo em que Seu amor e graça. Tenho visto meus irmãos calvinistas e os reformados radicais (também chamados de neopuritanos) e os arminianos e pentecostais agirem com exagerada "santidade", desconsiderando o amor - pelo contrário, massacrando e destruindo os seus oponentes, sem um desejo mais puro de ganhá-los, ajudá-los e servi-los. Tenho me visto nessa mesma situação por vezes e vezes. No outro extremo, vejo liberais, teólogos existencialistas, emergentes e o povo da teologia relacional, além dos adeptos do jeitinho brasileiro demonstrando exagerado "amor", sem considerar a santidade. São sempre carinhosos, nunca confrontando nem apontado o pecado, e assim entregam os pecadores à sua destruição. Também tenho me visto nessa situação algumas vezes. Schaeffer aponta para o equilíbio - santidade e amor: falar a verdade e as coisas duras, mas como fruto de um coração quebrantado, que deseja ver o irmão andando corretamente diante de Deus.

3 Tenho aprendido sobre engajamento cultural. Bebendo da fonte calviniana e kuyperiana, Schaeffer enfatizou o senhorio de Jesus sobre todas as áreas da vida, e assim estimulou o engajamento dos cristãos em todas as áreas da cultura. Por meio de Schaeffer, tenho sido encorajado a apreciar mais as artes, a estudar mais a política, a conhecer melhor as ciências, e a me envolver com tudo isso, reivindicando o senhorio de Jesus sobre tais demarcações. A verdade é a verdade total, e assim posso falar desavergonhadamente sobre Jesus em qualquer área. Mesmo em face do cinismo contemporâneo, da intolerância diante da religião institucional e da moral judaico-cristã, posso levantar minha voz e anunciar Jesus sem medo - Ele é senhor de tudo.

4 Tenho sido desafiado a praticar a hospitalidade. Este é um dos requisitos bíblicos para os presbíteros (pastores), mas creio que exercemos pouco ou nada fazemos. Nas leituras e exemplo de Schaeffer sou desafiado a exercer a hospitalidade de modo mais aberto e amoroso, recebendo e acolhendo pessoas - dentro e fora de meu apartamento - com um coração pronto a compreender e cuidar. Mesmo os provocadores são desafios a que expressemos amor genuíno em uma era individualizada e narcisista.

5 Tenho aprendido sobre forma e liberdade na igreja. A eclesiologia proposta por Schaeffer é bíblica e desafiadora. Ele me ajudou a compreender os elementos essenciais do culto e da igreja - do mesmo modo que qualquer defensor do princípio regulador do culto faria -, mas também me ajudou a entender que dentro da forma, existe liberdade de caminhar. Precisamos seguir a Escritura à risca em suas determinações sobre o culto, mas podemos exercer criatividade para promover outros momentos de edificação conforme a necessidade da igreja. Schaeffer nos desafia e estimula a sermos bíblicos, e ao mesmo tempo criativos - trabalhar com perguntas e respostas, interagir com as artes, entender as demandas do rebanho é tarefa pastoral. Assim sou levado a respeitar as igrejas que caminham do modo mais tradicional possível, ao mesmo tempo em que respeito as que são bíblicas em seu culto, mas promovem outras ocasiões "não tão comuns" de edificação.

Ainda há muito o que aprender. Sou grato a Deus por ter criado Schaeffer, e por nesta semana se completar 100 anos do seu nascimento.

23 de janeiro de 2012

Pastoras pelo casamento

Em minha denominação (O Brasil Para Cristo) há um movimento em favor da aprovação da ordenação de mulheres ao ministério pastoral. Por ser minoria, o movimento não tem logrado êxito em aprovar na Assembleia Nacional a sua petição, que aliás sofre grande rejeição por parte da maioria dos ministros. Em vista disso, tem sido adotada uma estratégia no mínimo sorrateira para tornar o termo pastora mais palatável no arraial brasilparacristiano: atribuir o título de pastora às esposas de pastores. De uma hora para outra, centenas de mulheres viraram pastoras e são assim distinguidas nas congregações e em congressos, simplesmente por terem se casado com pastores.

As razões apresentadas geralmente são três. São esposas de pastoras, logo, compartilham do ministério de seus maridos. Elas exercem funções que são próprias ao ministério pastoral, logo, são pastoras. E, finalmente, participam das agruras ministeriais de seus maridos, então é justo que sejam honradas tal qual eles são com o título de pastor.

Em relação ao primeiro argumento, é bom que se diga que a chamada para o ministério é pessoal ou melhor dizendo, individual. Pedro era casado, mas quando foi chamado para o apostolado, o chamado dizia respeito a ele somente. Mesmo que sua esposa a acompanhasse em suas viagens ministeriais, não era apóstola nem era chamada assim pela igreja. Paulo ao referir-se ao fato de Pedro e outros oficiais se fazerem acompanhar de suas esposas, não as chama de pastoras. “Porventura não temos o direito de levar conosco uma crente como esposa, como também os outros apóstolos, e os irmãos do Senhor, e Cefas?” (1Co 9:5). O fato de serem esposas de apóstolos não as distinguia como apóstolas. Elas são “uma crente esposa”, ou mais literalmente, “uma irmã esposa”. O casamento que faz homem e mulher uma só carne, não os torna um só ministério.

A mulher casada com um pastor não exerce por isso a função pastoral. Embora possa exercer na igreja algumas atividades que seu marido pastor também exerce, ela não faz na condição de pastor. É justo e ordenado que ela ensine as mulheres mais jovens, pois Paulo ordena “que instruam as mulheres moças a amarem seus maridos e seus filhos” (Tt 2:4). Podem e devem seguir o exemplo de Eunice que ensinou seu filho ao qual Paulo disse “desde a infância sabes as sagradas letras que te podem instruir para a salvação pela fé que é em Cristo Jesus” (2Tm 3:15). Porém, o mesmo Paulo vedou a elas o ensino autoritativo na congregação, atribuição do pastor: “não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem” (1Tm 2:12). Outros homens na congregação desenvolvem ministérios que se assemelham em aspectos ao ministério pastoral, mas nem por isso são ou devam ser chamado de pastores.

Alega-se, ainda, que ser esposa de pastor exige sacrifícios extras e que por isso é justo que ela seja honrada com o nome de pastora. Porém, alguma coisas devem ser ditas em relação a isso. A primeira, é que o termo pastor (e seus equivalentes presbíteros e bispos) não se refere a títulos honoríficos nas Escrituras, mas a função que essas pessoas exercem. Apóstolo, pastores, bispos, presbíteros etc. nunca aparecem antecedendo o nome da pessoa, como em títulos, mas sempre depois deles, como as funções. Em segundo lugar, se sofrimento e sacrifício rendesse título, o mais apropriado seria o de mártir, e não de pastor. Em terceiro lugar, não é apenas a esposa do pastor, mas toda a família afetada pelo ministério. Os filhos também o são, mas nem por isso devem ser chamados de pastorzinhos na igreja. Na lista de qualificações para o pastorado consta “que saiba governar bem a sua casa, tendo seus filhos em sujeição com todo o respeito” (1Tm 3:4), ou seja, esposa e filhos afetam e são afetados pelo ministério do marido e pai, mas não a ponto de reinvidicarem serem honrados ou distinguidos na igreja com títulos.

Disso tudo se desprende que é incabível esposa de pastor serem chamadas de pastora. A intenção disso é distinguir entre irmãos na igreja, o que é sempre danoso ao Corpo. Temos funções diversas, pois o Espírito nos usa com uma diversidade de dons, ministérios e operações, conforme Ele quer. Mas jamais devemos nos basear nisso para distinguirmos entre irmãos, pois isso, no dizer de Paulo, é pura carnalidade. Nenhum tratamento é mais honroso e deve ser mais almejado do que ser chamado de irmão e irmã.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

16 de janeiro de 2012

O controverso coração de Faraó

“Pois disse a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder, e para que seja anunciado o meu nome por toda a terra. Logo ele tem misericórdia de quem quer, e a quem quer endurece” (Rm 9:17-18).

Muitos crentes não gostam da ideia de Deus endurecer o coração de alguém. Aliás, nem mesmo apreciam o fato de que Deus use de misericórdia com quem Ele quiser, ao invés de com todo mundo. Em que pese o desagrado de muitos, a Bíblia não apenas afirma que Deus tem misericórdia de quem Ele quer, mas também que endurece a quem deseja endurecer. Um exemplo deste último caso é Faraó.

É líquido e certo o fato do coração de Faraó ter sido o endurecido. Reiteradas vezes a Bíblia diz “endureceu-se o coração de Faraó, e não os ouviu” (Gn 7:3, 22; 8:19; 9:35). Endurecer significa fortalecer, prevalecer, firmar, tornar resoluto, persistente. Numa palavra bíblica: tornar obstinado: “o coração de Faraó estava obstinado, e não deixou ir o povo” (Ex 9:7). A questão é: quem endureceu o coração do rei?

Se nos deixarmos levar por nossos compromissos teológicos previamente assumidos, corremos os risco de selecionar e considerar relevante apenas as passagens que dizem que o próprio Faraó endureceu seu coração, ou então somente aquelas que afirmam que Deus endureceu o coração do rei do Egito. Ainda que um despimento completo de preconceito seja virtualmente impossível, convém que examinemos todas as passagens que falam do endurecimento do coração de Faraó, antes de afirmarmos uma posição.

A primeira referência direta (vide Ex 3:19 para uma indireta) ao endurecimento do coração de Faraó está em Êxodo 4:21: “Eu endurecerei o seu coração, e ele não deixará ir o povo”. Essa declaração divina se repete mais duas vezes (Ex 14:4, 17). Além disso as escrituras dizem “Jeová endureceu o coração de Faraó, e este não ouviu; como Jeová havia dito a Moisés” (Ex 9:12). Novamente, a declaração se repete algumas vezes (Ex 10:20; 11:10; 14:8). Não há como negar que Deus endureceu o coração de Faraó. E para os que dizem que Moisés estava se expressando condicionado ao modo de pensamento hebraico, Deus mesmo diz “Eu endureci o seu coração e o coração dos seus servos, para que eu manifeste estes meus prodígios no meio deles” (Ex 10:1).

Mas há também aquelas passagens que afirmam que Faraó endureceu o seu próprio coração e que não devem ser ignoradas. A primeira delas está em Êxodo 8:15: “Mas vendo Faraó que havia descanso, endureceu o seu coração, e não os ouviu; como Jeová havia dito”. Um pouco adiante diz “endureceu Faraó ainda esta vez o seu coração” (Ex 8:32) e finalmente “tendo Faraó visto que a chuva e a saraiva e os trovões haviam cessado, tornou a pecar e endureceu o seu coração” (Ex 9:34). Essas passagens bíblicas tomadas em seu conjunto devem nos levar à conclusão que tanto Deus endureceu o coração de Faraó, como ele próprio endurece-se a si mesmo. Porém, alguma coisa mais poderia ser dita a esse respeito.

Primeiro, a decisão de Deus de endurecer o coração de Faraó antecede o endurecimento por parte de Faraó. Deus tomou a iniciativa de endurecer o coração dele (Ex 4:21). Tanto é assim que quando a Bíblia refere-se ao endurecimento por parte de Faraó, acresce “como Jeová havia dito”. Segundo, o número de referências ao endurecimento produzido por Deus é significativamente maior. Estatísticamente falando, Deus endurece mais vezes que Faraó. Em terceiro lugar, no endurecimento de Faraó Deus age e ele reage. Deus não fez maravilhas no Egito para amolecer o coração duro de Faraó, fez sim para manifestar a Sua glória através do endurecimento gradual do coração do rei. Deus tinha um propósito, e o endurecimento do coração do rei servia a esse propósito. Finalmente, a escritura coloca a decisão de quem será endurecido e quem receberá misericórdia nas mãos de Deus. Conforme Paulo declara, depende da vontade de Deus e não da vontade do homem receber misericórdia ou ser endurecido.

Concluímos dizendo que Deus é soberano e exerce Seu domínio no coração do homem, seja dispondo para o bem, seja endurecendo para a Sua glória. Há várias passagens que colocam isso acima de qualquer dúvida sensata. E que não obstante isso ser assim, o homem ainda é responsável pelo próprio endurecimento do coração. Não entender como isso se dá não invalida o que a Bíblia diz a esse respeito e tampouco é desculpa para rejeitar ou tentar amenizar o que a Escritura afirma categoricamente.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

9 de janeiro de 2012

O Espírito de Deus tem ciúmes?

Ou cuidais vós que em vão diz a Escritura: O Espírito que em nós habita tem ciúmes? Tg 4:5 (ACF2007)

Esta é uma passagem que apresenta considerável dificuldades de compreensão, se examinada mais atentamente e à luz de seu contexto. A questão que se levanta é se espírito se refere ao Espírito Santo, ao espírito humano ou a um espírito maligno. O que dá espaço à polêmica é a conotação negativa do termo ciúme, agravada pelo fato da passagem citada por Tiago não ser encontrada no Antigo Testamento na forma em que é expressa.

A dificuldade é evidenciada pela variedade de formas com que “προς φθονον επιποθει το πνευμα ο κατωκησεν εν ημιν” (literalmente “com ciúme anseia o espírito que fez habitar em nós”), é traduzido. A Almeida Revista Corrigida diz “o Espírito que em nós habita tem ciúmes”, a Tradução Brasileira “com zelos anela por nós o Espírito que ele fez habitar em nós”, a Almeida Revista traduz “o Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme”, a Almeida Revista e Atualizada “é com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós” e a NVI traz “o Espírito que ele fez habitar em nós tem fortes ciúmes”. A Bíblia de Jerusalém apresenta “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?” e a Almeida Revista e Corrigida Anotada traz a seguinte alternativa: “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”.

Traduções em linguagens mais modernas também apresentam várias possibilidades. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje diz “o espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”, a Bíblia Viva traduz “o Espírito Santo, que Deus pôs em nós, vigia sobre nós com terno ciúme” e a Versão Fácil de Ler “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”. Como se vê, pela simples comparação de traduções e versões fica difícil chegar a um consenso. É difícil até mesmo concluir se se trata de uma afirmação (“o espírito tem ciúmes”) ou uma pergunta (“o espírito tem ciúmes?”).

A palavra ciúme

Qual é o significado real do termo traduzido como ciúme? Ele deve ser tomado num sentido bom ou mau? No grego secular o termo phtoneo significa inveja “que faz com que alguém tenha ressentimento contra outra pessoa por ter algo que ele mesmo deseja, sem porém, possuí-lo” (DITNT). Embora pareça ser sinônimo de zelos, ciúme, os escritores clássicos distinguem um do outro. Enquanto zelos é “o desejo de ter aquilo que outro homem possui, sem necessariamente ter ressentimento contra aquele que o possui”, pthonos “se ocupa mais em privar o outro da coisa desejada do que em obtê-la”.

No Novo Testamento, a forma verbal ocorre apenas uma vez, enquanto que o substantivo aparece nove vezes. Em Gl 5:26 “invejando-nos uns aos outros” contrasta com “viver no Espírito” (Gl 5:25). Nas epístolas aparece em várias listas de qualidades más. Em Gl 5:21 é uma “obra da carne”, em Rm 1:29 é uma característica daqueles a quem Deus entregou a um “sentimento perverso”, e em Tt 3:3 dos inconversos. Em 1Pe 2:1 é algo que os crentes devem deixar para trás, 1Tm 6:4 diz que nasce de questões e contendas de palavras motivadas pela soberba. Os evangelhos (Mt 27:18; Mc 15:10) nos informam usando esse termo que foi por inveja que os líderes religiosos entregaram Jesus a Pôncio Pilatos. Em Fl 1:15 o termo é contrastado com “boa vontade”.

O que se pode concluir do uso bíblico de phthonos é que refere-se a um “sentimento de desgosto produzido por testemunhar ou ouvir falar da vantagem ou prosperidade de alguém” (Vine). E devido a esse sentido sempre negativo, jamais é utilizado em referência a Deus ou ao Espírito Santo, e se em Tg 4:5 o sujeito é Deus ou o Espírito Santo, trata-se de uma excepcionalidade e tanto.

O texto citado por Tiago

É impossível identificar com certeza qual passagem Tiago tinha em mente. Alguns acreditam que que ele não se referia a nenhuma passagem específica, mas fazia um resumo do ensino do Antigo Testamento. Porém a fórmula de introdução que usa, “a escritura diz” parece requerer uma citação direta. Vejamos algumas das possíveis passagens, sem pretender esgotar as alternativas.

Algumas passagens dizem que Deus é zeloso. Êxodo 20:5 diz que “eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso” e noutra parte “o nome do SENHOR é Zeloso; é um Deus zeloso” (Ex 34:14). Esse zelo divino é primeiramente voltado para a Sua glória, mas também por aqueles que lhe pertencem: “Zelei por Sião com grande zelo, e com grande indignação zelei por ela” (Zc 8:2). Esse zelo faz de Deus um fogo consumidor “o SENHOR teu Deus é um fogo que consome, um Deus zeloso” (Dt 4:24). Porém uma informação deve ser dada aqui. O termo hebraico usado nessas passagens, e em outras correlatas, quando citadas no Novo Testamento ou traduzidas na Septuaginta, é sempre zelos e nunca phthonos.

Uma passagem contraposta a essas é Gn 4:7: “Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar”. O que dizem que essa é a passagem que Tiago tinha em mente advogam que ciúme não tem a ver com o zelo divino, e sim com desejos pecaminosos dos homens. Nesse caso, espírito é usado em contraposição ao Espírito Santo. “Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam” (Gl 5:17). Outras passagens poderiam ser sugeridas (Gn 6:3; Is 63:8–16; Ez 36:17; Zc 1:14; 8:2-3), mas infelizmente não ajudam a elucidar a questão.

O sujeito da oração

Tendo levantado as questões anteriores, podemos nos voltar para a discussão da identidade do espírito. Faremos isso considerando quem é o sujeito na oração. As possibilidades são Deus, o Espírito Santo, o espírito do homem e o espírito maligno.

Até onde pude constar a única tradução que se aproxima (a conclusão é questão de interpretação) de um espírito maligno aqui é o Novo Testamento Judaico: “Ou vocês supõem que a Escritura fala em vão ao dizer que há um espírito em nós que deseja intensamente?”. Yiechiel Lichstenstein, citado no Comentário Judaico do Novo Testamento, diz “Em minha opinião, o espírito aqui se refere não a Deus, mas a Satanás”. Ele busca apoio no verso 7, que diz “resisti ao Diabo e ele fugirá de vós” e recorre a Gn 4:7 afirmando que “o espírito maligno é o impulso maligno em nós”, apoiando essa interpretação de Gênesis no Tamulde (Bava Batra 16a): “Ele é Satanás, o impulso maligno”.

Algumas traduções colocam Deus como sujeito e o Espírito (Santo ou humano) como o objeto do ciúme. Um exemplo é a Bíblia de Jerusalém: “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?”, seguida pela Fácil de Ler: “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”. Uma vez aceita essa tradução, resta saber a identidade do Espírito. Algumas versões trazem a expressão “que ele fez habitar em nós” (vamos passar ao largo da discussão sobre os manuscritos usados nas traduções). É uma expressão comum para se referir ao Espírito Santo e inédita em referência ao espírito humano. Nesse caso, é mais provável que espírito seja uma referência ao Espírito Santo.

Parece-me que a maioria das traduções colocam o Espírito Santo como sujeito. A Almeida Revista e Atualizada representam bem esse grupo de traduções e versões: “É com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós”. Porém, nem todas afirmam positivamente que o Espírito tem ciúmes, mas colocam a questão na forma interrogativa, que alguns entendem ser uma pergunta retórica, que pede um não como resposta, como sugere a nota da Almeida Revista e Corrigida Anotada: “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”.

Finalmente, há a possibilidade de que espírito se refira ao espírito humano. A NTLH parece indicar isso: “O espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”. Apesar de grafar Espírito, com maiúscula, a Almeida Revista e Atualizada, também pode ser entendida assim. “O Espírito que em nós habita tem ciúmes”. E se “que fez habitar em nós” for admitido como possível para o espírito humano, outras traduções podem ser consideradas como apresentando o espírito humano como aquele que tem ciúmes.

Minha posição

Pela complexidade da passagem, qualquer posição deve ser considerada provisória e sujeita a revisão. Portanto, não pretendo ser dogmático. Mas considerando que ciúme/inveja é tomado sempre num mau sentido na Bíblia e jamais utilizado tendo Deus ou o Espírito Santo como sujeitos, acho muito improvável que a divindade seja representada como tendo ciúmes (lembrando que zelo é uma tradução sui generis aqui). Além disso, o verso seguinte estabelece um contraste, dizendo “Antes, dá maior graça” (Tg 4:6). Portanto, creio que como em todo o Novo Testamento, aqui também ciúme tenha uma conotação má, incompatível com o caráter de Deus. Assim, vejo duas possibilidades: ou a sentença é interrogativa e retórica (“o Espírito tem ciúme? Não”) ou o espírito referido é o humano, tomado de paixões carnais. Das duas, fico com a primeira, mas considero a segunda também consistente com o contexto e com o restante da Bíblia.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.

2 de janeiro de 2012

Crescei na graça e no conhecimento em 2012

“Crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno” 2Pe 3:18
O crescimento é um fenômeno esperado em todos os seres vivos. No pre-natal uma das coisas que o médico controla é o crescimento do bebe. Quando a criança nasce, o obstetra a pesa e mede o recém-nascido. E a cada consulta o pediatra, novamente, repete medições e pesagens. O que todos esperam como resultado é que com o passar do tempo, a criança vá crescendo. Na vida espiritual, o crescimento também é esperado.

Nós nascemos como filhos de Deus “pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade" (Tg 1:18). Devemos, pois, desejar “ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação” (1Pe 2:2). Mas o crescimento a partir daí é esperado. “Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais, como a crianças em Cristo” (1Co 3:1). Na medida que avançamos no tempo, devemos avançar no desenvolvimento da nossa fé, para não ouvirmos o Espírito nos repreender dizendo “Quando devíeis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes como necessitados de leite e não de alimento sólido” (Hb 5:12). O nosso alvo é crescer “até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4:13).

Aqui, o crescimento não é apenas esperado, mas ordenado. “Crescei!”, diz Pedro. O verbo está no presente e é um imperativo, uma ordem. Devemos crescer. É verdade que o crescimento espiritual é “crescimento que procede de Deus” (Cl 2:19), mesmo assim nos é ordenado “desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor” (Fp 2:12). Deus nos ordena o que Ele mesmo nos dá, então podemos confiar que o crescimento espiritual não apenas é esperado e ordenado, mas também possível!

O apóstolo nos diz para crescermos na graça. Mas o que vem a ser graça? Receio que de tão usada, graça é uma palavra cujo sentido escape a muitos. Uma definição de graça diz que é o “um dom gratuito e sobrenatural dado por Deus para conceder à humanidade todos os bens necessários à sua existência e à sua salvação”. Uma maneira de compreender a graça é contrastá-la com a justiça. A justiça é dar a cada um o que lhe é devido. É justo que um trabalhador receba o salário devido. É justo que um criminoso seja punido proporcionalmente ao seu crime. Mas a graça não é justiça, na verdade, ela muitas vezes aparenta ser injusta. Trabalhadores que trabalham apenas um hora num dia recebem igual pagamento que os que trabalharam o dia inteiro. Ovelhas fiéis são deixadas no deserto enquanto o pastor vai em busca de uma desgarrada. Um filho esbanjador ganha roupas novas, jóias e uma festa, enquanto que o irmão obediente ainda está no trabalho, e só ouve a música ao completar o dia no campo. A graça, portanto, nada tem a ver com merecimento. Pelo contrário, só há graça onde há demérito.

Sendo assim, crescer na graça não tem a ver com ser mais digno, mais apto, mais preparado, mais ativo, mais isto ou mais aquilo. Crescer na graça é reconhecer a própria indignidade, é descobrir-se completamente inapto e despreparado, enfim, é desesperar-se de si mesmo. “Então, ele me disse: a minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo” (2Co 12:9). Crescer na graça, é crescer como rabo de cavalo, para baixo, pois Deus “dá maior graça; pelo que diz: Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg 4:6). Sendo assim, nosso lema deve ser “convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:30).

Somos instados a crescer no conhecimento. “O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento” (Os 4:6) era um fato nos dias de Oséias, e é uma verdade nos dias de hoje. “Não provém o vosso erro de não conhecerdes as Escrituras, nem o poder de Deus?” (Mc 12:24) descreve o motivo de tantos se desencaminharem hoje. De Jesus é dito que “crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele” (Lc 2:40). De nós deve ser dito “estais possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos admoestardes uns aos outros” (Rm 14:14).

Ter conhecimento não apenas a acumular dados e informações. Dados e informações podem ser coletados e com os recursos disponíveis hoje, temos acesso a tanta informação que somos incapazes de dar conta dela. Conhecimento é informação processada, e no caso do conhecimento revelado na Escritura, é informação trabalhada em nosso coração pelo Espírito Santo. É necessária iluminação, “desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei” (Sl 119:18). É necessário meditação, “antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite” (Sl 1:2).

Tendo considerado a necessidade de crescer na graça e no conhecimento, precisamos descobrir o caminho para isso, embora alguma coisa já tenha sido adiantada. Indicarei então que Jesus é a fonte da graça e do conhecimento, pois “o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade” (Jo 1:14). Não obteremos mais graça nos aperfeiçando ou procurando em nós mesmos, “porque... a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1:17). De igual modo, para obtermos o conhecimento que precisamos, temos que ir a Jesus “em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2:3). O segredo do crescimento na graça e no conhecimento é uma intimidade maior com Jesus Cristo e Sua Palavra.

À guisa de conclusão, uma palavra a respeito do objetivo maior do crescimento na graça e no conhecimento. Embora sejamos imediatamente beneficiados por esse crescimento, o propósito final é a glória de Deus. Pedro termina sua exortação com as palavras “a Ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno” (2Pe 3:18). Quando diminuímos para que Ele cresça, Ele é louvado. Quando aprendemos mais dEle, conhecendo-o melhor, melhor o glorificamos. Por isso, cresçamos na graça e no conhecimento, para glória dEle.

Soli Deo Gloria

Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.