23 de março de 2010

A doutrina da Criação no Catecismo de Heidelberg

O que o Catecismo de Heidelberg fala acerca da doutrina da criação pode até não ser a exposição mais apreciada e abrangente (em comparação com outras confissões de fé e catecismos do período da Reforma) sobre o assunto, mas é a que mais me agrada. Por que? Porque ela dá um toque, digamos, mais devocional a esse tema. Escrito a pedido do príncipe eleitor da província alemã do Palatinado, Frederico III (que havia se tornado calvinista em 1560), por Zacarias Ursinus (professor de teologia da Universidade de Heidelberg) e por Gaspar Olevianus (pregador da corte de Frederico), esse valioso catecismo, publicado em 19 de janeiro de 1563, tem muito a nos ensinar sobre como a doutrina da criação pode nos levar a uma reflexão mais piedosa (sem deixar de ser teológica) sobre o Deus Criador e as coisas a Ele concernentes.

A exposição do tema encontra-se nas perguntas 26 a 28 do Catecismo (sugiro aos leitores que atentem bem para as referências bíblicas).

Pergunta 26 – Em que você crê quando diz: “Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra”?


Resposta – Creio que o eterno Pai de nosso Senhor Jesus Cristo criou, do nada, o céu, a terra e tudo o que neles há (1) e ainda os sustenta e governa por seu eterno conselho e providência (2) . Ele é também meu Deus e meu Pai, por causa de seu Filho Cristo (3). NEle confio de tal maneira, que não duvido que dará tudo o que for necessário para meu corpo e minha alma (4); e que Ele transformará em bem todo mal que me enviar, nesta vida conturbada (5) . Tudo isto Ele pode fazer como Deus todo-poderoso (6) e quer fazer como Pai fiel (7) .


(1) Gn 1:1; Gn 2:3; Êx 20:11; Jó 33:4; Jó 38:4-11; Sl 33:6; Is 40:26; At 4:24; At 14:15. (2) Sl 104:2-5,27-30; Sl 115:3; Mt 10:29,30; Rm 11:36; Ef 1:11. (3) Jo 1:12; Rm 8:15; Gl 4:5-7; Ef 1:5. (4) Sl 55:22; Mt 6:25,26; Lc 12:22-24. (5) Rm 8:28. (6) Rm 8:37-39; Rm 10:12; Ap 1:8. (7) Mt 6:32,33; Mt 7:9-11.

Como é claramente perceptível, o Catecismo de Heidelberg se utiliza da primeira sentença do Credo Apostólico (séc. II – VI) na formulação da pergunta 26, uma vez que o referido credo foi amplamente aceito pelas igrejas reformadas como sendo uma genuína expressão da fé que nos foi legada pelos apóstolos de Cristo. E a resposta a essa pergunta não poderia ser mais esplêndida. Ela não diz apenas que Deus criou “do nada” (ex nihilo) todas as coisas, mas faz questão de frisar que Ele é “meu Deus e meu Pai, por causa de seu Filho Cristo”. É somente por intermédio de Jesus Cristo que alguém pode se apropriar do amor paternal de Deus. O Catecismo também faz questão de acentuar a necessidade de confiarmos total e irrestritamente no fato de que Deus nos dará tudo o que for necessário para nossos corpos e almas. Ou seja, Deus não apenas proverá nosso alimento material (“necessário para meu corpo”), mas também o espiritual ([necessário] para minha alma”). Em tempos onde os crentes andam tão vacilantes quanto à certeza da divina provisão para as suas necessidades mais básicas (tanto materiais quanto espirituais), a inabalável convicção exposta nessa resposta deve nos servir de exemplo. Precisamos crer que o mesmo Deus que cria é o mesmo Deus que supre. O Catecismo ainda diz, alinhado ao que Paulo fala sobre todas as coisas cooperarem para o bem daqueles que amam a Deus (Rm 8.28),  que o próprio Deus converterá todo mal que Ele nos enviar em bem, enquanto aqui estivermos. O mesmo Deus que das trevas fez resplandecer a luz é o mesmo Deus que fará redundar em glória as agruras pelas quais passamos aqui nesta terra. A última sentença da resposta não poderia ser mais categórica: Deus pode nos provar pelo seu soberano poder, e quer nos livrar por sua fidelidade paternal.

Referindo-se à divina Providência, doutrina que está intimamente ligada à doutrina da Criação, o Catecismo ainda nos diz, em resposta à pergunta 27 (“O que você entende por ‘Providência de Deus?’”), que “ervas e plantas, chuva e seca [Jr 5.24; At 14.17] , anos frutíferos e infrutíferos, comida e bebida, saúde e doença, riqueza e pobreza [Pv 22.2; Jo 9.3] e todas as coisas [Pv 16.33; Mt 10.29] não nos sobrevem por acaso, mas de sua mão paternal”. Deus, por ser onipotente e onisciente, não apenas “sustenta continuamente o céu e a terra e todas as criaturas” (providência), mas também os governa de tal modo que Sua Soberania seja a todos evidenciada.  Notem os queridos leitores que o Catecismo inclui a “seca”, os “anos infrutíferos”, a “doença” e a “pobreza” na categoria daquelas coisas que “não nos sobrevem por acaso”. Se for assim, quem é que está por trás disso tudo? “É a ‘mão paternal’ de Deus” – responde o Catecismo. ABRE PARÊNTESE. Os propagadores do Teísmo Aberto (heresia que nega, dentre outras coisas, o absoluto controle de Deus sobre todas as coisas) odiariam esta afirmação. Nesse caso, não é um problema deles com o Catecismo, e sim, um problema deles com as Escrituras. FECHA PARÊNTESE.

Mas, afinal, “que benefício há em sabermos que Deus criou todas as coisas e que continuamente as sustenta pela sua providência” (Pergunta 28)? Chegamos, então, ao “filé mignon” da exposição que o Catecismo faz da doutrina da Criação. E a resposta é:

Para que tenhamos paciência em toda adversidade (1) e mostremos gratidão em toda prosperidade (2) e para que, quanto ao futuro, tenhamos a firme confiança em nosso fiel Deus e Pai, de que criatura alguma nos pode separar do amor dEle (3) . Porque todas as criaturas estão na mão de Deus, de tal maneira que sem a vontade dEle não podem agir nem se mover (4) .

(1) Jó 1:21,22; Sl 39:9; Rm 5:3,4; Tg 1:3. (2) Dt 8:10; 1Ts 5:18. (3) Sl 55:22; Rm 5: 4,5; Rm 8:38,39. (4) Jó 1:12; Jó 2:6; Pv 21:1; At 17:25-28.

Dificilmente alguém enxergaria algum benefício prático em se possuir uma perspectiva correta sobre a doutrina da criação. “E daí? O que é que eu ganho com isso? Que diferença isso fará na minha vida?” – é o que pensa a maioria das pessoas (em tom de desdém), inclusive alguns crentes. E o Catecismo, mais uma vez de forma mui apropriada, nos instrui de forma singular.

Que benefício há em sabermos destas coisas? Para que tenhamos a paciência de Jó (Jo 1.21) e do salmista Davi, que no meio da adversidade reconheceu tanto a soberania quanto a providência do Seu Criador: “Emudeço, não abro os meus lábios porque tu fizeste isso” (Sl 39.9 – itálico meu). Que benefício há em sabermos destas coisas? Para que sejamos gratos a Deus quando as coisas estiverem dando certo. Não devemos lembrar de Deus apenas quando o cerco se fecha contra nós. Não devemos lembrar de que Ele é o Criador de todas as coisas apenas quando a terra treme, ou quando a chuva cai copiosa e arrasadoramente, momentos estes em que costumamos clamamos por Sua misericórdia e graça, mas devemos ser gratos em todo tempo e em qualquer circunstância. Foi exatamente isso que Ele recomendou ao povo de Israel: “Comerás, e te fartarás, e louvarás o Senhor, teu Deus, pela boa terra que ele te deu” (Dt 8.20). Que benefício há em sabermos destas coisas? Para que a incerteza quanto ao futuro não assalte nossos corações com aquele tipo de pavor que é próprio dos incrédulos. Foi Jesus mesmo quem disse para não andarmos preocupados com a nossa vida, quanto ao que haveremos de comer e beber, nem quanto ao nosso corpo, quanto ao que haveremos de vestir. Segundo o próprio Mestre, esse tipo de ansiedade é uma particularidade dos pagãos. Ele mesmo é quem nos garante que o mesmo Deus que criou e veste as ervas dos campos é o mesmo Deus que cuida (e continuará cuidando!) de nós (Mt 7.25-34). Que benefício há em sabermos destas coisas? Para sabermos, finalmente, que todas as coisas, absolutamente todas as coisas, estão sob o domínio de Deus. Não apenas as coisas visíveis, como as chuvas e os terremotos, mas também as coisas invisíveis, como os principados e potestades que habitam nas regiões celestes. Inclusive o diabo, que, como dizia Lutero, é “o diabo de Deus”. Mas o bom de tudo é saber que nada, absolutamente nada disso poderá nos separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 8. 31-39). Aleluia!

Saber destas coisas faz toda a diferença, meus amados. A vontade que me dá é de não parar mais de escrever sobre estas verdades tão maravilhosas. No momento em que escrevo estas linhas passa em minha memória um filme da minha breve vida, de como Deus tem sido misericordioso para comigo, um pecador. Não posso ser outra coisa senão grato a Ele por tão grande amor. Infelizmente, nem sempre é dessa forma que encaramos certos temas teológicos. Geralmente nem nos esforçamos para enxergar sequer uma pontinha de “possibilidade devocional” em nossas elucubrações. Por isso, agradeço a Deus pelo Catecismo de Heidelberg, que me fez enxergar a teologia (doutrina) da Criação por um prisma, digamos, “diferente” – o da piedade.

Soli Deo Gloria!!!

Um comentário:

  1. Leonardo, que texto maravilhoso! Louvado Seja o Senhor por sua generosidade e pelas palavras deste catecismo tão simples e tão denso em fundamento, tradição e virtude. Amei a doçura deste texto, tão sóbrio. Enquanto eu o li, como você, identifiquei os vários momentos que experimentei a providência (cuidado com esta palavra - pro+vidência) Experimentei o Deus que "vê com antecipação" (יראה - ireê em hebraico). Ele vê e determinou o necessário, a graça e a dádiva, o suficiente para que eu viva minha vida dentro daquilo que Ele determinou como plenitude, para um homem pecador como eu. 'Não depende de quem corre, ou de quem quer, mas de Deus ter misericórdia'.

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