28 de agosto de 2011

Resenha do livro "Em Defesa da Teologia", de Gordon Clark



CLARK, Gordon H. Em defesa da teologia. Brasília: Editora Monergismo, 2010. 114 pp.


Traduzido por Marcos Vasconcelos e prefaciado por Felipe Sabino (à edição brasileira) e John Robbins (à edição americana), o livro escrito pelo teólogo e filósofo calvinista norte-americano Gordon Haddon Clark (1902 – 1985) possui seis capítulos, acrescidos de um posfácio (“A crise de nossa era”), também de autoria do Robbins. O que se seguirá será mais um resumo do que propriamente uma resenha, embora haja algumas observações.

No primeiro capítulo, e de forma bem genérica, o Dr. Clark fala sobre os quatro grupos de pessoas que, em diferentes graus, desprezam a teologia enquanto ciência. Com uma boa dose de ironia – ironia esta que, aliás, perpassa todo o livro –, ele começa sua fala dizendo que “a teologia, aclamada no passado como ‘a rainha das ciências’, hoje mal chega à posição de lavadora de pratos” (p. 17). O primeiro grupo, pois, é o dos “cristãos medianos”, o qual abrange “pessoas de diversos níveis de desenvolvimento teológico e espiritual” (p. 18). É aos tais que Clark chamará no capítulo três de “os desinteressados”. O segundo grupo é o dos “ateístas”, que são aquelas “pessoas que afirmam não haver Deus” (p. 21). Aqui, Clark inclui os positivistas lógicos (“uma divisão notável do grupo ateísta histórico”), os naturalistas ou humanistas (“adoradores do cientificismo [que] não são positivistas lógicos”), alguns políticos liberais e seus “credos socialistas”, os panteístas e, por último, os agnósticos, “embora seus adeptos repudiem enfaticamente a designação de ateístas” (p. 22, 23). O terceiro grupo é formado por aqueles indivíduos que “creem na existência de algum tipo de Deus, mas estão convencidos de que ele não pode ser conhecido” (p. 24). Difere do agnosticismo justamente pelo detalhe religioso: não obstante sua transcendência, esse Deus “pode ser sentido”. Aqui Clark dirige parte de sua crítica aos pentecostais e aos “fundamentalistas rasos”, a quem ele chama a ala “extrema direita” desse grupo. “Os integrantes dessa casta generalizada”, diz Clark, “perguntam-se o que a teologia, com seus detalhes e a ortodoxia morta, teria em comum com a oração e a religião ‘fervorosa’”. Contra essa invectiva, Clark observa (em nota de rodapé) que “hoje, há tão pouca ortodoxia de qualquer tipo que seria reconfortante encontrar até mesmo a ortodoxia morta" (p. 25). Mas o alvo de Clark é mesmo os neo-ortodoxos, a ala “extrema esquerda” do grupo. Começando por Schleiemacher, “o iniciador moderno da teologia da experiência” (p. 25) e passando por Kierkegaard, aquele que “rejeitou o sentimento do infinito substituindo-o pela ‘paixão pelo infinito’” (p. 26), Clark chega, então, a Emil Brunner e a Karl Barth, a quem dirigirá críticas mais específicas no capítulo quatro, sobre a Neo-ortodoxia. Sobrou até para Dooyeweerd, a quem Clark acusa de defender pontos de vistas “extáticos, irracionais e existenciais” (p. 27), mas sem justificar o porquê disso – o que é uma falta grave da sua parte. Diz Clark que “os mais bíblicos desse grupo, não particularmente a multidão desatenta que dorme durante o sermão, mas, em especial, pastores e autores de livros devocionais populares, são, na maioria, incoerentes. Possuem uma pobre compreensão lógica e por isso, firmemente agarrados a alguma doutrina fundamental, também defendem, pregam e escrevem as heresias mais selvagens. Essa mistura indigesta”, continua ele, “é enfeitada de forma regular com o chantili fofo do absurdo” (p. 27). O quarto grupo, por fim, consiste nos que estudam mais teologia que a pregada no púlpito, a quem Clark dedicará o último capítulo de sua autoria.

A partir do segundo capítulo é que Clark se dirige de forma específica aos quatro grupos acima listados, começando pelos ateus. Como o cristão deve combater o ateísmo? Para Clark, o método evidencialista (embora ele não use esse termo), além de ser árduo, é praticamente inútil. Ele diz que “o ‘argumento cosmológico’ não é apenas extremamente difícil, uma vez que demandaria grande dose de ciência, matemática e filosofia para formá-lo, mas é inconclusivo e irremediavelmente falacioso. Essa não é a maneira de responder aos ateístas” (p. 34). Clark também ressalta a inutilidade do método evidencialista ao dizer que “os cristãos deveriam se preocupar menos com a existência de Deus e mais com o tipo de Deus existente”. Para ele, afirmar que Deus existe “não ajuda em nada o cristianismo”. “Já que tudo existe, a palavra existe é desprovida de informação. Por isso que o Catecismo pergunta: ‘o que é Deus?’, e não: ‘Deus existe?’” (p. 36). Qual o método, então? “Nosso axioma é o de que Deus falou. Ou, de modo mais completo – Deus falou na Bíblia. De forma mais precisa, as afirmações bíblicas são o que Deus falou”, responde ele (p. 38). Que Clark tem em mente aqui o escrituralismo (as Escrituras como a única fonte de verdade, em contraponto ao pressuposicionalismo do tipo vantiliano-schaefferiano, que contempla verdade em outras fontes) fica evidente no restante do livro.

No terceiro capítulo, como já foi mencionado, Clark se dirige aos “desinteressados”. São aqueles que consideram a teologia como uma matéria nada prática ou inútil; que aderem a bordões já desgastados como “nenhum Credo, senão Cristo” e “o que conta não é o que se crê, mas o que se sente” (p. 41). Para Clark, contudo, “caso Deus exista – supondo o descarte do ateísmo – ele deve ser alguém que deveríamos conhecer”. Isso o leva a afirmar que “ninguém pode ser crente sem teologia – o conhecimento de Deus” (p. 42). Clark também observa que “o temperamento americano é ativista e prático e talvez se impressione mais com a necessidade de teologia para o evangelismo”. E, após citar o quanto se desdenha de doutrinas como a ressurreição de Cristo nas faculdades e escolas de ensino fundamental – onde as pessoas são “inculcadas pela educação humanista” –, Clark aproveita para denunciar alguns “evangelistas” que, para contornar tais objeções, resolvem simplesmente excluir a ressurreição do “evangelho” deles ou então existencializá-la como “a feliz sensação de confiança sentida ao ressurgir das profundezas da frustração”, como fazem os neo-ortodoxos (p. 42, 43). Clark apresenta esses problemas como “desafios intelectuais ao evangelismo”, e diz que “seria lastimável se o cristão conhecesse a Bíblia de modo menos completo que seu colega conhece o humanismo” (p. 43), no que concordamos com ele. Para ele, “se quisermos conhecer a Deus é indispensável levar criteriosamente em conta a metodologia”. E que metodologia é essa? Uma teologia cujo conteúdo proceda “inteira e somente da Bíblia” (p. 44). “Nossa tarefa”, prossegue, “é coletar versículos e passagens da Bíblia, entendê-los preliminarmente e depois sistematizar o conteúdo” (p. 45)[1]. Mas, para justificar seu ponto, Clark faz um uso inapropriado – levando em consideração o contexto da passagem – do texto paulino em que o apóstolo diz que “Deus não é Deus de confusão… tudo, porém, seja feito com decência e ordem” (1 Co 14.33, 40). Ele conclui o capítulo tomando como ilustração a construção de uma casa, a qual somente é possível graças ao arranjamento lógico dos materiais (pregos, tijolos, cimento etc.).

No quarto capítulo é onde Clark vai bater mais forte nos neo-ortodoxos, os quais, segundo ele, é o grupo que “domina as principais denominações nos EUA e no exterior”. Para Clark, a Neo-ortodoxia é a “religião experimental” (p. 48); a “religião da irracionalidade” (p. 50); proponente de uma “dupla verdade” (p. 55) e, por isso mesmo, “antilógica” (p. 56). Por quê? Porque ela insiste que o homem nunca poderá conhecer Deus, visto que este é o “totalmente outro” (Barth) e ideias afins. A propósito, quando se refere a Barth, Clark diz que “é difícil entender por que tantas das asserções de Barth dão ao leitor de boa-fé a impressão exatamente contrária das verdadeiras crenças dele” (p. 58 – embora seja oportuno dizer que esta não é uma exclusividade dos leitores de Barth, evidentemente. Incluem-se aqui os próprios leitores de Clark). Para Clark, Barth, além de abraçar o paradoxo “nega quase de forma absoluta que o homem seja a imagem de Deus, de acordo com 1 Coríntios 11.9” (p. 58), como também “não crê na ressurreição do corpo” (p. 61). Tais coisas arrancam de Clark declarações fortes, como a de que “a igreja visível é muitas vezes atormentada pela peste dos místicos pseudodevotos que apostam na própria intuição”, e arremata: “o pensamento criterioso e a teologia dogmática repeliram-nos” (p. 58). O problema básico de Barth e dos pregadores super-religiosos é epistemológico, segundo Clark, visto que os tais, ao ignorarem a proposição bíblica de que o homem é a imagem de Deus, estão de fato repudiando a lógica (p. 64).

E é justamente a esta última que Clark dedica as linhas do quinto capítulo, no qual ele pretende fazer uma “defesa da teologia lógica” (p. 67). E o que vem a ser essa “teologia lógica”? Basicamente, é a pregação de todo o conselho de Deus. Para Clark, “Deus é um espírito ou intelecto racional e lógico, do qual o homem recebeu a imagem”. Aqui, ele continua criticando aqueles que exaltam a práxis em detrimento da atividade intelectual. Segundo ele, “todos os homens são obrigados a obedecer aos mandamentos divinos e devemos ‘fazer a verdade’ até onde a verdade puder ser realizada”. “Agora”, ironiza, “como ‘fazer’ a Trindade é um enigma” (p. 69). Doravante, ele fará outra crítica injustificada a Dooyeweerd, a quem ele chama de “existencialista” juntamente com Rookmaker, os quais seriam os mentores de um “grande grupo que detesta o conhecimento ou a lógica: os que tem mais interesse na estética que na teologia ou filosofia” (p. 71). Seria interessante se Clark pelo menos nos remetesse a algum escrito seu no qual ele confronta de forma mais apropriada (para não dizer justa) o filósofo holandês. Caberá também uma crítica a Leland Ryken, que disse que “é possível receber a verdade de Deus ouvindo o Messias de Handel. [...] Não basicamente pela razão, mas pelos sentidos (audição) e emoções” (p. 71). Para Clark, porém, uma vez que “somente as proposições podem ser verdades” (p. 74), “a arte não substitui a informação do evangelho” (p. 76). A partir da página 84 Clark apresentará alguns argumentos formais na Escritura em defesa da lógica, e da página 90 até ao final do capítulo, algumas notas sobre lógica simbólica, que é, de longe, a parte mais maçante do livro (especialmente para quem não entende bem o assunto, como eu. Por isso, prefiro não comentá-lo).

No sexto e último capítulo Clark se dirigirá àqueles que se interessam pela teologia – o quarto grupo. São pessoas que levam mais a sério a responsabilidade cristã, que “deleitam-se em receber informação da parte de Deus e querem entendê-la corretamente” (p. 95). Não é preciso fazer muito esforço para se chegar à conclusão de que este é o grupo a quem Clark se mostrará mais amigável. Ele toma como ponto de partida para o seu desfecho a doutrina do homem como imagem de Deus, a qual, segundo ele, “é aquela que está mais intimamente ligada à defesa da teologia”. E ele nos dá algumas referências bíblicas para tal defesa: Gn 1.26, 27; 5.1; 9.6; 1 Co 11.7; Cl 3.10 e Tg 3.9. Para ele, “teologia consiste em entender essas referências e extrair dela conclusões lógicas” (p. 97). Aqui, caberão ainda algumas críticas ao empirismo e ao naturalismo (p. 98 a 103). “Todas as filosofias não cristãs resultam no ceticismo total”, diz. E continua: “Em contraste, o teísmo fundamenta seu conhecimento nas proposições divinamente reveladas. Elas podem não nos dar toda a verdade; pode até ser que nos dêem pouca verdade; mas, de outra maneira, não existe verdade”. E arremata: “chega de alternativas seculares” (p. 103). Nesse embalo, vai sobrar novamente para a neo-ortodoxia (mormente nas figuras de Barth e Brunner), a qual torna toda doutrina falsa, segundo Clark. “Portanto”, conclui, “pode-se dizer que o material bíblico está corretamente resumido ao identificar a característica distintiva do homem como a razão. O pecado causa seu mau funcionamento. A redenção renovará os homens em conhecimento (retidão e santidade) à imagem de quem os criou. Então, no céu, não cometeremos erros nem mesmo de aritmética”. No último parágrafo do livro é que Clark fará uma síntese de todo ele:
Deus nos deu uma revelação verbal; temos a obrigação de estudá-la. Nenhuma outra exortação é necessária. Não há dúvidas de que muitos depreciadores da lógica e da informação sejam cristãos, entretanto o que publicam, pregam e conversam não é cristão. Também não são logicamente coerentes ao repudiarem o dogma bíblico, pois cristianismo sem doutrina inteligível é simplesmente doutrina inteligível sem cristianismo (p. 104-105).

Conquanto eu concorde com John Robbins em certos aspectos, encaro seu posfácio ao livro mais como uma oportunidade para destilar sua ojeriza ao sistema vantiliano de apologética do que propriamente uma defesa da teologia. “Os fieis clamam por verdade e recebem ‘paradoxo’ e ‘antinomia’”, diz (p. 108). E mais: “a prática dos crentes professos modernos é imoral por tratar-se da prática de teorias falsas” (p. 112). Ora, se este pensamento for levado às últimas conseqüências os eleitos não seriam somente os “clarkeanos”? Interessante que nem mesmo Clark parece ter pensado nisso! Temo pelos leitores caso estes se impressionem mais com o apelo ácido do Robbins do que com as palavras do Clark em si mesmas (pelo que sabemos, havia grande respeito pessoal entre este e Van Til).

O livro, no geral, é bom, embora haja conceitos nele que podemos encontrar com maior profundidade em outras obras, o que o tornaria, em certa medida, “dispensável”. Mas, como se trata de um pequeno esboço do que o autor pensa a respeito do assunto, é uma leitura válida – especialmente para aqueles que, como eu, desejam conhecer um pouco mais do pensamento de tão notável teólogo do século XX, o qual já goza de considerável prestígio entre muitos reformados da atualidade.


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[1] Novamente, tem-se como pano de fundo a perspectiva escrituralista.

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