28 de fevereiro de 2012

Quantas bicicletas Deus tem?

Já é o segundo domingo consecutivo que estamos estudando sobre a doutrina da predestinação na escola dominical em nossa congregação. E, apesar de se tratar de uma congregação presbiteriana, as dificuldades em torno da doutrina ainda persistem nos corações e mentes de alguns – tanto a dificuldade em entendê-la quanto (principalmente!) em aceitá-la. Conversando sobre o assunto com minha esposa em casa, ela me lembrou de um ex-pastor nosso, o qual gostava de explicar a eleição da seguinte maneira: imagine que eu tenho uma bicicleta, e vejo dois garotos na rua. Resolvo, então, dar minha bicicleta a um deles. Alguém poderia me questionar por que eu dei a um e não ao outro, ao que eu responderia dizendo que a bicicleta é minha, e a dou a quem quiser. Não levei em conta quaisquer méritos ou deméritos nas crianças, simplesmente escolhi uma para ser agraciada. Assim, pois, é com a salvação: Deus a dá a quem Ele quer e ninguém pode reclamar disso, pois é algo que pertence a Ele. Fiz questão de levar a ilustração para a classe, mas com a seguinte pergunta: tudo bem, mas... teria Deus apenas uma bicicleta? Na realidade, levantei a questão como que me colocando no lugar de alguém que não aceita a doutrina da eleição incondicional tal como é explanada pela fé reformada. E, com isso, acabei aguçando ainda mais a polêmica que já estava sendo travada ali, mas com a intenção de dar uma resposta depois, obviamente.

Respostas? Há, se levarmos em conta, dentre outras coisas, a relação suficiência-eficiência. Encontramos um bom exemplo disso nos Cânones de Dort, no capítulo que trata sobre a morte de Cristo e a salvação do homem por meio dela:

Esta morte do Filho de Deus é o único e perfeito sacrifício pelos pecados, de valor e dignidade infinitos, abundantemente suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro.

Cânones de Dort, II.3. Ênfase minha.

Ou seja, embora a morte de Cristo seja “abundantemente suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro”, ela é eficiente apenas nos eleitos, como o próprio documento diz em seguida:

Pois este foi o soberano conselho, a vontade graciosa e o propósito de Deus o Pai, que a eficácia vivificante e salvífica da preciosíssima morte de seu Filho fosse estendida a todos os eleitos. Daria somente a eles a justificação pela fé e por conseguinte os traria infalivelmente à salvação. Isto quer dizer que foi da vontade de Deus que Cristo por meio do sangue na cruz (pelo qual Ele confirmou a nova aliança) redimisse efetivamente de todos os povos, tribos, línguas e nações, todos aqueles e somente aqueles que foram escolhidos desde a eternidade para serem salvos, e Lhe foram dado pelo Pai.

Idem, II.8. Ênfase minha.

Isto posto, podemos voltar à nossa ilustração da bicicleta: Deus até teria mais para dar, mas resolveu não fazê-lo. E por que não o fez, sendo Ele mesmo bom? Penso ser justamente aí que reside boa parte do problema quando falamos da exclusiva soberania de Deus na salvação do homem. Aliás, a própria pergunta em si já apresenta um grave problema de perspectiva. Já disse algumas vezes que todo e qualquer queixume contra a doutrina da eleição incondicional reside no fato de que o homem se acha bom por natureza e, por conseguinte, merecedor da graça (a “bicicleta”) de Deus. Na realidade, Cristo morreu por mim porque eu merecia ser salvo. É quando o homem passa, então, a confundir a justiça de Deus com a sua própria.

Minha resposta à pergunta por que Deus, mesmo sendo bom não quis Se valer da suficiência da Sua graça para alcançar a todos os que jazem nas trevas é justamente porque a Sua justiça seria ofuscada pelo seu amor, visto que não seria manifesta. Ora, o pecado não poderia passar impune. Se passasse, Deus, que odeia o pecado, deixaria de ser justo e santo. Assim sendo, o amor de Deus não pode ser dissociado do seu corolário, que é a Sua ira, a qual Paulo diz que "se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça" (Rm 1.18). E quando o amor sacrifica a justiça, o que temos não pode ser o amor bíblico e divino, mas um amor defeituoso e totalmente incapaz de redimir aquilo a que se propõe. Poderíamos afirmar, ainda com base nessa passagem paulina, que privar Deus de Sua ira santa é suprimir a verdade (justiça) para que a mentira (injustiça) prevaleça.

Acho que deveríamos pensar duas vezes antes de querermos sobrepor nossos "trapos de imundícia" (Is 64.6) à pureza do Senhor. E antes de reclamar qualquer "bicicleta" a Deus, que déssemos uma atenção especial às palavras do profeta Jeremias: "por que, pois, se queixa o homem vivente? Queixe-se cada um dos seus próprios pecados" (Lm 3.39). Mas isso, quantos querem?

Soli Deo Gloria!

3 comentários:

  1. Leonardo, eu também sou calvinista, mas não sei se a explicação de que Deus não salva a todos porque assim não manifestaria a sua justiça é valida, visto que, como você mesmo (e os Cânones de Dort) disse, a morte de Cristo poderia ser suficiente para satisfazer toda a justiça de Deus, não permitindo que ela caísse sobre os pecadores. Ao meu ver ( porque quem poderia sondar os propósitos de Deus?) o Senhor permite que alguns sejam condenados para que seja evidenciada, pelo contraste, a sua salvação e, nisso, a sua glória seja magnificada. Isso eu digo baseado, é claro, no caráter de Deus expresso nas Escrituras, mas conforme exposto no excelente livro de John Piper "Em Busca de Deus", conforme você pode ler aqui: www.jonathanedwards.com.br/2010/01/luta-e-solucao-de-jonathan-edwards.html
    Espero não ter soado arrogante ou como alguém que quis levantar polêmica só por fazer, mas fiz o comentário porque acho essencial em todos os sentidos discutir essa questão. Espero a resposta.
    A propósito, excelente blog. É um dos poucos que acompanho!

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  2. Olá, Vitor.
    Acho que o Leo vai chiar de eu estar me metendo demais no post dele, mas acho que posso pitacar de novo...
    Não vejo seu comentário como inoportuno nem você arrogante, ao contrário: parece que temos sobre o que papear um bom papo!
    Olha, eu discordo um pouco do "suficiência" por ser um "seria", não um "é". Mas não quero te (ou nos) confundir com isso. O importante é notar que o fato de o sacrifício salvífico ter o potencial para o todos, mas não o ser de fato, aponta para alguma razão em Deus que não nos é revelada tão claramente. E esta razão bem pode ser a manifestação da justiça E o contraste da salvação graciosa. Veja que ambas redundam em glória.
    Em outras palavras, o contraste que você menciona não é incompatível com a manifestação da justiça. Ao contrário, estão intimamente ligados.
    Soli Deo Gloria!

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  3. Roberto, me desculpe pela demora, mas é que precisei de alguns dias para meditar na sua resposta. De fato, com Deus é impossível falarmos de "seria". Achei muito interessante a sua posição e, depois de refletir sobre ela, posso dizer que concordo que essa seja uma resposta bem plausível.
    Eu acho que Deus faz algumas coisas de um modo não totalmente claro para nós justamente para que nós nos tenhamos que nos humilhar e admitir que os caminhos Dele são mais altos que os nossos e a justiça Dele é muito mais profunda que a nossa. Ou seja, que Ele é Deus e nós não somos nada.
    Muito obrigado pela resposta. Foi muito esclarecedor.
    Que o Senhor seja contigo.

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