23 de outubro de 2018

Aborto social

Ou: A insensibilidade como prova da imoralidade

Li nas mídias sociais que haveria um "arguto" argumento em favor da descriminalização do aborto desenvolvido num artigo de um grande jornal. Fui conferir. E tal argumento pode ser resumido na sua afirmação tese:
Meu argumento pragmático em defesa do direito da mulher de interromper a gravidez em seu estágio inicial é o seguinte: não há qualquer ritual social que indique a perda de uma vida humana quando uma gravidez é interrompida nesse estágio. (Um argumento pragmatista em defesa do direito de aborto, por Heloisa Pait, no Estadão, em 28/08/2018)
Este é um dos argumentos mais abjetos que já tive a oportunidade de ler/ouvir.

Em 2015, minha esposa sofreu um aborto espontâneo no estágio inicial da gravidez. É verdade que não houve qualquer "ritual social" a respeito. Mas houve luto familiar, que não deixou de ser compartilhado:


O luto…

“Você saberia meu nome se eu o visse no Paraíso?”

…não é sem…
“Além da porta há paz, eu estou certo, e eu sei que não haverá mais lágrimas no Paraíso!”
…ESPERANÇA!

27.05.2015 (trechos de Tears in Heaven, de Eric Clapton)
Uma vez compartilhado, houve condolências. Mas, não houvesse, não faria a menor diferença para nosso luto e o sofrimento da perda de um filho.

E aqui convém dizer que a falta de um túmulo e mesmo de um nome também não diminuem o luto neste tempo e a esperança que acalento de encontrar meu não nascido no porvir. Também não importa que mesmo entre os cristãos não se veja, socialmente, um discurso neste sentido.

Sim, este luto é um luto íntimo.

Em 2011, um casal amigo passou por uma gravidez difícil e acabou perdendo seu bebê. O marido, André Venâncio, escreveu, à época em seu blog, um dos relatos mais comoventes que já tive ocasião de ler a respeito da perda de um não nascido: Dezenove semanas de amor. Destaco o parágrafo final de seu relato:
Sofro porque meu filho partiu tão cedo, pela intimidade que não chegamos a ter, pelas muitas alegrias (e algumas dores de cabeça) que não terei mais, por tudo o que eu teria aprendido com ele, por todos os momentos com que sonhei e que jamais acontecerão. É como se nossa vida tivesse empobrecido de repente. É justo chorar por tudo isso. Mas não há nenhuma necessidade de chorar por meu bebê, como se ele fosse uma vítima inocente de um destino cruel, nem de queixar-me das injustiças deste mundo, no qual tantos perversos incorrigidos passam vidas longas e saudáveis. A verdade é o oposto exato disso tudo: meu filho se foi deste mundo mau sem que ninguém lhe tivesse feito mal algum. Deus foi maravilhosamente bom para ele. Sua morte foi preciosa aos olhos de meu Senhor, que o alcançou com sua graça salvadora. Todo pai deseja que seu filho seja bem-sucedido. Pois o meu foi, naquilo que pode haver de mais importante. E isso muito me alegra nesta hora de lágrimas.

Sim, este luto é um luto íntimo. Mas os cristãos sofremos e esperamos, mesmo em silêncio.

Até porque… que esperar da sociedade quanto às angústias mais profundas pelas quais passamos?

Em A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi, o personagem principal se ressentia da indiferença e da afetação dos médicos e dos familiares. Afetação e indiferença bem poderiam também fazer parte do delírio do doente, mas é certo que a tristeza convencional (social) é bastante insincera. E isto é um retrato fiel da realidade.

Ou, como bem disse Fabrício Tavares de Moraes:
No conto “Angústia”, Tchekhov narra a excruciante dor do cocheiro Yona Potapov, que havia perdido há pouco seu menino em razão de uma febre misteriosa. Tentando comunicar-se e falar de sua perda a todos os que entram em seu coche, depara-se com a completa indiferença dos tipos sociais. Por fim, encontra no seu cavalo o único ouvinte atento: “O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo… Yona anima-se e conta-lhe tudo…”.
Considerar a angústia humana pelas reações ou ritos sociais que se lhe seguem é próprio de uma alma imersa nas trevas mais estéreis.

A verdade é que nossas dores, especialmente as mais lancinantes, as mais profundas, as mais indelevelmente marcantes, raramente são compartilhadas por outros. São angústias pessoais, não sociais.

Que esta espécie de “aborto social” da dor individual, assassinada e esquecida pela multidão, seja um aspecto da realidade é irrelevante para a causa do aborto. A única coisa que o "aborto social" prova é a extensão da depravação humana.

A tese que faz depender a humanidade do feto à qualquer consciência social por meio de ritos é um desrespeito tanto ao feto quanto à própria angústia de inúmeros pais que sofrem a perda de um filho, quer participem isso socialmente quer pranteiem em silêncio. É uma monstruosidade.

Justificar, pois, a própria imoralidade pela insensibilidade social é cabal, total e perfeitamente abjeto. É acumular testemunho da própria podridão contra si.

É uma tristeza que o homem seja capaz de propor tais termos.

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