Certa vez alguém, baseando-se no
exemplo do famoso pregador batista Charles Spurgeon, perguntou a um pastor se a prática do tabagismo lhe era lícita também; e a resposta que ele
obteve foi: “somente se você conseguir pregar como ele pregava”[1].
Não sei se com isso o pastor quis dizer “somente se você for tão maduro quanto
ele”, mas, particularmente, fiquei encabulado com aquilo. Não pela questão do
tabagismo em si, mas pela resposta que aquele jovem recebeu: apenas uma sacada
humorística, sem argumentação propriamente dita, que arrancou risos de muitas
pessoas que sequer pararam para pensar do que estavam rindo, tomando aquilo por um argumento válido. É certo que o
jovem que levantou tal pergunta já dava indícios de que não queria aprender
nada, mas somente tumultuar aquele ambiente de discussão – se blog ou rede
social já não lembro mais – com pífias arapucas teológicas. Seu histórico de
comentários ali deixava transparecer essa tendência, e certamente o pastor
levou isso em consideração ao respondê-lo (na realidade, uma não-resposta)
daquela maneira. Contudo, apesar de toda a astúcia por trás da pergunta daquele
jovem e o direito do pastor à não-resposta, a questão ali levantada não merecia
uma atenção, digamos, mais séria, visto que toca num tema relativamente
sensível e controverso dos nossos dias?
Passado o tempo, deixei de lado
aquelas inquietações, mas somente até me encontrar com algo da pena do grande
filósofo e teólogo cristão Agostinho (354 d.C. – 430 d.C), recentemente. Lendo
as suas famosas Confissões, me
deparei com uma colocação bastante interessante do bispo de Hipona sobre essa
questão de como devemos tratar os problemas que nos são levantados (ainda que estes
sejam feitos por motivos notadamente escusos). A única diferença é que a
“questão” em Agostinho era, digamos, um pouco mais complexa do que a questão da
legitimidade do tabagismo entre os crentes. A questão era: “Que fazia Deus
antes de criar o céu e a terra?”. Não lembro ao certo qual dos pais apostólicos
(se é que se tratava mesmo de algum deles) respondeu a essa pergunta dizendo
que “Deus estava preparando o inferno para os curiosos”, mas, quem quer que
tenha sido, Agostinho efetivamente não aprovou sua solução. Eis a resposta que
ele deu:
Não lhe responderei nos mesmos termos com que alguém, segundo se narra, respondeu, eludindo, com graça, a dificuldade do problema: “Preparava”, disse, “a Geena [inferno] para aqueles que perscrutam estes profundos mistérios!” Uma coisa é ver a solução do problema e outra é rir-se dela. Não darei essa resposta. Gosto mais de responder: não sei – quando de fato não sei – do que apresentar aquela solução, dando motivo a que se escarneça do que propôs a dificuldade e se louve aquele que respondeu coisas falsas[2].
Não posso deixar de destacar aqui
o tom pastoral na fala
do bispo de Hipona, pelo qual fui particularmente tocado. Fazer uso do humor apenas para fugir da dificuldade dos
problemas que nos são apresentados é, no mínimo, de uma desonestidade
intelectual gritante e gratuita. Por este motivo é que Agostinho sugere que o
melhor que podemos fazer quando não dispomos de uma resposta imediata para uma
determinada questão é admitirmos prontamente a nossa ignorância (ou, na melhor
das hipóteses, ponderar melhor sobre o assunto para responder depois), em vez
de querer jogar o ônus da prova para o nosso inquiridor com anedotas tolas (as
quais frequentemente se mostram falsas no final), que em nada ajudam a resolver
o problema. “Gosto mais de responder: não sei – quando de fato não sei – do que
apresentar aquela solução”, disse aquele notável servo de Deus. Longe de ser
apenas um antídoto contra as especulações racionalistas com as quais somos
frequentemente assaltados, e que ultrapassam e ignoram a revelação
escriturística, a proposição de Agostinho tem um motivo ainda mais nobre, a
saber, evitar o escárnio de quem propôs a dificuldade e o louvor a quem
respondeu coisas falsas, promovendo, assim, certa medida de justiça.
Com isto, não estou, evidentemente, dizendo que não há uma resposta bíblica
para a questão das atividades de Deus antes de Gênesis 1.1, ou para a questão
do tabagismo entre os crentes. Há, sim, respostas bíblicas para ambas as
questões. Aliás, o próprio Agostinho arrisca uma resposta (mais filosófica do
que propriamente bíblica, é verdade) à questão que lhe foi suscitada. No mesmo
parágrafo, ele diz que
Se pelo nome de “céu e terra” se compreendem todas as criaturas, não temo afirmar que antes de criardes o céu e a terra não fazíeis coisa alguma. Pois se tivésseis feito alguma coisa, que poderia ser senão criatura vossa?
Não devemos pensar que aqui
Agostinho esteja sugerindo que Deus se encontrava num estado de absoluta
inatividade em Si mesmo, e sim que Ele não estava criando efetivamente nada
“nos céus e sobre a terra, as [coisas] visíveis e as invisíveis” (Cl 1.16) antes
de efetivamente criar algo pela palavra do Seu poder. Até porque Deus não seria
menos Deus se resolvesse apenas se ocupar com a Sua própria glória e desfrutar
dela no contexto da Santíssima Trindade apenas. Quanto à questão do tabagismo
entre crentes, bastaria ao pastor supracitado dizer naquela oportunidade que
tudo o que é feito com interesses escusos (uma sutil forma de justiça própria –
cf. Mt 6.1-18), sem o exercício do domínio próprio e principalmente não visando
à glória de Deus nem ao bem do próximo é idolatria (cf. 1 Co 10.23-33) – o que
evitaria, assim, que uma questão séria fosse encerrada da forma como foi - desdenhosa.
Isso significa que certa dose de
sarcasmo ou até mesmo desdém não é válida numa discussão? Não devemos nem
precisamos escorregar para esse extremo. Aliás, o próprio Jesus se utilizou desses
artifícios em alguns de seus diálogos, especialmente naqueles em que seus
oponentes queriam a todo custo pegá-lo em alguma contradição. Em alguns desses
casos, um recurso do qual Jesus lançou mão foi o de fazer uma pergunta sobre a
pergunta feita a ele. Foi assim, por exemplo, no seu debate com os sacerdotes e
anciãos do povo, em Mateus 21.23-27[3], e
com o intérprete da lei, em Lucas 10.25-35, ocasiões nas quais Jesus
inteligentemente encurralou seus opositores, deixando-os sem alternativa de
escape (pois sabia que eles não seriam honestos o suficiente para admitirem que
Jesus era tudo quanto dizia ser). Contudo, Jesus tinha um propósito bastante definido com isso: levar o debate a um nível mais profundo do que o comumente entendido
na época, corrigindo os erros hermenêuticos e doutrinários e, por tabela,
tratando de pecados específicos que estavam alojados nos corações daqueles que
presumiam poder submetê-lo ao ridículo.
É óbvio que nenhum de nós é chamado a tratar pecados de ninguém, pois isso é algo que compete somente a Deus, que é quem, naquele Dia, há de "decriptografar" os nossos segredos e intenções mais escondidos (cf. Rm 2.16, onde a palavra para segredo é kriptos). Mas somos chamados, sim, ao esforço para que o diálogo com as pessoas chegue a um nível onde a Verdade seja
efetivamente apresentada, e não mascarada com anedotas e subterfúgios afins. Que os porcos não merecem nossas pérolas eu não tenho a menor dúvida. Mas é bom termos cuidado com as bijuterias. Quem lê, entenda.
Soli Deo Gloria!
[1] Para
quem não sabe, Spurgeon apreciava charutos.
[2]
AGOSTINHO, Santo. Confissões (Livro
XI.14). Coleção Os Pensadores.
Editora Nova Cultural, 2004, p. 320.
[3] Os
sacerdotes e anciãos do povo, na realidade, tinham a resposta (tendenciosa, mas
tinham), mas temeram expressá-la por pura desonestidade intelectual. Jesus,
então, simplesmente se reserva ao direito da não-resposta (ainda que seu
silêncio tenha dito tudo).
... e, muitas vezes, com os porcos, pois pode ser que nós é que passemos a chafurdar (erro de perspectiva ou de julgamento).
ResponderExcluirRicardo.
Exatamente, Ricardo. Penso ter deixado implícita essa ideia, especialmente nesse último parágrafo.
ResponderExcluirAbraços!
Belíssimo texto!
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