“Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição” (Almeida Revista e Atualizada – ARA).
O primeiro texto supostamente “arminiano” que escolhi para início de conversa é o de 2 Pedro 2.1. O que faz este texto “parecer” arminiano é o uso que Pedro faz da palavra “resgatou” durante a sua descrição dos falsos profetas. Não é ilusão de ótica, meus caros. Realmente a Palavra está dizendo que pessoas renegaram a Deus após terem sido por Ele resgatadas. Será que este versículo compromete, de fato, a doutrina da perseverança dos santos, como querem os arminianos? Pedro não poderia ter escolhido uma palavra menos “comprometedora”? Por que ele fez isso? Nosso objetivo, aqui, é tentar responder a essas questões.
[Estudo da palavra “resgatou”]
A palavra que Pedro usou para “resgatou” é a palavra grega agorasanta (lit. “que comprou”), uma variação do verbo agorazō, que significa, literalmente, “comprar”. Esse verbo, bem como suas variantes, ocorre trinta vezes em todo o Novo Testamento, mas apenas em cinco dos casos ele se refere à “compra” de cristãos (vd. 1Co 6.20, 7.23; Ap 5.9, 14.3,4). No restante das ocorrências ele assume seu sentido comercial usual (e.g. Mt 13.44; Mc 6.36; Lc 14.18; Jo 4.8; 1Co 7.30; Ap 13.17). Alguém poderia objetar dizendo que a ocorrência no texto petrino que estamos considerando também se refere à “compra” de cristãos, o que aumentaria para seis o número de ocorrências da referida palavra com este sentido redentivo. Minha resposta a tal objeção é que Pedro, diferente dos outros autores das passagens citadas, não está se referindo ao rebanho que foi comprado pelo sangue de Jesus, a Igreja. Senão, vejamos:
- 1Co 6.20: “Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo’’;
- 1Co 7.23: “Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens”;
- Ap 5.9: “e entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação”;
- Ap 14.3,4: “3 Entoavam novo cântico diante do trono, diante dos quatro seres viventes e dos anciãos. E ninguém pôde aprender o cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil que foram comprados da terra. 4 São estes os que não se macularam com mulheres, porque são castos. São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. São os que foram redimidos [egorasthesan] dentre os homens, primícias para Deus e para o Cordeiro”.
No caso dos textos em 1 Coríntios, o que Paulo tem em vista é a nova situação dos crentes como escravos de Deus, já que foram comprados por alto preço por Ele. O argumento paulino (vd. contexto) é que os cristãos tem que viver à altura do nome que agora carregam. Já em Apocalipse, o que João tem em vista é a “compra” dos salvos, e tão somente destes, pelo sangue do Cordeiro (5.9). João ainda diz que somente os que foram “comprados da terra” é que podem entoar o novo cântico diante do trono (os 144 mil representam a totalidade dos eleitos). E ele finaliza dizendo que apenas “os que foram redimidos dentre os homens” é que foram capazes de manter sua fidelidade espiritual ao Deus que lhes comprou.
Definitivamente, parece não ter sido esta a sorte dos falsos mestres a quem Pedro se refere. Eles não viviam à altura do nome que arrogavam para si, visto que eram extremamente libertinos, avarentos, mentirosos, atrevidos, arrogantes, adúlteros e jactanciosos (vd. 2.2, 3, 10, 14 e 18). Sendo assim, eles jamais poderão cantar o “novo cântico” diante do trono (Ap 14.3), uma vez que não foram capazes de manter sua fidelidade doutrinária, espiritual e moral. Isso nos mostra que a incapacidade para tal deveu-se ao fato de os tais não estarem dentre aqueles homens que foram redimidos, a saber, os verdadeiros seguidores do Cordeiro (Ap 14.4). ABRE PARÊNTESE. Sei que os arminianos, aqui, vão discordar da Expiação Limitada. Nesse caso, paciência. FECHA PARÊNTESE. Sendo assim, então por que será que Pedro usou a palavra “resgatou”?
Bem. Mesmo com a correlação do texto petrino com os supracitados, esta pergunta ainda continua difícil de ser respondida. Porém, se atentarmos para o fato de que Pedro está fazendo um paralelo dos falsos mestres do NT com os falsos profetas do AT (ver Dt 13. Cf. 1Rs 22; Jr 23; Ez 13; Zc 13.4), poderemos extrair o sentido que ele quis emprestar à palavra em questão. É somente dessa forma que poderemos justificar o uso que ele faz do referido termo.
Jesus comparou o reino dos céus a uma rede que, “lançada no mar, recolhe peixes de toda espécie” (Mt 13.47). Essa verdade pode muito bem ser aplicada ao povo de Israel. Pensemos na saída do povo do Egito nesses termos, por um momento (ou seria “forçar demais” o texto?). Quando por ocasião do êxodo do Egito a “rede” foi lançada, não devemos pensar que apenas “peixes bons” foram fisgados, e sim que também havia “peixes ruins” no meio. Ou seja, nem todo mundo que saiu de lá era crente de fato! A própria história nos mostra que, não obstante o fato de serem hebreus, nem todos faziam parte, de fato, do povo da Aliança. É Paulo mesmo quem fala que “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (Rm 9.6). Do Egito saíram homens corajosos como Josué e Calebe, mas também ímpios revoltosos como Corá, que foi tragado vivo, com todos os seus, pela terra que Deus fez abrir debaixo dos seus pés (Nm 16). Quando o povo foi murmurar contra Moisés e Arão dizendo que estes haviam matado o “povo do Senhor” (Nm 16.41), o próprio Deus se encarregou de exterminar, mediante terrível praga, o restante da massa incrédula, totalizando “catorze mil e setecentos, fora os que morreram por causa de Corá” (Nm 14.49). Ora, Corá e os rebeldes foram “resgatados” do Egito também, mas eles eram “povo de Deus”?
Penso que aqui criamos uma ponte para a nossa compreensão do motivo pelo qual Pedro resolveu usar a palavra “resgatou”. Pedro não está falando de um resgate efetivo, e sim, de um resgate potencial. Ou seja, não é a “graça especial” (aquela que é derramada apenas sobre os eleitos) que ele tem em mente, e sim, a “graça comum” (aquela que Deus derrama sobre toda a humanidade)[1]. Para esclarecer melhor este ponto, voltemos por um instante à parábola de Jesus em Mateus 13.47-50. Como é que Jesus a conclui? Ele diz que os pescadores, ao chegarem à praia, assentam-se para escolher os peixes bons para o cesto, ao passo que os ruins são deitados fora. “Assim será na consumação do século: sairão os anjos, e separarão os maus dos justos, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (vs. 49,50). Isto significa que os incrédulos (os “peixes ruins”) poderão “pegar carona” no barco somente até à hora em que ele ainda está navegando. Mas ai deles quando o barco chegar à praia e os pescadores começarem a ver quem é quem!
[Mais dois argumentos]
Embora eu acredite que a parábola e o restante da explanação por si só já tenham sido suficientes para lançar luz sobre a questão em geral, particularmente sobre o uso que Pedro fez da palavra “resgatou”, gostaria de usar apenas mais dois fatos para reforçar minha argumentação.
1) A certeza que Pedro tem quanto ao juízo que Deus derramará sobre os falsos mestres indica que eles jamais estiveram nos planos salvíficos de Deus. Pedro diz que a condenação dos falsos mestres não é uma “ideia recente” na mente de Deus, e sim que “para eles o juízo lavrado há longo tempo não tarda, e sua destruição não dorme” (2.3). Pedro, na realidade, já havia declarado algo semelhante na sua primeira carta, ao dizer que os construtores da auto-justificação vieram à existência justamente para tropeçarem na “Pedra de tropeço”, que é Cristo (1Pe 2.8). ABRE PARÊNTESE. É por essas e outras que sou supralapsariano. FECHA PARÊNTESE. Pedro, então, usa alguns exemplos da história do Antigo Testamento para reiterar ainda mais o seu parecer sobre o destino desses ímpios. Ele faz citações da queda dos anjos (v. 4); do dilúvio (v. 5); e da destruição de Sodoma e Gomorra(v. 8). E aqui temos algo revelador. Se o salvo pode mesmo perder a salvação, como os arminianos afirmam, então o versículo 9 não deveria estar nesse contexto, pois ele diz que “o Senhor sabe livrar da provação os piedosos e reservar, sob castigo, os injustos para o Dia do Juízo”. O exemplo que Pedro usa para realçar tal verdade é o livramento que o Senhor deu ao justo Ló (v. 7,8). Posteriormente Pedro ainda fará uma referência a Balaão, o profeta que se extraviou do reto caminho, amando o “prêmio da injustiça” (v. 15,16). Para pessoas desse tipo, o apóstolo diz que o que Deus reserva é apenas juízo e trevas medonhas (cf. v. 4, 9 e 17).
2) Alguns adjetivos que Pedro usa indicam que esses tais que se diziam cristãos, na realidade, nunca o foram. Se os leitores observarem todo o contexto da passagem, logo perceberão que Pedro não fica fazendo rodeios nem se utiliza de eufemismos para dar aos hereges a classificação que lhes cabe. Sem melindres diplomáticos, Pedro os tacha diretamente de “falsos”. Ele não diz, por exemplo, que os tais eram “falsos profetas que foram verdadeiros um dia”. Essa verdade ganha realce empolgante no final do versículo 22, onde Pedro compara os falsos crentes com porcos: “com eles aconteceu o que diz certo adágio verdadeiro [...]: a porca voltou a revolver-se no lamaçal”. Mais uma vez, Pedro não diz, nem ao menos sugere, que eles já foram ovelhas um dia, mas que, agora, sofreram uma “mutação” e se transformaram em porcos. Não. Pedro, seguindo o seu raciocínio anterior de que tais pessoas são “como animais irracionais, que seguem a natureza” (v. 12), arremata falando que o porco, por alguns instantes de aparente bem-estar higiênico, voltou ao seu habitat natural - a lama! É justamente essa verdade que o apóstolo João endossa quando diz que os falsos mestres “saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos" (1 Jo 2.19).
[Conclusão]
Infelizmente, no momento não tenho como me antecipar a absolutamente todas as objeções que os arminianos porventura venham a levantar ao que foi acima explanado. Isso tornaria a exegese forçada e o trabalho cansativo. É por este motivo que o melhor a fazer é esperar até à próxima postagem da série. Até lá!
Soli Deo Gloria!
Leonardo Galdino.
[1] Aqui Pedro não está se referindo à “compra” realizada por Jesus na cruz, visto que o termo no original grego que ele utiliza para “Soberano Senhor” é a palavra despotes. Sugere-se que, aqui, ele esteja se referindo a Deus o Pai, uma vez que quando ele quer se referir ao senhorio de Jesus a palavra que ele geralmente usa é kyrios (cf. v. 20). Isso não significa que o “resgate” do Pai é menos efetivo do que o do Filho, e sim que o que Pedro tem em vista ao fazer uso da palavra “resgatou” é a graça comum de Deus sobre os homens.
Muito boa postagem! Uma exegese muito edificante parabéns! Deus continue a abenlçoa-lo.
ResponderExcluirEm Cristo, Rev. Ronaldo P. Mendes
Rev. Ronaldo Mendes,
ResponderExcluirObrigado pelo incentivo.
Abraços!
Leonardo,
ResponderExcluirPra mim, esse é um texto difícil de rebater. Mas a sua análise da evidência interna em 2 Pedro deixa tudo muito claro. Aprendi lendo o seu post. Parabéns!