"Senhor, tu sabes tudo" Jo 21:17
Qualquer pessoa que se detenha a pensar na relação entre onisciência e livre-arbítrio reconhecerá que há uma tensão entre estes dois conceitos. Basicamente, a questão é se um evento ou uma escolha antevistos pode ser livre. Antes de avançarmos, convém definir o sentido em que estes termos são tomados.
Por onisciência entendemos que Deus conhece num único ato todas as coisas reais e possíveis, passado, presente e futuro. Tal conhecimento é perfeito, infalível e exaustivo. Sendo assim, o conhecimento infalível é determinador. Se algo foi antevisto de uma determinada forma, não pode ocorrer de outra, caso contrário o conhecimento não foi perfeito. Neste texto, tomamos livre-arbítrio como sendo o poder de escolha contrária, ou seja, diante de uma escolha a pessoa pode escolher igualmente entre as várias alternativas ou mesmo não escolher nenhuma delas. Para que uma escolha seja livre, deve existir a possibilidade de se fazer a escolha contrária.
Vamos tomar um exemplo prático. Suponhamos que na manhã do dia 8 de dezembro de 2017 eu abra a porta do guarda-roupa para escolher a camisa que vestirei para soprar as 50 velinhas de meu bolo de aniversário. Deus, que sabe todas as coisas perfeitamente, sabe que escolherei a camisa azul. Este conhecimento divino torna certo que eu vestirei a camisa azul, e nenhuma outra. Então, até que ponto minha escolha é livre, se de maneira nenhuma eu escolherei a camisa vermelha?
Diante de questões como essa, os homens procuram oferecer algumas saídas. Uma delas consiste negar ou modificar a definição de onisciência. Uns alegam que Deus conhece perfeitamente tudo o que existe e como o futuro ainda não existe, não pode ser conhecido. Aplicando ao nosso exemplo, como 2017 ainda não chegou, ninguém pode afirmar que cor de camisa estarei usando, nem Deus. Porém, como Deus me conhece muito bem e sabe que gosto de qualquer cor desde que seja azul, Ele pode melhor que ninguém presumir que usarei uma camisa azul. Ou seja, como Deus conhece o presente de forma perfeita, pode prever o futuro com enorme grau de precisão.
Uma outra posição, parecida com essa, afirma que Deus pode conhecer todas as coisas, mas decide não conhecer as escolhas livres, para preservar a liberdade das pessoas. Fazem um paralelo com a onipotência divina, afirmando que Deus realmente pode fazer todas as coisas, mas decide não fazer. Voltando ao nosso exemplo, Deus tem a capacidade de saber que camisa vou usar, mas para que eu possa escolher livremente, Ele decidiu não tomar conhecimento de minha escolha.
Uma terceira corrente defende que o conhecimento divino é perfeito e exaustivo e abrange cada mínimo detalhe do universo, inclusive as escolhas livres das pessoas. Mas que tal conhecimento não tira a liberdade das escolhas, ainda que torne essas escolhas certas. Em outras palavras, as pessoas são livres para escolher qualquer das alternativas, mas não escolherão diferente do que Deus previu. Segundo este ponto de vista, eu escolherei livremente, sem nenhum constrangimento por parte de Deus, a camisa azul e nenhuma outra. Esta visão faz clara distinção entre certeza e necessidade cega, entre determinação e fatalismo.
Apresentadas essas posições representativas, precisamos analisar qual é mais consistente com o ensino bíblico. Pois o padrão aferidor da verdade é a Escritura Sagrada.
A primeira posição nega frontalmente a doutrina da onisciência, conforme revelado nas Escrituras. Em Isaías Deus afirma “anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade” (Is 46:10). O argumento de que Deus conhece tudo o que existe e que o futuro não existe e por isso não pode ser conhecido por Deus é derrubado com essa simples declaração. Ele anuncia o fim desde o princípio e faz saber as coisas que ainda não aconteceram. Deus conhece o futuro!
A segunda posição, embora tente se manter bíblica, redefine a onisciência divina. Há uma diferença básica entre onipotência e onisciência. Onipotência significa que Deus pode fazer todas as coisas. Onisciência significa que Ele sabe todas as coisas. No primeiro caso, há uma capacidade que pode ser usada ou não, de acordo com a vontade do Senhor. No segundo, não se trata de uma capacidade, mas de um fato consumado. Em nenhum lugar a Bíblia sugere que Deus limita seu conhecimento para preservar a liberdade da criatura. Portanto, não há base bíblica para essa auto-limitação divina em favor da liberdade do homem.
A terceira posição é a apresentada na Bíblia, que tanto afirma o conhecimento certo e infalível de Deus como a liberdade e responsabilidade do homem pelas suas escolhas. Vejamos uma passagem Bíblia onde essas duas verdades são mantidas lado a lado: “a este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” (At 2:23). O conselho divino precede Sua presciência e as ações livres dos homens, sem que isto os tornem menos culpados pelas suas escolhas e ações más.
Qual é a sua posição?
Soli Deo Gloria
Clóvis Gonçalves é blogueiro do Cinco Solas e escreve no 5 Calvinistas às segundas-feiras.
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