21 de janeiro de 2010

Mar, terra, e o equilíbrio dos atributos


"Nem tanto ao mar, nem tanto à terra" - diz o ditado. No que diz respeito aos atributos de Deus, a máxima se torna um guia interessante. Digo isto porque, em tempos de crise e tragédias como a do Haiti, há exageros em dois extremos: alguns que vêem Deus só como amor, e outros que O observam apenas como justiça.

O desequilíbrio na maneira como percebemos o Senhor pode atrapalhar consideravelmente a maneira como nos relacionamos com ele, e como observamos a realidade em geral.

Essa ênfase errônea em apenas um atributo revela a desconsideração da Escritura em sua totalidade. Não digo que há uma intenção malévola de perverter o ensinamento escriturístico, mas, se não há maldade, pelo menos há ingenuidade, ou ignorância - e os resultados práticos disto podem ser tão ruins quanto o da maldade deliberada.

Tomemos, por exemplo, o atributo da cognoscibilidade de Deus. Basicamente, ensina que Deus pode ser conhecido. A idéia de conhecimento relacionado ao ser de Deus é desprezível para alguns em nosso tempo: por um lado, há os que negam a Divindade, e, por isso, consideram que algo inexistente não pode ser conhecido. Mas há cristãos caminhando nesse mesmo sentido. Eles não negam a existência de Deus, mas rejeitam tudo relacionado ao uso do intelecto na religião, e assim preferem dizer que Deus é "experimentado", mais do que conhecido.

Para muitos desses, o termo "conhecimento" em si já traz uma carga não-cristã, uma importação da filosofia grega, ou expressa a ocidentalização da fé. A fim de justificar seu pensamento, porém, recorrem muito mais à filosofia existencialista ou alguma corrente de pensadores ocidentais, do que ao texto bíblico. E assim refutam a sua própria perspectiva.

A Escritura, por outro lado, trabalha num equilíbrio recheado de beleza. Deus é "experimentado" no sentido de se viver uma relação pessoal com Ele, mas esse relacionamento se perfaz nos termos da Escritura, que exige o intelecto humano em sua expressão religiosa. A cognoscibilidade de Deus se mostra, em parte, na apresentação bíblica dos Seus atributos.

Deus pode ser conhecido? Deixemos que Ele responda:

...mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o SENHOR e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o SENHOR. [Jr.9.24]


A busca de uma visão completa, porém, não permite ficarmos presos exclusivamente à cognoscibilidade de Deus. Enfatizarmos apenas este atributo, pode gerar o erro de estendermos o seu limite além do permitido. Não é porque Deus pode ser conhecido, que Ele pode ser exaustivamente conhecido e compreendido.

Por isso, a cognoscibilidade precisa ser pensada em paralelo com a incompreensibilidade de Deus. A fim de não nos orgulharmos e pensarmos que podemos "dominar" a matéria divina, somos lembrados constantemente que Deus está bastante além da nossa finita capacidade de compreendê-lo. Ele tem grandeza e pensamentos insondáveis [Sl.145.3; Rm.11.33-36]. Para usar o linguajar do Francis Schaeffer, podemos ter conhecimento verdadeiro sobre Deus, mas não conhecimento exaustivo.

Este equilíbrio, na prática, gera segurança e humildade. Torna-nos seres humildes, diante da grandeza do Senhor, O incompreensível. Mostra a nossa limitação e fraqueza. Livra-nos de considerarmos nosso intelecto além do que ele merece. Ao mesmo tempo, dá-nos segurança, por nos fazer confiar que, mesmo com nossa limitação, Deus ainda Se revela, e pode ser conhecido por nós. Novamente, como diria o Schaeffer: "Ele está lá, e não está em silêncio"*.

*Este é o título de um dos livros do autor: "He is there and He is no silent", traduzido no Brasil como "O Deus que Se revela".

Allen Porto é blogueiro do A Bíblia, o Jornal e a Caneta, e escreve às quintas-feiras no 5C.

8 comentários:

  1. Allen,

    Embora não tenhamos um conhecimento completo e exaustivo de Deus, podemos ter um conhecimento verdadeiro. Infelizmente, como você muito bem colocou, há os que negam que Deus pode ser conhecido e os que se acham PhD em Deus.

    Muito boas as suas colocações, como sempre.

    Em Cristo,

    Clóvis

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  2. Allen,

    O erro dos extremos pode mesmo se revelar perigoso: tanto o abandono ao mistério total (não cognoscibilidade), como a jactância em "saber tudo" (total cognoscibilidade.

    No último caso eu sempre digo que é querer limitar Deus, na medida em que se imagina "prendê-LO, aprisioná-LO no intelecto - como se isso fosse possível!

    Se eu aceito a minha limitação condicionada à não liberdade (citando um exemplo), vinculada ao determinismo Divino, e ainda assim preservando a minha vontade e responsabilidade (livre agência), não posso afirmar que consigo extrair completo sentido dessa equação, pois ela está colocada acima da minha capacidade de compreensão. Porém tal incapacidade de completo entendimento não me faz negar o fato bíblico: eu aceito.

    Como também reconheço, a despeito de aceitar - e sem me abandonar ao mistério - que os pensamentos de Deus são mais altos do que os meus e há um limite até onde posso chegar.

    Em Cristo,

    Ricardo

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  3. Clóvis e Ricardo,

    Uma das coisas mais legais disso é reconhecer que Deus é Deus. Se pudéssemos, de fato, compreendê-lo exaustivamente, talvez a mente dEle não estivesse acima da nossa.

    Eis mais um motivo para adorarmos ao Senhor: Ele está infinitamente além de nós!

    abraço

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  4. Allen, que texto interessante! Uma vez me surpreendi ao ler a Teologia Cristã do Alister McGrath e quando cheguei no capítulo sobre a natureza de Deus. Lá, o profeta de Oxford (desculpe-me pelo tom hiperbólico, tenho profunda admiração pelo engajamento cultural deste calvinista), ao falar sobre a afirmação "Deus é pessoal", segundo ele, tal sentença tem dupla conotação. Por um lado toca a dimensão da relação unidade/complexidade, debate presente no desenvolvimento da ortodoxia cristã sobre a trindade (a dimensão hipostática). Por outro, "Deus é pessoal", porque ele é "relacional". O que me chocou nesta altura, é McGrath dedica quase 3 páginas de sua obra, usando como referência a filosofia dialógica do judeu Martin Buber e a relação Eu-Tu proposto por ele para explicar isto. Cita uma afirmação de Buber, que já tinha lido previamente, que também me assombrou quando li. "Tudo que conhecemos ou que podemos conhecer de Deus, só se pode ser conhecido relacionalmente" (isto inclui todos os meios por quais Deus expressa sua relação, a revelação, a criação, etc). Um Deus que se restrinja a modelos estáticos e puramente racionalizáveis é o Deus dos filósofos e não o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. (isto não quer dizer fideísmo, quer dizer modéstia). Entendeu a sutileza? Um Deus que se identifica por seus seguidores é assombroso e cativante. Pois é um Deus que se torna conhecido pelo testemunho, pelas impressões que provoca na biografia de seus servos.

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  5. Allen,
    Curti muito o texto. O interessante é que ele, de certa forma, complementa o meu (ou o meu o seu! rs), que será postado amanhã.

    Igor,
    Não me espanta tanto a afirmação de que Deus, por pessoal, seja relacional. Afinal, Sua revelação é inteira feita das relações dEle com Seus escolhidos. O que me espanta é queiram reduzi-lO a só isso!
    E, sim, é de se maravilhar que Ele se dê a conhecer pelos termos usados por aqueles que Ele chamou para isso!

    Grande abraço,
    Roberto

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  6. Allen,

    Texto MAGISTRAL! Parabéns! Mostra, com clareza, que devemos ver Deus sempre por inteiro, não supervalorizando um atributo e esquecendo dos demais. Agir com equilíbrio nos dará também a atitude correta diante do Senhor. Parabéns!

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  7. Igor,

    O Roberto comentou perfeitamente. Reduzir Deus a um "relacionamento sem significado" (se isso é possível) contribui, inclusive, para desconsiderar o Seu caráter pessoal, na medida em que o mesmo tipo de experiência sem conteúdo pode ser obtido com qualquer coisa.

    Roberto,

    Que bom estarmos caminhando juntos! 5 Calvinistas, mas uma só fé.

    Helder,

    Estou aprendendo com o jornalista! hehe
    A história mostra que os resultados de uma visão fragmentada de Deus são péssimos. Entre outras coisas, o bom do calvinismo é não querer "engessar" a Deus, a despeito do que alguns afirmam. No pensamento reformado, Ele é Quem Ele é, como o Roberto está mostrando no texto em seguida.

    abraço

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