Provavelmente você já conhece a história. Uma igreja perdida. Um monge corajoso o suficiente, e pronto: tem-se a receita da Reforma. Correto?
Não.
Embora muitos tentem passar essa idéia, ou deixem isso transparecer no modo de contar a história, a base da Reforma não estava na coragem de Lutero. Ninguém nega que ele era, de fato, corajoso. O cara parecia um trator, abrindo espaços para a causa dos princípios bíblicos. Mas ele também tinha os seus momentos de dúvida e fraqueza, como na Dieta de Worms (1521).
R. C. Sproul relata este evento em seu livro "A santidade de Deus". Lá estava Lutero, diante dos chefões da hierarquia eclesiástica. Ao lado, os seus livros e tratados. Alguém lhe pergunta: "você se retrata dos seus escritos?". Aqui acontece a grande confusão. A maioria das pessoas espera e acredita que Lutero tenha, sem muita reflexão, respondido ousadamente que estava cativo da Palavra de Deus e pronto. Não foi bem assim.
Lutero tremeu e temeu. Pediu um prazo para pensar melhor sobre o assunto. Foi-lhe dado um dia a mais para refletir, e ele virou a noite em oração, suplicando por graça e coragem Divina.
O muro da Reforma, em Genebra |
A história não é feita do heroísmo dos nossos ícones, mas da graça soberana de Deus. A mão invisível conduziu Lutero e companhia, dando força, graça e sabedoria para a obra da Reforma.
O Perigo da idolatria
Por que pensar sobre isso? Existem alguns pontos a considerarmos. O primeiro deles é que uma biografia segundo a Escritura ressalta os pontos fracos e fortes da personagem em evidência. A biografia de Davi demonstra o homem segundo o coração de Deus - vitorioso, guerreiro, exemplar, temente a Deus -, mas também mostra o adúltero, assassino, e incrédulo.
Ao falar de Pedro, a Escritura apresenta o ousado e fiel seguidor, mas também demonstra o traidor envergonhado.
Uma biografia adequada dos reformadores precisa encarar seus pontos fortes e pontos fracos.
Em segundo lugar, tal descrição ajusta a nossa interpretação da história. Todos somos intérpretes. Se não considerarmos as fraquezas e falhas de caráter dos nossos irmãos reformadores, corremos o risco de observarmos uma história bem distante da real. Esse fenômeno não é raro entre os reformados. Muitos gostariam realmente de viver no século XVI. Eles olham para o período da Reforma como "a era dourada". Sonham em usar aquelas vestes, em falar aquele linguajar, em estar naquelas igrejas. Mas o seu desejo está baseado em uma visão fantasiosa da história. Provavelmente eles não consideram com seriedade as falhas dos reformadores, bem como as dificuldades das igrejas e do contexto da época. Não havia igreja perfeita no período da Reforma. Provavelmente, os mesmos pecados que encontramos em nosso contexto, existiam por lá. Vejam, por exemplo, a situação que levou à demissão de Calvino. Sua pregação e excessiva rigidez moral começou a suscitar a famosa "fofoca". Pessoas falando mal do pastor, até o ponto de o Conselho da cidade tomar conhecimento.
Ou, para citar outro exemplo, a existência de cristãos nominais, que nada tinham de vida com Deus. Isso fica claro na situação em que Calvino precisa lutar para que os libertinos não tomem da ceia.
Entre os reformadores houve discussão e discórdia em pontos como a ceia do Senhor. Eles eram humanos como nós, e tiveram lutas e problemas como a impaciência, o desânimo, a ira, e o temor de homens. Fantasiar o passado apenas cria uma geração de reformados desconectados da realidade atual. Gente que sonha com uma época perfeita no passado, que na realidade nunca existiu.
A questão mais fundamental, contudo, não é o modo adequado de fazer biografia, ou de interpretar a história. O ponto crucial pelo qual devemos falar sobre as fraquezas dos reformadores é para nos livrar da idolatria. Alguns descreveriam a história da Reforma exatamente como eu caricaturei acima - tendo Lutero e/ou qualquer outro reformador como figura em evidência. Há quem fale tão apaixonadamente sobre os reformadores e as igrejas reformadas, que deixe Deus de lado. O risco maior é o de termos os reformadores como o centro da história, deixando Deus em segundo plano. A Reforma não é sobre a coragem de Lutero, a sabedoria de Calvino, ou a paixão de John Knox. Ela é fundamentalmente sobre O Pai e Seu amor pela Igreja. Sobre Jesus e Sua obra redentora. Sobre o Espírito Santo e Sua vivificação.
Um convite ao auto-exame
Enquanto ainda estamos nos dias próximos que seguem o aniversário da Reforma, cabe a avaliação do coração: até que ponto estamos mais comprometidos com a Reforma do que com a causa da Reforma?
Em que medida temos priorizado as personagens humanas em detrimento do agente principal: Deus?
Como a nossa idolatria tem se refletido no nosso modo de falar, ser igreja, ensinar, e interagir com a cultura?
Olharmos para o Deus da Reforma pode suscitar em nós esperança e coragem, para abandonarmos as fantasias do passado e trabalharmos no presente, para a glória de Deus.
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Uma aula em vídeo sobre as Reformas da Reforma pode ser assistida aqui:
As Reformas da Reforma from Allen Porto on Vimeo.
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Allen Porto escreve no BJC e no EuCaso.com.
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