4. O calvinismo é uma forma de ver o homem
Conhecer a Deus é conhecer a si mesmo. Calvino demonstra bem o ponto no seu primeiro livro das Institutas. À medida que o conhecimento da Divindade cresce, o auto-conhecimento se torna possível e viável em uma perspectiva bem mais completa, pois o Criador é a melhor fonte de conhecimento sobre a criatura.
O calvinismo promove percepção privilegiada do homem. Trabalhando a partir da tríade Criação – Queda – Redenção, os reformados desenvolvem uma antropologia coerente do ponto de vista teórico e prático.
Esse ponto pode ser percebido por contraste. Correntes da psicologia ou psicanálise buscam abordar o homem negando a Queda. Para tais visões, o homem é livre de um “pecado original” que o escravize, e assim as “práticas negativas” ou foram socialmente aprendidas, ou são produto da criatividade humana.
Embora algum tipo de coerência lógica seja possível nessa visão, ela não condiz com a realidade. A maldade inerente ao coração humano revela inclinação natural – algo da
natureza dos homens – que foge ao controle social. Tais cientistas não conseguiriam explicar, por exemplo, a manifestação da culpa em cada ser humano (mesmo nos isolados – o que foge da explicação de que a sociedade criou a noção de culpa).
No outro extremo, existem aqueles que percebem apenas o homem caído. São filósofos ou pensadores que cederam ao desespero, vendo os outros como “o inferno” ou desprezando a sua existência e a dos demais. Para essas pessoas, a vida é injustificada, nada faz sentido, e o que resta é (1) o desespero, ou (2) a passagem pela vida sem a busca de um propósito – pois ele não existe.
Negar a Queda ou supervalorizá-la cria problemas sérios para uma visão do homem. O calvinista é equilibrado e considera ambos os pontos.
Alguém argumentaria que isto não é exclusividade calvinista. Outros cristãos, como os arminianos, também defendem a Criação, a Queda e a Redenção. Embora em sentido amplo esta frase seja verdadeira, existe um considerável contraste entre a antropologia reformada e a das demais tradições do cristianismo. Como a perspectiva arminiana tem muita expressão (embora muitos não saibam que são arminianos), ela será utilizada como exemplo.
Para o arminiano comum, a Queda foi um evento histórico com efeito limitado. Ela produziu sérios danos à humanidade, mas não violou a capacidade humana de se voltar para Deus e de escolhê-Lo para a salvação. Em outras palavras, o homem não estaria morto espiritualmente, mas ferido, e assim com auxílio (da Graça e do Espírito Santo) ele pode se voltar para Deus. Com esta visão, eles defendem o livre-arbítrio dos homens, e afirmam que é possível ao pecador caído e não-regenerado o aceitar ou rejeitar ao Senhor.
O calvinista considera o impacto da Queda como mais que um ferimento. De fato, a entrada do pecado na história da humanidade gerou a morte de cada ser (Ef.2.1, 5). Como conseqüência da Queda, os homens se tornaram escravos do pecado (Jo.8.34) e de satanás (2Tm.2.25,26), incapazes de entender as coisas espirituais (1Co.2.14 – para aceitar ou rejeitar seria necessário entender), cegos para a glória de Cristo (2Co.4.4), e inimigos de Deus (Rm.8.7). O efeito do pecado foi tão intenso que deixou o homem em uma situação na qual apenas Deus pode retirá-lo de onde está. Não há livre-arbítrio e nem auxílio que o salve – é necessário uma ação intensa, de regenerar, dar vida a quem está morto.
Partindo desta compreensão da Queda, as demais áreas são afetadas. O evangelismo arminiano, por exemplo, busca auxiliar o homem a "se decidir” por Jesus. O calvinista prega sabendo que o indivíduo não pode se salvar, e espera que o Espírito Santo produza vida naqueles que ouvem o evangelho. A perspectiva sobre a educação, também, varia conforme a sua convicção a respeito da influência do pecado na vida da criança.
A visão calvinista do homem ainda se destaca, na História, pela valorização da imagem de Deus no homem caído. Embora pecador, este ser não perdeu o valor e a possibilidade de cumprir o mandato cultural dado pelo Senhor. A doutrina da Graça Comum possibilitou a percepção das bênçãos de Deus na vida daqueles que não são regenerados.
Com isto em mente, os calvinistas não apenas souberam valorizar os homens enquanto homens, mas apreciaram e promoveram o desenvolvimento das artes de outras áreas não-religiosas (isso deve ser melhor tratado no próximo post).
Para resumir o ponto: O calvinismo compreende o homem de maneira peculiar. Ele reconhece a Criação e o valor do indivíduo, considera seriamente os efeitos da Queda, e assim possui o diagnóstico correto do problema humano. Confia na ação de Deus para a Redenção, por isso não entra em desespero, mas luta incessantemente para a restauração de vidas e da cultura, vivendo para a glória de Deus (Soli Deo Gloria).
Quer ler mais sobre esta proposição ?
CALVINO, João. A instituição da religião cristã, tomo 1, livro I. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. São Paulo: Cultura Cristã,1999.
SPROUL, R. C. Salvo de quê? Compreendendo o significado da salvação. São Paulo: Vida, 2006.
PLANTINGA JR., Cornelius. Não era para ser assim: um resumo da dinâmica e natureza do pecado. São Paulo: Cultura Cristã, 1998.
SPURGEON, C. H. Sermões sobre a salvação. São Paulo: PES, 1991.
SCHAEFFER, Francis. Não há gente sem importância. São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
LLOYD-JONES, D. M. Discernindo os Tempos. São Paulo: PES, 1994, p.11-23.
Allen Porto é blogueiro do A Bíblia, o Jornal e a Caneta, e escreve às quintas-feiras no 5 calvinistas.
Caro Allen,
ResponderExcluirRealmente o Calvinismo, afora ter proposições completamente baseadas nas Escrituras, é equilibrado e foge dos extremos (sem considerar o hipercalvinismo).
Entretanto, o que mais me agrada nesta doutrina é a aceitação plena da soberania de Deus, cuja Palavra não pode jamais ser relativizada, fechando as "portas" para as novas teologias de cunho liberal e neo-ortodoxas.
Um texto professoral, claro. Eu diria, quase melífluo (rsss), a gente pode "sorvê-lo", qual néctar.
NEle.
Ricardo
Olá Ricardo,
ResponderExcluirObrigado pelo encorajamento.
O pensamento reformado é muito equilibrado - a despeito das caricaturas feitas por aí.
Da noção de Deus em Sua soberania brota a antropologia, revelando o homem naquilo que ele possui de agradável (imago Dei) e de desprezível (o pecado).
Mais: a visão reformada do homem nos leva de volta a contemplar Jesus como a esperança de redenção do homem caído. O sistema se completa perfeitamente! [Por Ele e para Ele!]
abraço
Olá, meu caro Allen!
ResponderExcluirVocê diz a respeito da psicologia: "Embora algum tipo de coerência lógica seja possível nessa visão, ela não condiz com a realidade".
Você lembra do louco de Chesterton? Ele diz que um louco nào é alguém que perdeu a capacidade de pensar, mas alguém que perdeu tudo exceto a capacidade de pensar. Seu mundo é um círculo lógico perfeito. Apenas que o círculo tem um raio pequeno demais!
Assim são todos os pensamentos que não partem do Deus Absoluto. Todos podem ser muito coerentes e fazer algum sentido e, em certos casos, podem até mesmo servir de ferramenta para entender algo da criação. Mas eles sempre falharão ao tentar dar uma visão de mundo todo-abrangente! Todos serão o pequeno círculo do louco de Chesterton!
No amor do Senhor,
Roberto
A montagem do pôster de Transformers tá show!!!!
ResponderExcluirSobre a postagem, acredito que o Calvinismo é a única teologia que vê o homem como ele é: sem ilusões, sem utopias. Porém, é a única que encoraja as habilidades do homem. Alguns dos grandes homens notáveis em suas habilidades desde a música até as artes eram calvinistas! Bom, mas isso é assunto para o próximo post, não é Allen Porto?
Um abraço!!!